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1 apresenta BRASÍLIA - 13 A 21 DE JULHO DE 2016 RIO DE JANEIRO - 06 A 25 DE SETEMBRO DE 2016 FORTALEZA - 06 A 18 DE SETEMBRO DE 2016 Organização dos Textos: Lucas Murari e Mateus Nagime LDC 2016 2 3 New Queer Cinema: Segunda Onda Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.) 1ª Edição 2016 ISBN: 978-85-69488-03-3 Projeto Gráfico Inhamis Quadro Capa “The visit of the North King or The Prelude to War”, 2011, de Ramonn Vieitez A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade, mantendo comitês internos para realização de campanhas, programas e ações voltados para disseminar ideias, conhecimentos e atitudes de respeito à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam uma sociedade plural. Os projetos patrocinados são selecionados via seleção pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país como também dar mais transparência à utilização dos recursos da empresa. Com a mostra New Queer Cinema – A segunda onda, a CAIXA não apenas contribui para reavaliar os 25 anos dessa vertente cinematográfica e o que ela representa na sociedade contemporânea com novos debates e questões, como também fomenta a discussão das relações de gênero. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 155 anos de atuação no país. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação no presente, compromisso com o futuro do país e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL 4 5 ÍNDICE Apresentação, por Mateus Nagime e Denilson Lopes 6 6 Rosas Selvagens, por Pedro Guimarães 12 Vive L’amour, por Denilson Lopes 18 Kids, por João Marcos de Almeida 24 Hustler White, por Will Domingos 30 Vida Sem Destino, por Sérgio Silva 38 Sitcom, por Marília Lima 44 Aimée & Jaguar, por Érica Sarmet 50 Lola and Billy the Kid, por Pablo Gonçalo 56 Meninos não choram, por Thays Prado 64 Quero ser John Malkovich, por Mateus Nagime 72 Tabu, por Aleques Eiterer 78 O Pântano, por Chico Lacerda 84 Madame Satã, por Chico Lacerda 90 Elefante, por Luiz Carlos Oliveira Jr. 96 Mal dos Trópicos, por Rodrigo de Oliveira 102 BIOGRAFIAS DOS AUTORES 110 CRÉDITOS 114 7 NEW QUEER CINEMA – A SEGUNDA ONDA Mateus Nagime e Denilson Lopes A experiência de organizar a mostra New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política em 2015 foi bastante frutífera, tanto na exibição dos filmes quanto nos debates e encontros que aconteceram pelo país. A experiência nos fez refletir sobre a importância de seguir exibindo e discutindo filmes que apresentam questões importantes a respeito de sexualidade e da teoria queer. É importante ressaltar que ainda que o New Queer Cinema tenha sido um movimento específico que aconteceu entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido, ele se deu em uma época de lutas políticas avançadas e cada vez mais globalizadas, ampliando a repercussão desses filmes em muitos outros países. No Brasil, seus principais títulos foram exibidos em diversos festivais e Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991, Gus Van Sant) chegou a estrear no circuito de arte. O início dos anos 1990 também era o auge da cultura do VHS e filmes que fracassavam nas bilheterias do cinema viraram cults nas locadoras. Se não podemos afirmar com certeza que os filmes do New Queer Cinema influenciaram todo um cinema queer ao redor do mundo, é fato que, ao menos, eles criaram uma tendência que permitiu a proliferação de uma produção que desafiou cada vez mais as sexualidades dominantes. E de modos cada vez mais difusos: ora a partir de imagens e narrativas ainda mais ousadas, ora em tramas mais simples e acessíveis a uma plateia média. Os principais nomes, os mais comentados, conhecidos e premiados (todos garotos), conquistaram seu espaço definitivo no cinema independente norte-americano ao longo daquela da década. Todd Haynes fez Mal do Século (Safe, 1995), uma alegoria da Aids com Julianne Moore; Velvet Goldmine (1998), filme com maior repercussão, um retrato da cena glam londrina dos anos 1970 um tanto inspirado na vida e obra de David Bowie; e com Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002) conquistou definitivamente seu lugar ao Sol e suas indicações ao Oscar. Validado pelos prêmios da Academia alguns anos antes também tinha sido Gus Van Sant com Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997). O cineasta equilibraria filmes muito comerciais (Gênio...), artísticos com cara de comercial - Psicose (Psycho, 1998) -, ou 8 muito artísticos como Gerry (Gerry, 2002) e Elefante (Elephant, 2003). Por mais que Haynes e Van Sant estivessem flertando com os estúdios, nunca deixaram o queer, mesmo quando a trama não era explicitamente sobre sexualidades desviantes. Talvez principalmente nestes filmes é que o queer fica implícito, fica mais perigoso ainda, podendo alcançar um público sem ele mesmo perceber de imediato! Essa ampliação do conceito queer fica evidente quando levamos em conta os filmes realizados entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000. Os títulos que escolhemos exibir nesta segunda edição da mostra são, de fato, uma representação que acreditamos ser válida do que decidimos chamar de segunda onda do New Queer Cinema. A partir dos anos 1990 era possível perceber cineastas queers importantes em muitos países. Diretores que lideravam buscas por novas linguagens, novos meios de realizar um cinema moderno, revigorante, desafiador. Em Portugal temos o exemplo de João Pedro Rodrigues, e na Espanha, Pedro Almodóvar, que já provocava desde os anos 1980, mas nos anos 1990 conquistou um público mais amplo e conseguiu dar uma nova cara ao seu estilo queer. O cinema queer não só continuou a ser realizado com certa frequência, mas ganhou um espaço cada vez maior. Alguns dos principais cineastas daquele momento eram queers e suas obras eram completamente calcadas nessa constante presença e discussão de temas relacionados à sexualidade, corpo e erotismo: Apichatpong Weerasethakul, Tsai-Ming Liang, Haynes, Van Sant etc. Em muitos países era possível localizar filmes que incorporavam estilos queers em suas imagens. No Brasil, percebemos a variedade de estilos que abordam as questões: Djalma Limongi Batista utilizou uma abordagem mais aberta e sexualmente explícita em Bocage - O Triunfo do Amor (1997), enquanto Sandra Werneck incorporou um amor homossexual entre três possibilidades da vida do personagem interpretado pelo galã global Murilo Benício, em Amores Possíveis (2001). Escolhemos para “representar” o cinema brasileiro o título mais conectado com as discussões queers mundiais: Madame Satã (2002, Karim Aïnouz). Um filme que, discute de forma clara, direta e muito inteligente as questões de gênero e de sexualidade que tanto falam da história do Brasil, assim também como as lutas raciais e sexuais que aconteceram no país desde o início do século XX. É um típico filme do New Queer Cinema, ainda que feito uma década depois: histórico e ao mesmo tempo supercontemporâneo. Nos Estados Unidos, o cinema queer seguiu duas principais tendências. Alguns cineastas, como Bruce LaBruce se mantiveram ligados às principais ideias do New Queer Cinema, utilizando uma história canônica para reapropriá-la: no caso de LaBruce, Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., 1950, Billy Wilder) transformado em uma história que se passa no meio pornô gay: Hustler White (1996). O cinema queer que busca apresentar as nuances da sexualidade através de uma erotização dos corpos - masculinos e femininos, sem muita distinção - ganhou uma revigorada a partir de Larry Clark, fotógrafo de longa data que fazia sua estreia no cinema em Kids (1995), roteirizado por Harmony Korine, que depois dirigiria Vida Sem Destino (Gummo, 1997). Em ambos os filmes vemos retratos de uma 9 juventude desesperançada, sem futuro, mas ainda assim vivendo um presente intenso e portanto muito rico. Ou seja, um filme - e uma geração - que nasce em uma contradição e a celebra. Nada mais queer do que isso. A outra tendência é aproveitar o sucesso comercial de alguns filmes estrangeiros e mais independentes para criar histórias com um alcance de público maior, o que resulta em tramas mais lineares e um desenvolvimento maior de personagens. Os exemplos que selecionamos para esta mostra são Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999, Spike Jonze), que aborda de forma cômica e surrealista questões de identificação sexual e de gênero, e Meninos Não Choram (Boys Don’t Cry, 1999, Kimberly Pierce), baseado na história real do assassinato do transexual Brandon Teena. Naturalmente, outros filmes ficam um pouco no meio termo, entre tentar contar uma história e alcançar uma grande audiência e dedicar um tempo às pesquisas formais, como The Delta (The Delta, 1996, Ira Sachs), um filme que, mesmo que que não tenha entrado no nosso recorte final, dialoga muito com os temas da mostra. Porém, se