Brasil: o movimento sindical e popular na década de dois mil
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Brasil: o movimento sindical e popular na década de dois mil
Andréia Galvão Armando Boito Paula Marcelino* Brasil: o movimento sindical e popular na década de dois mil I. Introdução No Brasil, a luta operária e popular passou ao longo da década de dois mil, por um período que, em contraste com as décadas precedentes, poderíamos denominar um período de acomodação política. A luta reivindicativa não refluiu, mas a agitação e a luta contra o modelo capitalista neoliberal perderam terreno. A década de oitenta foi a década da luta e da organização operária e popular no Brasil. Os indicadores da mobilização popular mantiveram-se muito altos e o salto organizativo do período foi muito grande. Na primeira metade da década de oitenta, tivemos a construção da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Sem-Terra (MST). Essa foi também a década da legalização e do crescimento de antigos e novos partidos e organizações marxistas –como o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Convergência Socialista (CS), que se transformaria no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e outras organizações menores. * Os autores deste artigo são pesquisadores do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil. O presente texto beneficiase do trabalho coletivo do Grupo de Pesquisa Neoliberalismo e relações de classe no Brasil (sediado no Cemarx). Em <www.ifch.unicamp.br/cemarx> 153 Una década en movimiento Nesse período, ocorreu uma explosão inédita de greves, colocando o Brasil, juntamente com a Espanha, que também saía de uma ditadura, como campeões incontestes da atividade grevista em escala mundial. Grandes greves de massa marcaram o cenário político e social daquele período: as greves do operariado fabril, principalmente das cidades industriais do chamado no ABC paulista (São Bernardo, Santo André e São Caetano), as greves dos trabalhadores rurais –como as greves dos canavieiros da Zona da Mata nordestina e do município de Guariba no interior de São Paulo– e as greves do funcionalismo público por todo o país. Esses movimentos grevistas tornaram irreversível a crise da ditadura militar. Se eles não foram suficientes para impor uma saída popular para a crise da ditadura, limitaram as opções da burguesia brasileira. Essa luta e esse crescimento organizativo retardaram a implantação do capitalismo neoliberal no Brasil. A década de noventa foi uma década de refluxo do movimento operário e popular. Diversos fatores –econômicos e políticos, nacionais e internacionais– concorreram para tal. Logo no início dos anos noventa, a posse do governo neoliberal de Fernando Collor, que derrotara a candidatura Lula na eleição presidencial de dezembro de 1989, a recessão e a política econômica do novo governo acuaram politicamente o movimento sindical e popular e derrubaram a produção e o emprego de maneira abrupta. A difusão dos processos de reestruturação produtiva e, no plano internacional, a desintegração da antiga URSS, que provocou uma crise ideológica no movimento operário e socialista, somaram-se àqueles fatores para configurar uma conjuntura que abateu o movimento operário e popular brasileiro e o levou ao refluxo. Quando, doze anos mais tarde, na eleição presidencial de 2002, a “candidatura Lula” foi vitoriosa, o programa da campanha e do candidato já era outro. A candidatura Lula e o PT tinham abandonado o programa de reformas sociais avançadas que defenderam nos anos oitenta e passaram a conciliar com o modelo neoliberal. A década de dois mil foi, como dissemos, a década da acomodação política do movimento operário e popular. Essa acomodação política não significou o desaparecimento das lutas. As greves operárias e de trabalhadores de classe média e as ocupações de terra pelo movimento camponês mantiveram-se num nível elevado ao longo da década de dois mil. Ademais, essa foi também a década de várias edições dos Fóruns Sociais Mundiais sediados no Brasil e de diversas outras manifestações de luta e de inconformismo dos setores populares com o modelo capitalista neoliberal –poderíamos citar a disseminação dos movimentos de moradia por todo o país e a agitação do movimento estudantil. Contudo, a existência do Governo Lula, um governo que, ao mesmo tempo, manteve e reformou o neoliberalismo, contribuiu 154 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino para que essas lutas se mantivessem confinadas no nível reivindicativo e localizadas, desviando-se do objetivo de uma luta política geral contra o próprio modelo neoliberal. A repressão do período Collor e FHC foi substituída por uma política de pequenas concessões e, principalmente, de aproximação com as lideranças dos movimentos. A política econômica do governo teve impacto no movimento operário e sindical. As centrais sindicais, inclusive a CUT, acomodaram -se ao neodesenvolvimentismo– uma política de desenvolvimento limitada pelo caráter financista do modelo neoliberal e voltada, crescentemente, para a exportação. Acomodaram-se, também, graças à política de cooptação do governo. Centenas de sindicalistas ou ex-sindicalistas assumiram cargos em ministérios, na administração pública e em diretorias de empresas estatais1. O governo Lula reformou também parte da legislação sindical, de modo a dotar a direção das centrais sindicais de um controle maior sobre as suas bases e de modo a provê-las com fundos financeiros vultuosos. A política social do governo repercutiu nos movimentos populares de urgência, como os sem-teto e sem-terra, e no movimento estudantil. O social-liberalismo do Governo Lula enxerta no capitalismo neoliberal uma ampla gama de políticas compensatórias, como a bolsa família, os programas de crédito bancário para a população pobre e o financiamento das mensalidades escolares para estudantes universitários oriundos de famílias de renda insuficiente. São medidas paliativas, que não alteram a situação crítica do desemprego, da concentração da renda e da privatização da educação, mas que produzem o impacto político de angariar simpatia e apoio difuso para o Governo Lula junto à população empobrecida pelo próprio modelo capitalista neoliberal. Essa situação, que reúne um reformismo superficial e conservador –posto se tratar de um reformismo que, justamente, possibilita a reprodução do modelo neoliberal de capitalismo–, somada a uma política de cooptação de dirigentes do movimento popular e à acomodação política de tais dirigentes lembra, em alguns de seus aspectos, a situação política criada na crise do regime militar entre 1978 e 1985. Naquela ocasião, a chamada política de abertura do Governo Geisel –que combinava a manutenção do regime ditatorial com recuos secundários frente ao crescimento da oposição democrática– pode ser comparada, mudando o que deve ser mudado, com a política econô- 1A participação de sindicalistas no Governo Lula foi examinada pela imprensa e criticada de uma perspectiva conservadora. Ver Brandt, Ricardo e Tosta, Wilson (2008) “Era Lula consagra república sindical” em O Estado de São Paulo (São Paulo) 6 do abril y Felício, César (2005) “Empresários temem ´república sindical´” em Valor Econômico 16 do março. 155 Una década en movimiento mica neodesenvolvimentista e a política social do social-liberalismo na conjuntura presente. O neodesenvolvimentismo e o social-liberalismo combinam a manutenção do capitalismo neoliberal com recuos secundários frente às aspirações populares. Trata-se de uma atualização da tradição política brasileira de confiscar a insatisfação popular e integrá-la num pacto burguês construído pelo alto. II. A luta sindical e grevista O Brasil vem assistindo, pelo menos desde 2004, à recuperação da atividade sindical e grevista. Na base, a ação grevista vem se mantendo num nível razoavelmente alto e a grande maioria das greves têm permitido ganhos reais de salários; na cúpula do movimento, a disputa política acirrou-se com o surgimento de cinco novas centrais sindicais. Essa recuperação da luta sindical pode ser tomada como um indicador da vitalidade do sindicalismo como movimento social. Acreditamos que, se tomarmos a atividade grevista como indicador, poderemos afirmar que o sindicalismo brasileiro encontra-se, na década de dois mil, em fase de recuperação2. Esses dados nos fornecem, assim, algumas indicações sobre o equívoco das teses que prognosticaram o declínio histórico do movimento sindical, tese defendida por muitos autores europeus e brasileiros como Rosanvallon (1988) e Rodrigues (2002). Focalizaremos nossa análise na atividade grevista para descrever a situação do movimento sindical brasileiro na década de dois mil; isso, por duas razões. A primeira é uma razão de ordem prática: os dados mais sistemáticos e gerais que temos sobre o sindicalismo brasileiro na década de dois mil são os dados sobre greves coletados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos, o Dieese –mesmo assim, só dispomos de dados sistemáticos para o quadriênio 2004-2007– ; para os demais anos, dispomos de dados bastante incompletos. A segunda é uma razão sociológica: a greve não é a única ação importante e pertinente do movimento sindical, mas é, seguramente, uma de suas ações mais contundentes e de maior visibilidade política e social. Para iniciar, digamos uma palavra sobre as prováveis causas da recuperação do movimento sindical brasileiro. Essas causas podem ser as seguintes: a) uma retomada, ainda que tímida, do crescimento econômico; b) a recuperação do emprego observada desde 2004: entre 2003 e 2008, a taxa de desemprego nas regiões metropolitanas caiu, segundo 2 Utilizaremos nas nossas considerações sobre esse ciclo de greves as pesquisas do Dieese, Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG). Tal pesquisa baseia-se na coleta de dados realizada pelos técnicos daquela instituição junto aos grandes jornais e aos jornais sindicais –tanto em suas versões impressa quanto eletrônica. O resultado das pesquisas de greve é publicado na série do Dieese intitulada Estudos e Pesquisas e boa parte dos textos pode ser encontrada na rede mundial de computadores. 156 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino dados do Dieese, de 21,8 para 14,1% da PEA; c) o fato de a inflação dos alimentos atingir taxas superiores à taxa média de inflação, isto é, há uma taxa de inflação, ocultada pela inflação média, que atinge mais pesadamente os trabalhadores; d) a existência de um regime democrático; e) o fato de a equipe governamental, bem como as presidências e diretorias de empresas estatais serem compostas, no período dos mandatos presidenciais de Lula da Silva, por pessoas oriundas, em grande parte, do movimento sindical –no quadriênio 2004-2007–, o Governo Federal e as empresas estatais negociaram com mais de 90% das greves deflagradas pelo funcionalismo público federal e pelos trabalhadores das empresas estatais; f) o desgaste da ideologia neoliberal, que aparece na eleição de Lula e nos novos governos de esquerda e centroesquerda na América Latina; g) a concorrência política entre as centrais sindicais brasileiras, cujo número e variedade de orientações político-ideológicas cresceram, como já dissemos, entre 2004 e 2007. Ou seja, nossa hipótese é que as alterações na conjuntura econômica, política e ideológica podem ter propiciado uma recuperação do sindicalismo. Vejamos, agora, algumas das características do perfil da atividade grevista no ciclo atual que merecem ser destacadas: 1. O número de greves e de grevistas vem se mantendo num patamar relativamente elevado –pouco mais de 300 greves por ano e uma média anual de 1,5 milhões de grevistas. Nota-se a participação majoritária do setor público-funcionalismo público e empregados de empresas estatais. Observa-se, porém, que a participação dos trabalhadores do setor privado é elevada e crescente ao longo do quadriênio, quer consideremos o número de greves ou o número de grevistas. As duas tabelas que reproduzimos a seguir nos apresentam esses números. Tabela 1 Distribuição de greves nas esferas pública e privada Brasil, 2004-2007 Esfera/Setor 2004 2005 2006 2007 N° % N° % N° % N° % Pública 185 61,3 162 54,2 165 51,6 161 50,9 Func. público Empresas estatais 158 27 52,3 8,9 138 24 46,2 8,0 145 20 45,3 6,3 140 21 44,3 6,6 Privada 114 37,7 135 45,2 151 47,2 149 47,2 3 1,0 2 0,7 4 1,3 6 1,9 302 100,0 299 100,0 320 100,0 316 100,0 Pública e Privada TOTAL Fonte: Dieese. 157 Una década en movimiento Tabela 2 Distribuição de grevistas nas esferas pública e privada Brasil, 2004-2007 Esfera/Setor 2004 2005 2006 N° % N° % N° Pública 826.074 64,0 1.380.585 68,1 Func. público Empresas estatais 791.920 34.154 61,3 2,6 1.137.423 243.162 56,1 12,0 Privada 249.258 19,3 484.915 Pública e Privada 216.000 16,7 161.000 1.291.332 100,0 2.026.500 TOTAL 2007 % N° % 770.240 56,6 713.259 49,6 729.600 40.640 253,6 3,0 546.955 166.304 38,0 11,6 23,9 388.673 28,6 641.766 44,6 7,9 201.100 14,8 82.750 5,8 100,0 1.360.013 100,0 1.437.769 100,0 Fonte: Dieese. Obs.: Foram consideradas apenas as greves sobre as quais se obteve informação acerca do número de trabalhadores parados: 151 greves em 2004; 159 em 2005; 178 em 2006 e 211 em 2007. É importante destacar, para que conheçamos melhor as características do atual ciclo de greves, que esse nível de atividade grevista ainda é inferior ao verificado na década de noventa, quando a média anual foi de cerca de 900 greves (Noronha et. al., 1998). Tabelas 1 e 2. 2. As greves têm sido, em sua maioria, greves ofensivas, isto é, por novas conquistas, e não greves para recuperar ou evitar as perdas. As reivindicações mais presentes são por ganho real de salário e por conquista ou majoração da Participação nos Lucros e Resultados (PLR). Reduziu-se o número de greves defensivas –por pagamento de salários atrasados, por respeito a direitos já existentes, etc. A freqüência de ações ofensivas não é a mesma em todos os setores. No setor privado, por exemplo, esse tipo de ação é típico dos trabalhadores da indústria, enquanto as paralisações no setor de serviços são notadamente defensivas (Dieese, 2006: 37). Nos anos de 2004 e 2005, cerca de metade das greves apresentou a reivindicação de reajuste salarial. Em 2004, a reivindicação de pagamento de salário atrasado apareceu em 19% das greves, ocupando o terceiro posto na lista de reivindicações. Já em 2005, a cobrança de salário atrasado caiu para o quinto posto nessa lista, com “apenas” 12% de ocorrências. Apenas no setor de serviços da esfera privada, a reivindicação de pagamento de salário atrasado mantém-se tão importante quanto a reivindicação por reajuste salarial. No conjunto do quadriênio 2004/2007, as reivindicações ofensivas estiveram presentes na grande maioria das greves –em porcentagem, isso corresponde a 65% ou mais do total de greves de cada ano. Essa tendência é 158 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino contrária àquela verificada na década de noventa, quando, embora as greves ocorressem em maior número, predominavam nas greves as reivindicações de caráter defensivo, segundo o levantamento do Dieese (2008: 32). Ou seja, na década de noventa, parece que os trabalhadores tiveram de correr muito apenas para lograr permanecer no mesmo lugar, enquanto na de dois mil, com menos esforço, isto é, com um número menor de greves, estão logrando avançar em novas conquistas. A predominância das reivindicações ofensivas nas greves do quadriênio 2004-2007 aparece na Tabela 3. Tabela 3 Distribuição de greves por caráter das reivindicações Brasil, 2004-2007 Caráter 2004 2005 2006 2007 N° % N° % N° % N° % 197 65,2 207 69,2 217 67,8 209 66,1 161 54 53,3 17,9 135 72 45,2 24,1 168 110 52,5 34,4 146 61 46,2 19,3 107 35,4 70 23,4 87 27,2 101 32,0 Protesto 28 9,3 50 16,7 49 15,3 48 15,2 Solidariedade 2 0,7 2 0,7 2 0,6 1 0,3 Sem informação 0 - 2 0,7 0 - 0 - 302 - 299 - 320 - 316 - Ofensiva Defensiva Revogação ou manutenção das condições vigentes Descumprimento de direitos Número de greves Fonte: Dieese, modificada. Obs.: A última linha desta tabela representa o total de greves de cada ano. Ela não representa a soma das colunas visto que uma mesma greve pode apresentar mais de um tipo de reivindicação. 