há algo que suscita especial atenção de nossa parte nessa segunda onda é o fato de que realmente o cinema queer alcançou diversos cineastas dos mais variados estilos em todo o mundo. Do último filme do japonês Nagisa Oshima, Tabu (Gohatto, 1999) ao primeiro filme da argentina Lucrecia Martel, O Pântano (La Ciénaga, 2001), filmes ousados e diretores queers conquistavam o mundo. contemporâneo com Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, 1997), enquanto Tsai Ming-Liang construiu sua carreira estudando e pesquisando as necessidades e os desejos de seus personagens. Vive l’Amour (Ai Qing Wan Sui, 1994) é um de seus melhores filmes - venceu o Festival de Veneza - e serve como um bom ponto de partida para a sua obra. Mal dos Trópicos (Sud Pralad, 2002) apresenta uma estrutura narrativa que vai marcar o cinema de Apichatpong Weerasethakul e engloba em torno de si as muitas questões ligadas ao cinema queer: um apego a tradições e histórias de subversão romântica na primeira parte - com um soldado e um trabalhador rural vivendo seu amor abertamente nas florestas e cidades tailandesas - e um choque formal, imagético e místico na segunda parte, em que tudo o que imaginávamos ser certeza se cobre de muitas dúvidas. Mal dos Trópicos é uma metáfora quase perfeita para essa segunda onda do New Queer Cinema: o que parecia já estar consolidado e articulado passa a ser algo institucionalizado ou careta. As propostas agora são distintas, algumas mais ousadas e outras buscando um apelo mais popular. O cinema queer se convertia, então, em uma realidade, deixando de ser apenas um movimento. O Pântano funciona na mostra como o representante da América hispânica, uma região que viu crescer o número de filmes que dialogam com a questão queer. Nele, a questão da sexualidade se mistura com a paisagem e uma família decadente numa obra cinematográfica rica em atmosferas e sutilezas. Para além dos filmes sobre sair do armário e seus confrontos romantizados, a quebra de hetero e homonormatividades se dá de forma integrada às narrativas, muitas vezes sem que nenhuma discussão explícita de gênero seja feita. Essa fluidez de gêneros é a marca de muitos dos filmes, mesmo os que seguem mais o padrão narrativo clássico. Como exemplo, o alemão Aimée & Jaguar (1999, Max Färberböok), uma história de amor entre duas mulheres na Alemanha nazista em meio ao bombardeio sobre Berlim: uma esposa de general que tem sua primeira relação sexual lésbica com uma judia, por quem se apaixona. Muito mais ousado narrativamente é Lola + Bilidikid (Lola and Billy the Kid, 1999, Kutlug Ataman), que envolve ainda a questão da imigração - neste caso, um turco que mora em Berlim. O tema da imigração seria muito discutido pelo cinema queer da época, como em Head On (1998, Ana Kokkinos), além do horizonte pós-colonial, bastante presente no cinema de Claire Denis, como em Bom Trabalho (Beau Travail, 1999) ou em menor grau no romance de formação Rosas Selvagens (Les Roseaux Sauvages, 1994, André Téchiné). Na mostra, o cinema francês também está representado com Sitcom (1998, François Ozon), outro filme destinado a destruir ideias normativas, seja sobre a família, a sociedade ou as sexualidades. A globalização promovida pela segunda onda no New Queer Cinema trouxe para muito perto de nós o cinema queer oriental: Wong Kar-Wai firmou seu nome no cinema 10 11 FILMES 12 13 ROSAS SELVAGENS Les roseaux sauvages | 1994 | 110min Elenco: Ëlodie Bouchez, Gaël Morel, Stéphane Rideau, Frédéric Gomy. Às vésperas de sair da escola e entrar para a vida adulta, quatro jovens, que estão terminando o colegial, passam pelos últimos espinhos da adolescência. Tendo como plano de fundo o sudoeste da França em 1962, época do final da guerra da Argélia, Henri (Frédéric Gorny), um garoto argelino se envolve com o doce François (Gaël Morel), a bela Maïté (Élodie Bouchez) e o rude Serge (Stéphane Rideau). Juntos, eles nutrem amizade, desejos e paixões uns pelos outros. Direção: André Téchiné Roteiro: Olivier Massart, Gilles Taurand, André Téchiné Produção: Georges Benayoun, Alain Sarde Produtor Associado: Chantal Poupaud, Paul Rozenberg Direção de fotografia: Jeanne Lapoirie Montagem: Martine Giordano Casting: Jacques Grant, Michel Nasri Equipe de arte: Pierre Soula, Elisabeth Tavernier, Agnès Lévy, Leonardo Haertling Equipe de som: Yunus Acar, François Groult, Pierre Lorrain, Jean-Luc Marino, Pierre Martens, Jean-Paul Mugel Festivais: Festival de Chicago (1994), Festival de Nova York (1994), Festival de Montréal (1994) etc. Prêmios: Indicado a 8 prêmios César 1995 e vencedor de melhor filme, direção, roteiro e atriz revelação (Élodie Bouchez) 14 15 ROSAS SELVAGENS Pedro Maciel Guimarães No início de Rosas Selvagens (Les Roseaux Sauvages, 1994), Gaël Morel conta a Élodie Bouchez o último filme que o impactou. Ele descreve a cena de uma mulher que confunde realidade com ilusão, conta suas sensações, explica os personagens e ressalta o quanto ficou maravilhado com a atriz principal. O filme em questão era Através de um Espelho (Såsom i en Spegel, 1961), de Ingmar Bergman, e a atriz, Harriet Andersson — a mesma que mexeu com toda a geração da nouvelle vague francesa. Andersson havia sido a Monika de Bergman em Monika e o Desejo (Sommaren med Monika, 1953) e marcou a pupila e a libido de toda uma geração de cinéfilos pela liberdade temática e plástica com a qual seu corpo e sua postura de mulher foram filmados pelo cineasta sueco. Nos dois filmes-manifesto da Nouvelle Vague existem citações diretas à personagem Monika. Em Acossado (À Bout de Souffle, 1960), Godard cita explicitamente o olhar para a câmera na cena da libertação de Monika no final da trama, quando Patricia Franchini (Jean Seberg) dá a cara a tapa aos espectadores por ter causado a morte do namorado (Jean-Paul Belmondo). Em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), François Truffaut presta uma homenagem a Monika na cena em que Doinel (Jean-Pierre Léaud) rouba uma foto da atriz numa entrada do cinema. Téchiné, que recheou as mesmas páginas da revista amarela na qual Godard e Truffaut haviam se ilustrado como críticos alguns anos antes, mostra, enquanto cineasta, que a rebelde Monika-Harriet continuava influenciando a imaginação dos jovens apaixonados por cinema. Com a referência, a linhagem de fraternidade entre os dois filmes, cineastas e personagens está estabelecida. O jovem secundarista vivido por Gaël Morel (não por acaso chamado François) poderia ser uma versão tardia do alter ego de Truffaut (Doinel) – seria ele também alter ego de André Téchiné? As coincidências se acumulam: tanto a série de filmes com o personagem Doinel, que se estende até 1979, como Rosas Selvagens trabalham a questão do amadurecimento sexual e afetivo. Doinel se apaixona por diversas garotas a cada filme e sonha em viver com elas uma relação que termina mais cedo que ele gostaria. É desajeitado e carismático. Já François está apaixonado pelo colega de dormitório, o belo Serge 1 Nota dos Editores: Referência a Nas Garras do Vício (Le Beau Serge, 1958), filme de estreia de Claude Chabrol. 16 (Chabrol passou também por aqui)1 e tem uma relação fusional com a melhor amiga, Maitê. Fala rápido como uma metralhadora, sofre de asma e é o melhor aluno da turma. François vive dramaticamente a guerra da Argélia, tema que também está nas histórias de Doinel, embora de maneira mais atenuada. Ambos viveram na mesma época diegética (os anos 1960), amam literatura, sabem poemas de cor, dão a vida pelo cinema. Tanto o filme de Truffaut quanto o de Téchiné constroem-se no registro do romanesco e buscam o envolvimento pessoal do espectador com os personagens e seus problemas. Truffaut foi o cineasta das boas histórias, contadas com retidão e paixão. Téchiné, roteirista de mão cheia, também — embora tenha escolhas estéticas mais ousadas, principalmente em torno da expressão do desejo. Ambos amam a juventude e retornam a ela com nostalgia. Até na elaboração de cenas, existem ecos entre os dois universos estéticos. Num determinado momento das aventuras de Doinel, em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), ele se planta na frente de um espelho e repete inúmeras vezes, até quase perder o fôlego, seu nome e o nome das duas mulheres que povoam seus sonhos. François, do mesmo modo, quando se dá conta da sua atração por homens, usa o espelho como interlocutor para tentar se convencer: “eu sou gay, eu sou gay, eu sou gay!”