3. Podemos afirmar que os trabalhadores estão logrando avançar em novas conquistas porque essas greves mais ambiciosas em seus objetivos têm sido, na maioria, bem-sucedidas na obtenção, total ou parcial, das reivindicações que as motivaram. As reivindicações que motivaram as greves foram, ao que tudo indica, total ou parcialmente, atendidas. Cerca de 90% delas conseguiram estabelecer negociação com os empregadores e a pesquisa do Dieese constatou, para o ano de 2005, que 75% das greves para as quais se obteve esse tipo de informação terminaram com a obtenção de algumas ou de parte das reivindicações. O montante de greves que 159 Una década en movimiento não logrou obter nenhuma reivindicação é insignificante, tanto para o ano de 2004, quanto para o ano de 2005 –apenas 7% das greves de 2004 e 6% das greves de 2005 podem ser consideradas indubitavelmente derrotadas. Em 2007, apenas 6% das greves não obtiveram nenhuma satisfação. Em 2007, tiveram suas reivindicações atendidas, total ou parcialmente, 61% dos movimentos grevistas. De setor para setor, varia bastante o montante de greves que obteve algum sucesso. Os trabalhadores das empresas estatais têm sido os mais bem-sucedidos nas ações grevistas (86% delas tiveram suas reivindicações atendidas, total ou parcialmente). Esse percentual cai para 71% das greves na esfera privada e para 50% nas greves do funcionalismo federal, estadual e municipal. (Dieese, 2008: 21). Os dados gerais de greves que obtiveram total ou parcialmente suas reivindicações para o quadriênio são os seguintes: 2004: 70%; 2005: 75%; 2006: 75%; 2007: 60%. Os dados sobre reajuste salarial também são muito significativos. Eles aparecem na tabela abaixo e contemplam um período mais longo, permitindo algumas comparações. Tabela 4 Distribuição dos reajustes salariais em comparação com o INPC-IBGE Brasil, 1998-2007 Ano 1998 Acima do INPC Igual ao INPC Abaixo do INPC N° % N° % N° % N° Total % 141 43,5 64 19,8 119 36,7 324 100 1999 111 35,1 46 14,6 159 50,3 316 100 2000 190 51,5 56 15,2 123 33,3 369 100 2001 214 43,2 97 19,6 184 37,2 495 100 2002 123 25,6 134 27,9 223 46,5 480 100 2003 103 18,8 125 22,8 320 58,4 548 100 2004 361 54,9 171 26 126 19,1 658 100 2005 459 71,7 104 16,3 77 12 640 100 2006 565 86,3 70 10,7 20 3,1 655 100 2007 627 87,7 59 8,3 29 4 715 100 Fonte: Lucio, Clemente Ganz 2008 “Balanço das negociações coletivas e das greves no Brasil no período 1998-2007” (Dieese: São Paulo), pág. 5. Note-se que foi exatamente no ano de 2004, ano que estamos considerando o ponto inicial do atual ciclo de greves, que o número de acordos salariais com reajuste acima do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) cresceu muito, saltando da faixa de 18% para 54% dos acordos. A partir de então, esse montante continuou crescen- 160 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino do, atingindo a porcentagem impressionante de 87% de acordos com reajuste acima da inflação no ano de 2007. 4. Outra característica do ciclo de greves de 2004-2007 diz respeito à amplitude das greves e aos métodos de luta mais agressivos utilizados pelos trabalhadores. Em números, predominam as greves localizadas, porém as grandes greves de massa também têm ocorrido com certa freqüência. Os grevistas realizaram, também, ações públicas para pressionar os empregadores. Em 2005, ocorreram 25 greves envolvendo mais de 10 mil trabalhadores cada uma; dessas, nove greves contaram com mais de 50 mil grevistas. Em 2007, ocorreram quatorze greves envolvendo mais de 10 mil trabalhadores cada uma; dessas, sete greves contaram com mais de 50 mil grevistas. Muitas dessas greves massivas são ações do funcionalismo público, principalmente pessoal da educação e da saúde. Porém, elas ocorrem também em número significativo e em grande escala na esfera privada e nas empresas estatais. Vejamos alguns exemplos. No quadriênio 2004-2007, tivemos uma greve nacional de metalúrgicos que contou com 170 mil grevistas; uma greve estadual dos metalúrgicos paulistas que contou com 190 mil grevistas; uma greve dos trabalhadores da construção civil paulista que envolveu 130 mil grevistas; mais de uma greve dos trabalhadores dos Correios com cerca de 80 mil grevistas cada uma; mais de uma greve de petroleiros envolvendo cerca de 100 mil grevistas; greves de massa de bancários e outras. As greves massivas têm sido na sua quase totalidade ações ofensivas para conquista de aumentos reais e/ou de novos direitos e melhores condições de trabalho. Como dissemos, um número considerável de greves lançou mão de métodos de luta que exigem um nível de organização e de mobilização mais elevado e que dão maior visibilidade à ação sindical –atos públicos, passeatas, piquetes e ocupações. A pesquisa do Dieese obteve a informação sobre atos públicos, passeatas, piquetes e ocupações. Em 2005, essas ocorrências foram registradas em 66 greves (22% do total de greves do ano). Dessas 66 greves, em 39 delas os grevistas realizaram atos públicos, em 25 saíram em passeata, em vinte lançaram mão do piquete para manter a greve, oito greves foram acompanhadas de ocupação do local de trabalho, em cinco foram realizados acampamentos dos grevistas e em três os grevistas fizeram vigília. Em 2007, o número de greves nas quais os grevistas realizaram atos públicos subiu para 83; em 42 greves, os trabalhadores saíram em passeata, em vinte lançaram mão do piquete, em dezenove ocorreu ocupação, em doze acampamentos dos 161 Una década en movimiento grevistas e em duas os grevistas fizeram vigília. Isto é, as ações que dão visibilidade política e social à ação grevista e que endurecem o conflito com os empregadores cresceram muito entre 2005 e 2007. 5. A maioria das greves tem sido realizada pelos setores que são, há muito tempo, os setores mais mobilizados do movimento sindical – tais como os metalúrgicos, os petroleiros, os trabalhadores da construção civil, os bancários e os funcionários públicos, notadamente dos setores da educação e da saúde. O ciclo grevista de 2004-2007 parece indicar, portanto, que, as mudanças ocorridas no sindicalismo brasileiro não foram tão radicais como poderíamos ser levados a crer lendo os autores que insistiram, de modo unilateral e genérico, na idéia da crise do sindicalismo como resultante da mutação tecnológica, da nova organização do processo de trabalho e da transformação na composição das classes trabalhadoras. Outras características da fase anterior do sindicalismo brasileiro mantêm-se em vigência na atual fase de recuperação. Alguns dos dados que já citamos permitem-nos indicar o seguinte: a) predominância, na esfera privada, das greves no setor industrial, com o setor de serviços ocupando uma posição secundária no quadriênio 2004-2007; b) predominância, no setor industrial, das greves no ramo metalúrgico. No ano de 2005, 70% das greves da indústria foram realizadas por metalúrgicos. No ano de 2007, duas grandes greves do operariado metalúrgico, uma nacional e outra no Estado de São Paulo, reuniram nada menos que 360 mil grevistas; c) os outros setores em destaque tampouco representam novidade: em 2005, 20% das greves foram realizadas por trabalhadores da construção civil e 125 mil petroleiros entraram em greve. Em 2007, 130 mil trabalhadores da construção civil entraram em greve; d) no setor de serviços, predominância dos bancários, dos trabalhadores dos Correios e dos trabalhadores em transporte, com destaque para o transporte urbano, como os setores sindicalmente mais mobilizados. Os trabalhadores do transporte coletivo urbano responderam por 45% das greves no serviço privado em 2005. No ano de 2005, 160 mil bancários e 86 mil carteiros entraram em greve; e) predominância, no ramo metalúrgico, das greves nas montadoras de veículos; g) inatividade grevista em setores como o comércio, setor que permanece de importância muito pequena no movimento sindical apesar de reunir um contingente muito grande de trabalhadores. No quadriênio 2004-2007 o registro de greves pelo Dieese no setor do comércio variou entre nenhuma ou apenas uma greve em cada ano. Outro traço de continuidade aparece no fato de que as greves mantiveram-se, no geral, concentradas na Região Sudeste do país e, 162 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino particularmente, no Estado de São Paulo. Em 2005, 87% das greves ocorreram na Região Sudeste; dessas, mais de 60% tiveram lugar no Estado de São Paulo. Em 2007, o Sudeste respondeu por 83% das greves ocorridas em todo o país, mantendo-se o patamar elevadíssimo de concentração. 