. O tom encontrado por Téchiné para tratar um assunto grave – a guerra, a relação política entre colônia e metrópole, o impacto do conflito na vida de jovens soldados – é o da afirmação. Rosas Selvagens é um filme positivo, fresco, passado no verão de todos os belos sentimentos, na tradição de Rohmer e das descobertas feitas ao som das cigarras e sob o perfume do sol nos campos de lavanda do sul da França. A afirmação sexual gay de François não é motivo de chacotas ou violências – a não ser do personagem do jovem politizado que acaba se tornando amigo do protagonista. François vai se tornar um adulto emancipado por ser corajoso e saber se posicionar na vida. Possui o frenesi da juventude, mas tem colhões suficientes para entrar na loja do gay notório da cidadezinha para lhe pedir conselhos sobre seu futuro. Suas questões de coração são ao mesmo tempo pessoais e universais, mas é através da amizade que sua pretensão de parceria e pertencimento se realiza. Gaël Morel, Stéphane Rideau (Serge) e Élodie Bouchez (Maitê) formam uma verdadeira irmandade de cinema a partir da figura tutelar de Téchiné. Gaël tornou-se diretor e continua trabalhando com os antigos companheiros de verão. Na obra de Téchiné, essa maneira singela, quase pueril, de falar de sexualidade é exceção. Filmes como Rendez-vous (1985), J’embrasse pas (1991) e Alice e Martin (Alice et Martin, 1996) têm uma visão muito mais desencantada e crua dos relacionamentos. E não é por serem basicamente filmes em torno de relacionamentos heterossexuais. As Testemunhas (Les Temoins, 2007), um dos melhores 17 longas da safra recente de Téchiné, apresenta histórias de personagens gays com amargor – o tema do filme é a consequência da Aids na vida sexual de um grupo de amigos. Rosas Selvagens é um filme de impacto geracional, que povoou o imaginário de cinéfilos dos anos 1990, assim como o seu filme-farol o fizera 30 anos antes. Assim como a obra de Truffaut-Doinel, fez seus atores estabelecerem com os espectadores relações de proximidade, quase de amizade; mostrou a estes um cinema outro que o de Hollywood, e os armou para encarar os problemas da vida adulta. 18 19 VIVE L’AMOUR Ai Qing Wan Sui | 1994 | 118min Elenco: Chen Chao-jung, Lee Kang-sheng, Yang Kuei-Mei, Lu Yi-Ching Sinopse: Hsiao-kang vende urnas funerárias. Ele é extremamente tímido para trabalhar com vendas, mas é assim que ganha a vida. Mei-mei é corretora imobiliária. Vive sozinha em um pequeno apartamento e acorda muito cedo para despachar anúncios imobiliários para os jornais. De dia visita os apartamentos com os compradores interessados. Ah-rong vende vestidos femininos na entrada de uma grande loja de departamentos. Em uma noite de inverno os três se reúnem em um apartamento vazio do centro de Taipei. Estão juntos, mas não totalmente. Direção: Tsai Ming-Liang Roteiro: Tsai Ming-Liang, Tsai Yi-chun, Yang Pi-ying Produção executiva: Feng-Chyt Jiang Produção: Hu-pin Chung, Li-Kong Hsu Direção de Produção: Wei-hua Tzon Direção de fotografia: Pen-Jung Liao, Ming-kuo Lin Montagem: Shia-cheng Sung Equipe de arte: Chien-hsun Chen, Chung-hung Luo, Jean Mei Tang Equipe de som: Chiang-Sheng Hsin, Ding-Yi Hu, Ching-an Yang, Jing-an Yang Festivais: Festival de Veneza (1994), Festival de Toronto (1994), Festival de Chicago (1994) etc. Prêmios: Vencedor do Leão de Ouro e prêmio Fipresci no Festival de Veneza. Indicado a 5 Golden Horse (prêmio principal de Taiwan): Melhor ator (Lee Kang-sheng) e ator coadjuvante (Chen Chao-jung) e vencedor de 3 prêmios (filme, direção e efeitos sonoros) 20 21 JUNTOS E SÓS: VIVE L’AMOUR DE TSAI MING-LIANG Denilson Lopes Entre os cineastas asiáticos que emergem nos anos 1990, Tsai MingLiang ocupa um lugar fundamental na possibilidade de pensar um New Queer Cinema fora dos EUA (MARTIN, 2003; BERRY, 2005). Esta posição já ficou visível no seu segundo longa-metragem, Vive l’Amour (Ai Qing Wan Sui, 1994), por sua encenação de fragmentos da vida de três jovens em Taipei sem recorrer aos conhecidos clichês de pensar uma relação a três como uma fase na juventude que passaria em função da substituição por casais hetero e homonormativos na vida adulta. O que acontece é a precariedade de um outro modo de vida, de uma outra forma de estar junto. Como espaço, nada mais interessante do que o apartamento para alugar que se converte em ponto para os encontros ocasionais da corretora Mei Ling (Yang Kuei-Mei). Sem que ela saiba, o apartamento se torna uma espécie de morada para um de seus amantes, Ah-Jung (Chen Chao-jung), camelô nas ruas de Taipei, e Hsiao Kang (Lee Kang-sheng), um jovem que vende urnas funerárias. A casa é, ao mesmo tempo, um lugar de passagem e de intimidade. Casa incerta, provisória, já que em breve seria vendida - Mei teria que trocar este apartamento por outro lugar para seus encontros fortuitos e Ah-Jung e Hsiao Kang, aparentemente sem casa, teriam que encontrar um outro lugar para dormir. Dos personagens, é Hsiao Kang que mais tenta fazer desta casa destituída de marcas pessoais, com poucos móveis, um espaço lúdico, onde ele se veste de mulher, brinca com uma melancia e até mesmo corta os pulsos. O objetivo, mesmo aqui, não é tanto o suicídio, mas perceber a si mesmo. Seria isso que Slavoj Zizek (2003, p. 24) analisa quando fala que os cortes no corpo seriam uma última tentativa de afirmar uma sensação de realidade, de que nem tudo é simulacro e evanescimento? Hsiao Kang não aparece deprimido antes do corte, nem parece redimido depois. Um corte é só um corte. Nada de explicações psicológicas. O corpo, já na primeira cena quando olha para uma câmera de vigilância, só parece confirmar uma existência que se esvai absorvida em si mesma e dispersa no espaço. Os personagens, quase sem nomes, não têm família nem passado, conversam pouco, sem grandes vínculos, 22 transeuntes na cidade, sempre dispostos a experimentar as possibilidades de encontro. Como quando Ah-Jung e Mei se veem pela primeira vez num restaurante, e depois pelas ruas de Taipei, passando pela troca de telefones realizada, mas não mostrada, até os dois encontros sexuais no apartamento quase vazio. Ou quando Hsiao Kang, na primeira cena do filme, vê uma chave do lado de fora do apartamento e a pega, entregando, tempos depois, uma cópia da mesma chave para Ah-Jung. E é este acaso que faz com que estes dois homeless se encontrem dentro do apartamento. Quando Ah-Jung descobre que Hsiao Kang também está usando o apartamento como moradia, cria-se um vínculo entre eles, um vínculo a partir do espaço que também transita para algo mais além dos dois encontros sexuais entre Ah-Jung e Mei. Tudo parece uma possibilidade aberta que também pode não levar a nada mais do que ao beijo que Hsiao Kang dá em Ah-Jung enquanto este está dormindo. A ação acontece logo após Hsiao Kang assistir escondido à transa de Ah-Jung e Mei e se masturbar debaixo da cama. Também o sexo não significa intimidade nem transgressão. Apenas um momento. Tudo são possibilidades precárias. Curiosamente, a explosão do choro convulsivo de Mei no banco de um auditório ao ar livre, depois de caminhar por um parque em obras, mas que também poderia ser em ruínas, não é explicada. Certamente não é uma catarse, seja para a personagem, seja para o espectador. Aliás, quando parece que o filme está terminando e a tela preta surge, ainda ouvimos uma volta ao choro. Poderíamos pensar que justamente a Mei, uma corretora de imóveis, bemvestida e focada na sua profissão, a personagem mais integrada ao mundo do trabalho, é destinado o gesto mais dramático de insatisfação, enquanto que Ah-Jung e Hsiao Kang, que não parecem se interessar tanto por seus trabalhos, demonstram ter uma relação mais neutra com a vida, sem grandes alegrias ou grandes tristezas. A última imagem de Mei é o choro, filmado quase em close, num filme em que há mais planos médios e distanciados, como se as lágrimas fossem nos tocar, nos invadir. Não saímos, no entanto, identificados com o sentimento da personagem nem redimidos, marcados por aquela leveza quando assistimos a algo muito belo, embora doloroso. Não choramos junto com Mei. Não podemos compartilhar este sentimento. Apenas somos atingidos, um pouco perplexos, um pouco incomodados, na longa sequência que parece não ter fim, enquanto que de Ah-Jung e Hsiao Kang fica um breve beijo, que talvez nem AhJung tenha percebido. Uma outra intimidade. A intimidade possível não só entre pessoas que se encontram por acaso, algo que não passa pela confissão e pela autoexposição. A vida aparece como uma sucessão de possibilidades abertas, capítulos desconectados, estórias rápidas, sem sínteses nem conclusões, talvez algo mais do que a mera solidão enfatizada pelos críticos do individualismo e 23 do narcisismo em nossas sociedades. Pode ser o amor, mas pode ser o desejo de estar junto. Para Tsai, lágrimas são lágrimas, um beijo é um beijo, o toque é o toque, nada de redentor, transgressor, exuberante, transformador, apenas algo que faz seus personagens se moverem para um outro espaço, para um outro momento, a que não temos acesso. Podemos no máximo ser atingidos, isso seria o que é possível compartilhar, estar com os personagens, acompanhar seus gestos, nada mais nos será revelado, não há nada a ser interpretado, não há símbolos nem alegorias. Os personagens não são reduzidos a tipos sociais ou a vítimas de preconceitos, apenas