6. É certo que o setor público tem realizado a maioria das greves. Mas, essa é uma mudança que vem se desenhando há bastante tempo, tendo se iniciado já no decorrer do ciclo grevista de 1978-1992. Por outro lado, surgiram novidades nas mobilizações do setor público –por exemplo, a polícia federal, as polícias civil e militar, os funcionários do judiciário, do Banco Central, os auditores fiscais e alguns outros. Porém, o sindicalismo do setor público apresenta traços visíveis de continuidade, como a predominância das greves do funcionalismo estadual nos anos de 2004, 2005, 2006 e 2007 e, nesse funcionalismo, destaque para professores e profissionais da saúde. O estudo da fase atual do movimento sindical brasileiro pode requerer, mais que em outras épocas, a atenção para o conflito no local de trabalho. A substituição das greves por pequenas paralisações por setor no interior de uma mesma empresa –modalidade de ação que cresceu na Europa, e que cresceu, inclusive, devido às novas formas de organização do trabalho na empresa capitalista– pode, também, estar ganhando corpo no Brasil. Se confirmada essa hipótese, essa seria uma novidade importante da atual fase do sindicalismo brasileiro – um sindicalismo que, como se sabe, mantém-se, apesar de alguns avanços importantes nas últimas décadas, fundamentalmente fora do local de trabalho. Vemos, assim, que na década de dois mil, as alterações na conjuntura econômica, política e ideológica puderam propiciar uma recuperação da atividade sindical no Brasil. Ainda não nos é possível avaliar os impactos da crise econômica mundial, iniciada no final de 2008, sobre o sindicalismo brasileiro. Em meados de 2009, o Dieese divulgou os dados sobre o movimento grevista do ano de 2008. O Dieese registrou que nesse ano foi estabelecido o recorde de greves da década: foram 411 greves, cerca de cem a mais que o montante de greves que vinha sendo mantido ao longo dos anos anteriores. Segundo os dados do Dieese, verifica-se um aumento da proporção de greves no último trimestre de 2008 quando comparado a igual período dos anos anteriores; e essas greves mantiveram as mesmas características apontadas no qüinqüênio todo: foram greves ofensivas, por conquistas de novos direitos e/ou ampliação dos já assegurados. Quanto a 2009, as projeções do Dieese apontavam que esse ano fecharia, muito provavelmente, com um número de greves próximo ao de 2008. Até junho 163 Una década en movimiento de 2009, aquela instituição de pesquisa sindical havia registrado 250 greves e, embora a crise possa ter tido alguma responsabilidade no aumento do número de greves defensivas nos setores mais atingidos por demissões e dificuldades econômicas (autopeças e frigoríficos, por exemplo), um balanço prévio, com dados referentes a 100 greves, indica que, comparando-se com 2008, mais categorias conseguiram, pelo menos, a reposição inflacionária. Ou seja, a crise, ao menos no seu início, não tirou a força do movimento grevista. Mas, a reversão ou a continuidade desse quadro de recuperação da luta sindical dependerá da duração e profundidade da crise e, também, da resposta das organizações sindicais e partidárias dos trabalhadores. Essa resposta, como veremos a seguir, está muito condicionada às relações políticas das centrais sindicais com o Governo Lula. III. Ação e orientação política das centrais sindicais A despeito da significativa e vitoriosa atividade grevista da década de dois mil, o movimento sindical brasileiro no nível das centrais sindicais, passa como dissemos no início, por um processo de acomodação política. Pode desenvolver-se uma contradição entre, de um lado, o processo de acomodação política na cúpula, e, de outro, o ativismo sindical na base do movimento. Isso, contudo, não se verificou até o presente momento –a defasagem indicada não tem criado maiores dificuldades para as centrais sindicais. Mas há, de fato, uma diferença entre a base do movimento sindical– que sofre diretamente os efeitos do modelo capitalista neoliberal e tende a reagir por meio dos instrumentos sindicais clássicos como a greve –e as organizações de cúpula, muito distantes, no caso do Brasil, dos problemas do “chão de fábrica” e mais propensas a se enredarem em acordos com o governo e o patronato. Foi a eleição de Lula em 2002 que modificou a relação entre movimento sindical e governo. O Governo Fernando Henrique Cardoso enfrentara a oposição do setor mais combativo do sindicalismo brasileiro. Hoje, as duas maiores centrais sindicais brasileiras, CUT e Força Sindical, fazem parte da base de apoio ao governo. A diferença entre base e cúpula do movimento sindical resultou também na criação de novas centrais sindicais a partir do ano de 2004. Essa divisão do sindicalismo brasileiro comporta dois aspectos contraditórios. De um lado, indica vitalidade, pois a criação de novos organismos de cúpula foi o caminho encontrado por uma parcela do movimento sindical para organizar os trabalhadores de forma independente do governo e para disputar as bases sindicais com as centrais sindicais acomodadas. De outro lado, essa mesma divisão permitiu, também, que a política sindical de acomodação com o governo 164 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino fosse “premiada”, já que algumas organizações foram criadas visando apenas a usufruir as benesses oferecidas pelo governo graças à nova legislação sindical. O benefício mais visado é o financeiro –a reforma da legislação sindical promovida pelo Governo Lula instituiu o repasse de um percentual significativo do imposto sindical3 às centrais oficialmente reconhecidas. Antes, as centrais sindicais dependiam da contribuição depositada espontaneamente pelos sindicatos de base; agora, a lei estabeleceu o repasse direto de parte da arrecadação do imposto sindical para as centrais. Esses elementos indicam que a divisão organizativa do sindicalismo brasileiro tem diferentes motivações e significados. A despeito da manutenção da legislação que impõe um único sindicato por categoria, isto é, que estabelece a unicidade sindical na base do movimento, as divisões proliferam na cúpula, nível em que a lei faculta maior liberdade de organização. Essas divisões são tanto de ordem político-ideológica quanto de ordem pragmática. Para apreender a complexidade desse processo, examinaremos, de maneira sintética, as tendências políticas das principais centrais sindicais na década de dois mil, o modo pelo qual a ação do Governo Lula incide sobre essas tendências e o processo de reconfiguração na cúpula do movimento sindical durante os mandatos do presidente Lula. III. 1 – O impacto do governo Lula sobre o movimento sindical Como afirmamos anteriormente, os anos noventa foram um período de refluxo do movimento sindical. As dificuldades do período repercutiram intensamente no discurso e na prática sindical. Desde o início dos anos noventa é possível identificar uma mudança na prática sindical da CUT –que foi abandonando as reivindicações mais avançadas e os métodos mais contundentes da luta sindical– e um movimento de aproximação com a Força Sindical, que reunia os sindicatos mais burocratizados e conservadores. Tal aproximação, porém, não foi isenta de disputas e confrontos, já que ambas as centrais permaneceram em campos políticos diferentes, tendo assumido posições distintas e adotado estratégias diferenciadas em relação à política neoliberal: enquanto a Força Sindical nasceu sob o signo do neoliberalismo, defendendo as privatizações, a desregulamentação do mercado de trabalho e a eliminação daquilo que o neoliberalismo designava como os “privilégios” do setor público (Trópia, 2002), a CUT 3 Trata-se de uma contribuição compulsoriamente paga por todo trabalhador, seja ele filiado ou não a sua entidade sindical, e cujo valor corresponde ao salário de um dia de trabalho. 165 Una década en movimiento oscilou entre a assimilação de alguns elementos do discurso e do programa neoliberal e a resistência à política do neoliberalismo (Galvão, 2002). Assim, enquanto a Força Sindical apoiou os governos Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso em seus dois mandatos (1995-2002), a CUT, apesar de ter assimilado alguns elementos do programa neoliberal, assumiu, de modo geral, uma postura crítica frente àqueles governos, considerando-os adversários dos trabalhadores. Na década de noventa, houve momentos em que a CUT buscou resistir, procurando, por exemplo, impedir a retirada de direitos sociais e trabalhistas. A eleição de Lula modificou a relação entre movimento sindical e governo (Galvão, 2006). Essa mudança é mais visível quando se observa a trajetória da CUT, que resultou no aprofundamento da tendência à acomodação política por parte da direção e, ao mesmo tempo, no acirramento dos conflitos no interior da central. Esse resultado pode ser atribuído, ao menos, a duas ordens de fatores. Em primeiro lugar, à dupla militância, uma vez que vários militantes do PT militam também na CUT. Isso fez com que vários ministros e funcionários do primeiro escalão do governo fossem recrutados junto à central, caso de Jacques Wagner, ex-ministro do Trabalho e do Emprego, ex-ministro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e ex-ministro da Secretaria de Relações Institucionais (ex-presidente do Sindiquímica da Bahia e fundador da CUT naquele estado); de Ricardo Berzoini, ex-ministro da Previdência e ex-ministro do Trabalho e do Emprego (ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo); de Luiz Gushiken, ex-secretário de Comunicação do Governo e ex-secretário do Núcleo de Assuntos Estratégicos (também ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo); de Luiz Marinho, ex-ministro Trabalho e do Emprego e ex-ministro da Previdência (ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ex-presidente da CUT). Nesse contexto, a CUT passou a enfrentar dificuldades crescentes para manter sua independência frente a um governo que não apenas havia ajudado a eleger e com o qual se identificava, mas que contava com a participação direta de lideranças cutistas. Em segundo lugar, o resultado supra mencionado se deve às estratégias utilizadas pelo governo para envolver o movimento sindical com sua plataforma política: foram criados organismos tripartites –o já citado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e o Fórum Nacional do Trabalho (FNT)– para discutir as reformas previdenciária, tributária, trabalhista e sindical, na tentativa de construir consensos em torno das questões mais polêmicas e de minimizar uma eventual reação dos trabalhadores às políticas a serem adotadas. 