à experiência concreta e fílmica das quase duas horas em que passamos em sua companhia. As marcas sociais e históricas existem, mas elas entram sutilmente nos corpos, nos gestos, nas atitudes, sem explicações. Taipei aparece sem grandes marcas, sem parecer um cartão-postal (BRAESTER, 2010), no seu cotidiano, definida pelo constante fluxo de carros que cede lugar ao vazio noturno. Vazios estão inclusive os apartamentos por onde os três protagonistas transitam. A casa transforma-se de um não lugar num lugar de encontros, onde os personagens masculinos parecem fantasmas, para não serem percebidos, sobretudo o personagem de Hsiao Kang. Mas todos os três, anônimos na cidade e na casa que habitam, podem desaparecer, sair de cena e talvez ninguém note. O que talvez reste são os encontros. Não, nem isto. BRAESTER, Yomi. Painting the City Red: Chinese Cinema and the Urban Contract. Durhan: Duke University Press, 2010. MARTIN, Fran. “Vive l’Amour: eloquent emptiness”. In: BERRY, Chris. Chinese Films in Focus. Londres: BFI, 2003. WU, Meling. “Postsadness Taiwan New Cinema”. In: LU, Sheldon; YEH, Emilie (org.). Chinese Language Film. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2005. ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003. Vive l’Amour é um drama desdramatizado marcado por elipses que não chegam a quebrar a narrativa tradicional, mas que não busca dar densidade psicológica aos personagens como no grande teatro naturalista do século XIX. Não há monólogos interiores nem narradores. Os personagens falam pouco e de maneira contida. Em vez do excesso de ação ou de emoção, a ênfase está na ambiência e no tom, nas pausas e silêncios, colocando em cena personagens comuns – nem épicos nem trágicos –, personagens medianos, com vidas medianas, nada excepcionais nem heroicas, com falas convencionais sobre assuntos banais, sem nenhuma pretensão intelectual e poética, frases de efeito, reflexões abstratas e lições de vida. São sujeitos em eclipse não por serem alienados, anônimos na multidão urbana como o homem moderno, mas figuras quase fantasmais, por marcarem pouco a sua presença, a sua voz, a sua vida. Contudo não possuem nenhuma dimensão metafísica. Referências bibliográficas BERRY, Chris. “Where is the Love? Hyperbolic Realism and Indulgence in Vive l’Amour”. In: BERRY, Chris; LU, Feii (org.). Islands on the Edge. Taiwan New Cinema and After. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2005, p.89-100. 24 25 KIDS Kids | 1995 | 91min Elenco: Leo Fitzpatrick, Justin Pierce, Chloë Sevigny, Rosario Dawson Sinopse: O filme é focado em um dia na vida de um grupo de jovens sexualmente ativos de Nova Iorque e mostra seu comportamento diante de sexo e drogas durante a era do HIV em meados dos anos 90. O filme tem como protagonista um skatista em busca de sexo e drogas. Direção: Larry Clark Roteiro: Harmony Korine Produção executiva: Patrick Panzarella, Gus Van Sant, Michael Chambers Co-Produção: Cathy Konrad, Christine Vachon, Lauren Zalaznick Música: Lou Barlow, John Davis Direção de fotografia: Eric Alan Edwards Montagem: Christopher Tellefsen Casting: Alysa Wishingrad Equipe de arte: Ford Wheeler, Kim Marie Druce, Jennifer Alex Nickason, Michael Preston Equipe de som: Laurel Bridges, Wendy Hedin, Charles R. Hunt, Jan McLaughlin Festivais: Festival de Sundance (1995), Festival de Cannes (1995), Festival de Locarno (1995) etc. Prêmios: Indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes; Indicado a 4 prêmios no Independent Spirit Awards (filme de estreia, roteiro de estreia, atriz coadjuvante - Chloë Sevigny) e vencedor de Melhor atuação estreante (Justin Pearce). 26 27 LITTLE TROUBLE GIRLS AND BOYS - IMPRESSÕES DE INFÂNCIA E LEMBRANÇAS DE KIDS João Marcos de Almeida 1996. Ano da morte de Renato Russo, do hit É o Tchan, ano em que O Quatrilho é indicado ao Oscar, a explosão de Daft Punk e Prodigy. Foi o ano da multiplicação de festas de música eletrônica nas grandes cidades – e fora delas, nas raves. Também foi o ano em que Michael Jackson veio ao Brasil dizer que “eles não ligam pra gente”. Extraterrestres visitaram a cidade de Varginha. É o ano da vaca louca, do lançamento do Nintendo 64 e da separação de Lady Di e Príncipe Charles. Foram lançados Wonderwall, Don’t Speak, Devil’s Haircut e Ironic. Também é o ano do lançamento de Kids nas locadoras no Brasil. Aos 10 anos, após ler e ouvir sobre o filme em revistas especializadas e programas