166 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino A participação da CUT nessas instâncias foi criticada pelas correntes minoritárias da central, que consideram o tripartismo uma forma de cooptação e de conciliação de classe. A Força Sindical, por sua vez, passou a ocupar uma posição institucional de menor destaque no primeiro governo Lula, chegando a esboçar algumas críticas –sobretudo à manutenção das altas taxas de juros – e tentando se firmar no inédito papel de oposição. Mas não era fácil se posicionar – mesmo que fosse somente no plano do discurso– contrariamente a um governo respaldado por amplo apoio popular e dirigido por um partido historicamente aliado a uma parte significativa do movimento sindical. Assim, no segundo mandato de Lula a Força Sindical, tradicional opositora da CUT e do PT, passou a apoiar o governo e um de seus principais dirigentes, Luiz Antonio de Medeiros, tornou-se Secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego em março de 2007. A despeito da participação de sindicalistas no governo e da expectativa que a eleição de Lula havia gerado no meio sindical, desde o primeiro ano de mandato o petista adotou medidas que provocaram o descontentamento de alguns setores sindicais, como a reforma da previdência, aprovada em 2003. Embora essa reforma tenha retirado direitos dos funcionários públicos, importante base social da CUT, nenhuma resistência foi organizada pela central. Os novos servidores perderam o direito à aposentadoria com vencimento integral e seus benefícios deixaram de ser reajustados na mesma proporção que os salários dos servidores ativos. Os critérios para a aposentadoria dos servidores já em exercício tornaram-se mais rígidos, de modo a dificultar-se a obtenção da aposentadoria integral. A perda sofrida no valor da aposentadoria seria supostamente compensada pela expansão dos fundos de pensão, destinados a assegurar uma aposentadoria complementar. As reformas sindical e trabalhista também geraram insatisfação em algumas correntes sindicais. No que se refere à reforma trabalhista, o governo Lula, embora apresente um discurso de defesa de direitos, não interrompeu o processo de flexibilização da legislação, ainda que o tenha feito em ritmo menor do que o verificado sob o governo de Fernando Henrique Cardoso. Com efeito, o governo vem realizando mudanças pontuais, sem discuti-las publicamente, a despeito da criação de fóruns tripartites, como o FNT, supostamente dedicados a essa tarefa. Assim, implementou algumas medidas flexibilizantes, a exemplo da contratação de prestadores de serviços na condição de empresas constituídas por uma única pessoa (a chamada “pessoa jurídica”) e da Lei do Super Simples, que possibilita a redução do pagamento de alguns direitos trabalhistas para micro e pequenas empresas. Já a 167 Una década en movimiento reforma sindical, a despeito de todo o debate realizado no FNT, não avançou. Ainda assim, o projeto em discussão gerou muita polêmica. Parte dessa polêmica dizia respeito às propostas de extinção da unicidade sindical e de algumas das contribuições sindicais compulsórias4. Outro foco de tensão estava relacionado às medidas que promoviam a centralização do poder nas cúpulas sindicais, o que reduziria a autonomia dos sindicatos de base e, consequentemente, a possibilidade de resistência das correntes sindicais minoritárias no interior da centrais5. Diante de tamanho dissenso, as mudanças introduzidas no âmbito da legislação sindical foram poucas, embora politicamente importantes: o reconhecimento oficial das centrais sindicais e o seu financiamento com dinheiro proveniente do imposto sindical, mudanças aprovadas no segundo mandato de Lula (Lei 11.648, 2008)6. III. 2 – A reconfiguração do movimento sindical durante os governos Lula O cenário sindical brasileiro alterou-se significativamente durante os governos Lula. Uma dessas alterações foi a proliferação de centrais sindicais. Essa nova configuração do sindicalismo se deveu a dois motivos: 1. à insatisfação de uma parcela do movimento sindical com a manutenção do dos pilares do modelo neoliberal pelo Governo Lula, bem como com o apoio da CUT e da Força Sindical a essa política; 2. à possibilidade oferecida pela legislação criada no Governo Lula de as centrais sindicais reconhecidas oficialmente terem acesso a vultuosos recursos financeiros. A referida legislação estabelece critérios de representatividade (a representação de, no mínimo, 5% do total de trabalhadores filiados a sindicatos no país, além da comprovação da filiação mínima de 100 sindicatos) e assegura o repasse de 10% da contribuição sindical para as centrais reconhecidas. 4Ainda que o projeto de reforma em discussão no Fórum Nacional do Trabalho (FNT) não assegurasse plenamente nenhuma dessas mudanças. 5A centralização de poder na cúpula resultaria de um sistema de negociação em diferentes níveis, que atribuía ao contrato coletivo de maior abrangência o poder de indicar as cláusulas não passíveis de negociação nos níveis inferiores. O temor das correntes de esquerda, minoritárias na CUT, era que as entidades de cúpula celebrassem acordos lesivos ao trabalhador, que não poderiam ser alterados pelas entidades de base. 6Embora as centrais sindicais existissem de maneira ininterrupta desde 1983, quando a CUT foi criada, não havia na legislação brasileira nenhum instrumento jurídico que as reconhecesse “de direito”. 168 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino Esses fatores desencadearam movimentos de divisão e de fusão de correntes sindicais. A CUT sofreu um processo de cisão interna e perdeu alguns sindicatos importantes, como o dos metalúrgicos de São José dos Campos e Região e o Andes (Sindicato Nacional de Docentes do Ensino Superior), que participaram da criação da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas). Essa nova entidade, segundo seus documentos oficiais é “[...] composta por entidades sindicais, organizações populares e movimentos sociais que têm como objetivo organizar a luta contra as reformas neoliberais do governo Lula [...] e também contra o modelo econômico que este governo aplica no país, seguindo as diretrizes do FMI” (Conlutas, 2004). Outros dirigentes e sindicatos da CUT criaram a corrente denominada Intersindical, por entenderem que a CUT deixou de ser um instrumento de organização e unificação do movimento sindical para ser um instrumento de colaboração e conciliação de classes. Porém, nem todos os dirigentes e sindicatos que integram essa nova corrente deixaram a CUT, optando por atuar nas duas organizações (Intersindical, 2006). Fora da CUT, sete entidades ligadas ao sistema confederativo7, historicamente contrárias a mudanças na estrutura sindical, criaram a Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), com o objetivo de defender a permanência, supostamente ameaçada, da unicidade sindical (NCST, 2005). A legislação que possibilitou o reconhecimento oficial das centrais sindicais gerou um processo contraditório. Por um lado, verificaram-se movimentos de fusão, a exemplo do processo que resultou na criação da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Essa nova central originou-se da fusão de três pequenas centrais. Por outro lado, ocorreram novas divisões. Um grupo de sindicalistas da CUT criou, em 2007, a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). Tanto no caso da criação da UGT quanto no da criação da CTB, as decisões parecem ser de ordem pragmática: no que se refere à UGT, pequenas centrais se fundiram visando cumprir os critérios de representatividade para ter acesso ao reconhecimento legal e à fonte de custeio garantida pelo governo. Assim, a fusão não resulta, necessariamente, de uma afinidade político-ideológica que existiria entre elas. No caso da CTB, tratou-se também de aproveitar a oportunidade de passar a 7São as seguintes: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSBP), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Educação e Cultura (CNTEEC), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Alimentação e Afins (CNTA), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade (CONTRATUH), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT). 169 Una década en movimiento receber os recursos da contribuição sindical, pois seus dirigentes não tinham divergência política de fundo com a direção da CUT, tanto que alegam que, embora tenham se retirado da CUT, não pretendem romper com ela e nem tratá-la como adversária8. Mais do que uma disputa quanto à melhor forma de organização sindical, que oporia os defensores da estrutura sindical de um lado e seus críticos de outro, o surgimento de novas entidades sindicais foi fruto de disputas políticas sobre a relação do sindicalismo com o governo e sobre o posicionamento perante as reformas neoliberais, bem como da corrida aos recursos financeiros oferecidos às centrais sindicais que lograssem se legalizar. Mesmo assim, o apoio sindical ao governo Lula prevalece, na medida em que as entidades que lhe oferecem resistência possuem um espaço de atuação ainda pequeno, enfrentando dificuldades para organizar e mobilizar os trabalhadores. Esse apoio pode ser melhor dimensionado no quadro abaixo: Quadro 1 As centrais sindicais no Governo Lula Data de criação Origem Posição frente ao governo Principal reivindicação Apóia a negociação com o governo? CUT 1983 Novo sindicalismo Apoio amplo Redução da jornada para 40 horas semanais Sim CGTB 1986 CGT Apoio amplo Redução da jornada para 40 horas semanais Sim Força Sindical 1991 CGT Apoio amplo Redução da jornada para 40 horas semanais Sim Conlutas 2004 CUT Oposição Reversão das reformas neoliberais Não Inter Sindical* 2006 CUT Oposição Reversão das reformas neoliberais Não CTB 2007 CUT Apoio crítico Redução da jornada para 40 horas semanais Depende do que é negociado UGT 2007 SDS + CGT + CAT Apoio amplo Redução da jornada para 40 horas semanais Sim Fonte: própria. * Embora a rigor não constitua uma central, é uma organização que agrega diferentes sindicatos de base e que foi criada no governo Lula, razões pelas quais figura no presente quadro. 8Cfr. Entrevista de João Batista Lemos a Lobregatte (2007). Ao mesmo tempo, os dirigentes da nova central alegam que a saída da CUT se deve ao hegemonismo da corrente majoritária e à falta de democracia interna da central, apontando sua falta de autonomia em relação ao governo (Gil, 2007). 170 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino As centrais que apóiam o Governo Lula (CUT, FS, CTB, UGT, NCST e CGTB) destacam o “bom relacionamento” desse governo com o movimento sindical, expresso nas negociações e consultas efetuadas nos fóruns tripartites, mesas de negociação sobre salário mínimo, sobre serviço público e aposentadoria e na lei de reconhecimento das centrais. Embora faça uma avaliação positiva do governo, a CTB apresenta críticas pontuais a ele, recusando-se, por exemplo, a firmar o acordo que definiu o reajuste das aposentadorias em 2009 por considerá-lo um acordo rebaixado, na medida em que previa que o valor das aposentadorias teria um reajuste inferior ao concedido ao salário mínimo. Conlutas e Intersindical constituíram-se em oposição ao governo –identificado como neoliberal– e suas reformas, e apresentam uma postura reivindicativa combativa, recusando-se a negociar acordos que impliquem concessões e perda de direitos aos trabalhadores. Essas afinidades político-ideológicas levaram-nas a um movimento de aproximação organizativa. Um Congresso de unificação da Conlutas com a Intersindical está programado para o ano de 2010. O processo de reconfiguração que procuramos descrever acima indica que, embora a posição de apoio ao governo seja predominante, uma parcela do sindicalismo procura se reorganizar para fazer frente a ele. IV. Os movimentos de urgência Estamos denominando “movimentos de urgência”, tal como Mouriaux (2002), os movimentos populares cujos integrantes lutam por um tipo de reivindicação cujo não atendimento pode colocar em risco, no curto prazo, a sobrevivência do grupo. Trata-se dos desempregados, das famílias sem moradia e, também, do campesinato sem terra. Não poderemos analisar em detalhes todos esses movimentos. Daremos uma idéia sobre alguns deles. IV. 1 – A luta dos sem-terra Como é sabido, e contrariando inúmeros autores que, desde a década de sessenta, previam o declínio da luta camponesa pela terra no Brasil, previsão sustentada, por exemplo, por Caio Prado Jr. (1987), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) tem sido, desde 1984 quando foi criado, um dos principais –se não o principal– movimento popular no Brasil. Ao longo da década de noventa, surgiram outros movimentos camponeses organizados no padrão do MST, como, por exemplo, o Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST), que é muito ativo na região Nordeste do país. Esses movimentos todos representam o campesinato pobre, aquele que não possui terra ou que tem terra insuficiente. A sua reivindicação principal 171 Una década en movimiento é, por isso, a distribuição de terras. O meio que o movimento camponês apresenta para viabilizar tal reivindicação é a desapropriação das terras improdutivas ou ociosas, o que assegura o respaldo constitucional para sua reivindicação. O campesinato remediado, que possui terra, mas enfrenta problemas graves com o financiamento e venda da sua produção, tem outras reivindicações: financiamento, assistência técnica, preço mínimo assegurado para seus produtos e outras. Esse campesinato remediado está representado nas federações estaduais dos trabalhadores rurais que são organismos da estrutura sindical corporativa de Estado e que, no nível nacional, estão unificadas na Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Falando da luta camponesa na década de dois mil, trataremos neste texto, quase que exclusivamente, da luta do campesinato pobre, que tem sido a luta de maior impacto político e social. O número de acampamentos –que em sua maioria representam uma ação de ocupação de terra– bem como o número de famílias acampadas cresceu na década de dois mil quando comparados com os dados da década de noventa. Vejamos a tabela abaixo. Tabela 5 Acampamentos Sem-Terra 1990-2006 Ano Acampamentos Famílias 2006 – 150.000 2005 778 127.872 2004 661 114.776 2003 633 117.482 2002 526 67.298 2001 585 75.334 2000 555 73.066 1999 538 69.804 1998 388 62.864 1998 388 62.864 1996 250 42.682 1995 101 31.619 1994 125 24.590 1993 214 40.109 1992 149 20.596 1991 78 9.203 1990 119 12.805 Fonte: Portal do MST (2009). Em <http://www.mst.org.br> Acesso em 2 de julho de 2009. 172 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino Temos aqui uma situação semelhante àquela que verificamos na análise do sindicalismo. Na base, a luta mantém-se ativa e em ritmo crescente. Porém, na cúpula do movimento também podemos constatar uma tendência à acomodação política. Recordemos que a década de noventa foi a década das grandes manifestações políticas do MST contra o capitalismo neoliberal e os governos de Fernando Henrique Cardoso. Hoje, o movimento está dividido quanto à posição a tomar diante do Governo Lula, pois esse governo não tem correspondido à expectativa do MST no que respeita à desapropriação de terras. Transcrevemos abaixo o balanço mais recente que pudemos encontrar do MST sobre a reforma agrária sob o Governo Lula. “Reforma agrária O II Plano Nacional de Reforma Agrária tinha a previsão de assentar 550 mil famílias entre 2003 e 2007. No entanto, segundo a Unesp (Universidade do Estado de São Paulo), apenas 163 mil famílias desta meta foram assentadas, ou seja, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) cumpriu apenas 29,6% da Meta. Quanto à Meta 02 -regularização fundiária, que era de 500 mil famílias de posseiros- legitimou apenas 113 mil, ou seja, 22,6% da meta. A conclusão: o governo Lula não fez a reforma agrária onde o agronegócio não queria e fez a regularização fundiária onde ele queria. Violência no campo Entre 1985 a 2007, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) registrou de 1.117 ocorrências de conflitos com a morte de 1.493 trabalhadores rurais. Em 2008, ainda dados parciais apontam 23 assassinatos. Do total de conflitos, só 85 foram julgados até hoje, tendo sido condenados 71 executores dos crimes e absolvidos 49 e condenados somente 19 mandantes, dos quais nenhum se encontra preso9. [...] As ocupações de terra em nosso país têm como causa a não implantação da Reforma Agrária pelo governo que, ao invés de exercer a lei que obriga o cumprimento da função social da terra, prioriza as políticas de fortalecimento da grande propriedade e do agronegócio, como fonte da produção de mercadorias de exportação, fazendo com que haja reações de todas as formas para desconcentrar a terra”10. Como indicam os documentos acima, a avaliação que o MST faz do desempenho do Governo Lula na política de reforma agrária, tanto no primeiro quanto no segundo mandato, é muito nega9Disponível em <http://www.mst.org.br>. Portal do MST. Acesso em 10 de julho de 2009. 10 Bogo, Ademar (2009) “As ocupações de terra em legítima defesa”, 27 de abril. Em <http://www.mst.org.br> Acesso em 10 de julho de 2009. 173 Una década en movimiento tiva. Apesar disso, o MST tem um posicionamento hesitante diante desse governo. Se a direção do MST hesita e se divide na definição de seu posicionamento diante do governo Lula, isso se deve, em parte, ao fato desse governo ter uma política de aproximação com a direção do movimento, nomeação de políticos simpáticos ao movimento para os cargos do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) e fornecimento de fundos financeiros para viabilizar os projetos educacionais do movimento são dois elementos importantes dessa aproximação. Se recordarmos que, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, o MST estava sob a mira de uma campanha concertada do governo e da grande imprensa que procurava criminalizar a luta camponesa pela terra, perceberemos o impacto político que essa mudança no comportamento governamental pode ter. Mas, além da política de aproximação com a direção do movimento, o Governo Lula implantou, também, uma política visando a atrair o campesinato remediado, isolando o campesinato pobre e sua luta pela terra. De fato, o crédito agrícola para a agricultura familiar, que, justamente, envolve o campesinato remediado, cresceu muito durante os governos Lula11. Ora, além de favorecer a base da Contag, essa política favorece, também, uma parte da base do MST e demais movimentos de luta pela terra: os trabalhadores já assentados, que receberam seus títulos de propriedade e que continuam vinculados ao MST, estão preocupados com financiamento, assistência técnica 11O MST mostra, em seus documentos, que o Governo Lula mantém a concentração do crédito agrícola nas grandes propriedades de terra e no agronegócio, em detrimento da pequena propriedade e da agricultura voltada para o mercado interno. Essa informação diz muito, de fato, sobre a natureza de classe do Governo Lula. Contudo, isso não significa que o crédito para a agricultura familiar não tenha crescido em relação aos governos de Fernando Henrique Cardoso e nem que tal crescimento não tenha um impacto político junto ao campesinato remediado. Transcrevemos, a seguir, o informativo documento do MST, “Relação entre crédito/Tamanho da propriedade/Produção”, a respeito da concentração do crédito agrícola: 1) O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social concedeu em empréstimos, apenas no ano passado, mais de R$17,2 bilhões de reais para empresas do agronegócio. Menos de um ano depois, estas empresas já demitiram mais de 9.300 trabalhadores; 2) O Banco do Brasil emprestou por meio de linhas de crédito especial mais R$ 10 bilhões para 20 empresas do agronegócio –produção, insumos, industrialização e comércio (2008)– 1,2 milhão de famílias de agricultores familiares devem receber, na safra 2008-2009, cerca de R$ 7,2 bilhões (projeção); 3) Os pequenos agricultores acessam 13,4% do crédito e produzem 56,8% da produção, num total (em 2001) de 910.466 contratos; 4) Os médios agricultores acessam 48% do crédito e produzem 29,6% da produção, num total (em 2001) de 547.520 contratos; 5) Os latifundiários acessam 34,6% do crédito, produzem 13,6% da produção e são um total (em 2001) de 10.926 contratos. Disponível em <http://www.mst.org.br>. Acesso em 10 de julho de 2009. 174 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino e preço mínimo e não mais, fundamentalmente, com a distribuição de terra. Esta última é, fundamentalmente, a preocupação básica dos acampados –camponeses sem terra que realizam acampamentos em propriedades agrícolas ou estradas para reivindicar a desapropriação e a distribuição de terras. Em suma, a base social do MST não é homogênea e o Governo Lula tomou medidas que favorece uma parte dessa base e não outra. IV. 2 – O movimento dos sem-teto Outro movimento popular de urgência que se disseminou pelas cidades grandes e médias do Brasil já ao longo da década de noventa, e que se mantém muito ativo ao longo da década de dois mil, é o movimento popular de luta pela moradia, mais conhecido como movimento dos sem-teto. Esse movimento reúne famílias e pessoas em condições distintas, mas que têm em comum o fato de não possuir moradia e nem dispor de renda suficiente para pagar um aluguel. Essas famílias, que habitam cortiços insalubres e super-povoados, que foram despejados do imóvel que alugavam por falta de pagamento ou que estão na iminência de sê-lo são a base dos movimentos populares por moradia. Trata-se de pessoas empregadas com renda muito baixa, pessoas desempregadas, que vivem do trabalho informal e incerto que, no geral, representam aquilo que parte da sociologia latino-americana convencionou denominar “massa marginal”, produto típico do capitalismo dependente. Os sem-teto, como são genericamente chamados, dividem-se em dezenas de movimentos localizados em todo o Brasil e agem, algumas vezes, de modo mais ou menos espontâneo. Esses movimentos não são homogêneos politicamente. Alguns deles, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), vinculado ao MST, procura ligar a luta por moradia à luta contra o modelo neoliberal de capitalismo. Outros, politicamente mais limitados, restringem toda a sua plataforma à reivindicação da casa própria. Em qualquer dos casos, a organização dos sem-teto é muito difícil e a obtenção da moradia tende a desmobilizar aquele que a conseguiu (Oliveira, 2006). Se tomarmos como exemplo a cidade de São Paulo, encontraremos atuando nessa metrópole cerca de cinco movimentos de moradia importantes. A maior parte deles utiliza o método da ocupação de edifícios e de terrenos como instrumento de luta. Fazem tanto ocupação que poderíamos denominar táticas, isto é, para chamar atenção do governo e do público para o problema da moradia, quanto ocupações que podemos denominar estratégicas, vale dizer, ocupações que visam obter a desapropriação do edifício ou do terreno ocupado e sua entrega para os sem-teto que encetaram a ação (Oliveira, 2006). Além desse tipo de ação direta, os sem-teto valem-se de outros méto175 Una década en movimiento dos tradicionais do movimento popular –como manifestações de rua, abaixo-assinados, etcétera. Não é fácil obter dados sobre a luta dos sem teto, que se disseminou por todo o Brasil e que não possui um organismo centralizador capaz de, de fato, dar uma direção geral ao movimento. Um levantamento junto aos órgãos de imprensa, realizado por Oliveira (2010), chegou a alguns dados sistemáticos sobre as ocupações de edifícios e de terrenos urbanos pelos sem-teto na cidade de São Paulo. Entre 2001 e 2009, a grande imprensa noticiou cerca de 76 ocupações na Grande São Paulo, originando em média cerca de oito ocupações por ano. Seria interessante comparar o período dos governos de Fernando Henrique Cardoso com o dos governos Lula. Entre 1995 e 2002, foram noticiadas pela grande impresa escrita 79 ocupações na Grande São Paulo, isto é, uma média de quase dez ocupações por ano. Já, entre 2003 e 2009, registram-se 60 ocupações, perfazendo em média cerca de oito ocupações por ano, ou seja, ligeiramente abaixo das ocupações ocorridas nos anos FHC (Oliveira, 2010: 203). Sobre o número de participantes nessas ocupações, Oliveira encontrou informações mais sistemáticas sobre o número de famílias participantes em cada uma delas. Somando-se tais montantes, teríamos, para a década de 2000, cerca de 20 mil e setecentas famílias participando de ocupações urbanas. Se considerarmos quatro pessoas por família, teríamos, somente na região da Grande São Paulo, mais de 82 mil pessoas envolvidas na dura atividade de ocupação de edifícios, públicos ou particulares, ou de terrenos ociosos entre os anos de 2001 e 2009 (Oliveira, 2010: 204). O número de famílias envolvidas em ação de ocupação foi significativamente maior durante os dois governos Lula (2003-2009) que durante os governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), apesar de estarmos deixando de lado um ano ainda não cumprido do segundo mandato do governo Lula. Entre 1995 e 2002, cerca de 13 mil e setecentas famílias participaram de ocupações na Grande São Paulo, enquanto que entre 2003 e 2009, esse número elevou-se para 17 mil e cem famílias. Oliveira (2010) mostra que a ação de ocupação de edifícios e terrenos urbanos é uma ação dura, que exige muita organização e disciplina dos participantes além de expô-los ao risco da repressão. Assim que um prédio é ocupado, a água e a luz podem ser cortadas. As famílias ficam sem elevador, utilizam a luz de velas e são obrigadas a utilizar a escada para chegarem aos seus quartos. Necessitam fazer muita força para carregar baldes de água escada acima. As crianças, numa ocupação, vivem em condição péssima, muitas vezes sem escola. Não raro, a repressão às ocupações é violenta. Quando se trata de ocupação de terrenos urbanos, nos quais os ocupantes erguem barracas, 176 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino acontece, muitas vezes, de a ação de despejo envolver a ação de tratores que passam por cima das barracas levando de roldão os pertences das famílias pobres acampadas. Outras vezes, contudo, as ocupações são vitoriosas. Não raro, um processo de ocupação demora anos até chegar a um desfecho, favorável ou não aos sem-teto. Ao longo do ano de 2009 e 2010, os movimentos dos sem-teto têm lutando para que o programa de construção de moradias lançado pelo Governo Lula como instrumento de política econômica de combate à crise, programa intitulado “Minha casa, minha vida”, contemple, na forma devida, as famílias cuja renda total seja igual ou inferior a três salários mínimos. As famílias pertencentes a essa faixa de renda respondem por 90% do déficit habitacional do país; no entanto, o programa “Minha casa, minha vida” prevê que apenas 40% de sua dotação será destinada à população das famílias de baixa renda. Na luta contra o caráter elitista desse programa, os sem-teto têm feito passeatas e atos públicos por todo o país (Hirata, 2010). V. Os movimentos de classe média A classe média é um setor social muito heterogêneo. Essa classe é composta pelos trabalhadores não manuais, assalariados em sua maioria, mas, também, profissionais liberais, que possuem, eventualmente, posição de responsabilidade dentro das empresas –gerência, chefias intermediárias etc. Essa classe se unifica por um fator ideológico que poderíamos denominar consciência meritocrática: a valorização do trabalho socialmente percebido como não-manual e o correspondente desprezo pelo trabalho manual. Tal consciência concebe a desigualdade social e a hierarquia salarial como decorrentes dos dons e méritos de cada indivíduo. Essa classe grande e heterogênea não reagiu de modo homogêneo frente ao modelo capitalista neoliberal ou frente ao governo Lula. A alta classe média dividiu-se entre o apoio amplo e o apoio crítico ao neoliberalismo. Os trabalhadores de alta classe média do setor privado parece terem aderido amplamente ao neoliberalismo. Já os trabalhadores dessa mesma fração inseridos no setor público –juízes, médicos, professores universitários, oficiais das Forças Armadas, fiscais do Estado e outros– sentiram-se, ao menos em parte, prejudicados pelo capitalismo neoliberal, posto que esse modelo atingiu suas aposentadorias e salários e minou o prestígio da função e dos serviços públicos. A baixa classe média foi a fração mais atingida pelo neoliberalismo. Essa fração resistiu ou lutou contra o modelo neoliberal de diferentes maneiras e em vários movimentos sociais. Sua ação de resistência está presente, por exemplo, no movimento sindical do fun- 177 Una década en movimiento cionalismo público, principalmente, no sindicalismo do pessoal da área de saúde e de educação. Contudo, houve um movimento em que parte da classe média procurou politizar a sua resistência ao modelo neoliberal. Estamos nos referindo às sucessivas edições do Fórum Social Mundial que, apesar do que anuncia o título de tal evento, trata-se de um evento predominantemente brasileiro12. O Fórum sempre reuniu, predominantemente, pessoas e organizações de classe média. A esmagadora maioria dos freqüentadores do Fórum possui curso superior completo ou incompleto. As organizações sindicais da classe operária e as organizações camponesas, quando participam das edições do Fórum, constituem, nele, um elemento marginal. As reivindicações que ganham destaque no Fórum denotam o interesse em recuperar o prestígio e importância dos serviços públicos –saúde, educação–, em conquistar os direitos das mulheres e em preservar o ambiente. São reivindicações progressistas, mas limitadas pelo universo de preocupações e interesses desses setores intermediários. Parte da classe média foi muito atingida com a restrição aos direitos sociais. Foi atingida na condição de portadora de direitos sociais e usuária dos serviços públicos, mas foi atingida, também, na condição de profissionais que garantiam e produziam tais serviços – o médico, o professor, o pessoal da educação e saúde dentre outros. As reivindicações do Fórum apontam para a recuperação desses serviços. Em suma, o setor da classe média diretamente atingido pelo modelo capitalista neoliberal vê nas edições do Fórum um evento de protesto contra esse modelo econômico. Também os métodos de organização e de luta implementados pelo Fórum trazem a marca da classe média. A classe operária, quando lutou e luta por reformas, o faz organizando-se em torno de um programa reformista. Embora existam disputas dentro do Fórum, o que predomina é a, justamente, a negação em se definir um programa de lutas e a estabelecer, em torno desse programa, uma organização com direção coletiva e centralizada para dirigir a luta. Contentamse em lançar apelos periódicos em defesa dos serviços públicos, do ambiente e das mulheres. Parece que esperam a intervenção de uma força externa e superior que daria forma política às suas reivindicações esparsas e aplicaria tal programa no lugar das associações que organizam os encontros anuais do Fórum. Arias e Corrêa (2010) mostram que, ao longo da década de dois mil, o Fórum Social Mundial, nas suas edições brasileiras, foi perdendo público e impacto político. Na Edição de 2010 em Belém do 12 Na análise do movimento altermundialista e do Fórum Social Mundial, baseamonos em Corrêa e Arias (2010). 178 Andréia Galvão, Armando Boito y Paula Marcelino Pará, o Fórum Social Mundial logrou uma recuperação, com a participação de 130 mil pessoas, talvez em decorrência da crise econômica de 2008. Contudo, as organizações e os intelectuais que se bateram, na edição paraense do Fórum, para que esse definisse um programa de luta e colocasse em pé uma organização que o defendesse, foram derrotados. A força hegemônica do Fórum continua considerando que definir um programa e formalizar uma organização seria antidemocrático. IV. Considerações finais O movimento sindical, o Fórum Social Mundial, o movimento camponês e dos sem-teto expressam, cada um a seu modo e representando setores distintos das classes trabalhadoras, a resistência popular ao modelo capitalista neoliberal. Esses movimentos não chegaram a se unificar num amplo movimento de massa com um programa alternativo ao neoliberalismo, mas obrigaram os governos a realizar concessões que atenderam, mesmo que parcialmente, reivindicações populares. Este rápido balanço da luta popular no Brasil poderia ser mais completo. Alguns movimentos populares, como o movimento de desempregados, e também outros movimentos de setores da classe média prejudicados pelo capitalismo neoliberal –como é o caso de uma parte do movimento estudantil– não foram examinados neste texto. Acreditamos, contudo, que o pequeno balanço que apresentamos oferece ao leitor uma idéia das potencialidades e dos limites do movimento sindical e popular no Brasil da década de dois mil. Bibliografia Arias, Santiane y Corrêa, Ana Elisa 2010 “O movimento altermundialista, a classe média e a resistência ao capitalismo neoliberal” (Campinas) mimeo. Boito Jr. Armando 2003 “A crise do sindicalismo” em Santana e Ramalho (orgs.) 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