de TV, apesar da idade, ou talvez especialmente por causa dela, eu estava louco para ver Kids (1995, Larry Clark). Qualquer um que acompanhasse minimamente cinema sabia do filme e tinha, no mínimo, grande curiosidade para ver. O cinema independente americano estava no topo, com Robert Rodriguez, Gus Van Sant, Kevin Smith, Richard Linklater e Quentin Tarantino. Mas alugar Kids era completamente diferente do que alugar qualquer outro filme. Em idade ainda do que seria hoje ensino fundamental, com aparência de ainda mais novo do que era, tinha medo que entregar Kids para o balconista da videolocadora seria lido como “Olha, esse jovem está interessado em sexo, talvez eu devesse avisar sua família”. Então, resolvi fazer o caminho inverso: pedir para minha mãe alugar a fita. O plano era simples, entregar um papel para ela com alguns outros nomes de filmes mais razoáveis como Antes do Amanhecer e Batman Eternamente. Não deu tão certo, já que o telefone tocou alguns minutos depois em casa e era ela perguntando se era esse filme mesmo que eu queria ver, já que o funcionário a havia alertado sobre o conteúdo possivelmente desagradável ao gosto dela. Afirmei que era esse mesmo e o filme acabou chegando em casa e consegui assisti-lo1. 1 Nota dos editores: O autor menciona neste parágrafo os filmes Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 28 Desde então, algumas das imagens que vi durante o tempo entre colocar a fita no videocassete e rebobiná-la 90 minutos depois nunca mais sairiam da minha cabeça. Também a partir daí criei ídolos que até hoje são referências para o meu trabalho2: Larry Clark, Harmony Korine e Chloë Sevegny. O casal Chloë e Harmony seriam até hoje o casal mais bonito, fotogênico e interessante que já houve. Eu acompanharia os dois em cada trabalho e nas fotos de imprensa. E mesmo sendo Kids o único filme de Larry Clark que nunca revi, foi o que mais usei de referência de direção, consciente ou inconscientemente. Para mim, o universo do filme chegaria logo na minha vida real, e era tudo muito claro como as coisas iam se desenvolver na minha adolescência. Eu me apaixonaria por Jennie, a personagem de Chloë Sevegny, que obviamente era a garota dos meus sonhos. Telly e Casper, interpretados por Leo Fitzpatrick e Justin Pierce, eram a típica dupla de que eu fugiria, mas que me atormentaria com questões de virilidade. Eu seria um daqueles personagens mais jovens que eles, que acaba fumando maconha na festa dos colegas mais velhos para provar que era adulto o suficiente e mentir que não era mais virgem. Ou mais tarde seria o personagem de Harmony, o maluco da casa noturna que tentava animar Jennie. Pelo menos, era assim que eu me sentia ao assistir ao filme. Ao mesmo tempo que eu tinha um pouco de medo daquele ambiente, sentia uma forte atração em pertencer a um grupo daquele tipo e sentia que eu não tinha escapatória, que eu passaria por aquelas experiências. Claro que eu pensava que seria mais cuidadoso no sexo que eles, eu me cuidaria para não me infectar pelo HIV, acreditando que eu logo perderia a virgindade. O primeiro plano do filme já é um choque. Nunca havíamos visto crianças se beijando daquele jeito no cinema – nem ouvido, já que o barulho do beijo deles é perturbador – em primeiro plano, em 35mm, e, mais uma vez: daquele jeito. Logo depois, o personagem de Leo convence a companheira, de 12 anos, a ter relações sexuais com ele. Esse começo é realmente difícil de esquecer. Logo de cara o filme explicita que crianças de 12 anos têm desejos sexuais, o que era realmente algo fora do comum – não era discutido no cinema em algum tempo ou com um alcance de público tão extenso. Eu tinha ainda menos idade que eles e, por isso, me animava que talvez eu pudesse exercer minha sexualidade na prática em tão pouco tempo. Era estranho que, em um filme onde os personagens masculinos eram 1995, Richard Linklater) e Batman Eternamente (Batman Forever, 1995, Joel Schumacher), mas preferiu não incluir as informações no decorrer do texto. 2 Nota dos editores: João Marcos de Almeida é diretor, montador, diretor de arte de vários filmes, como A Bela P... (2008), Eva Nil cem anos sem filmes (2009) e Meu amigo que trabalhou com Manoel de Oliveira, que fez cem anos (2012), além de desenhar os créditos e cartazes de vários filmes brasileiros. 29 tão misóginos e homofóbicos, os corpos de rapazes e garotas eram mostrados do mesmo modo. Sentia que era permitido ter prazer ao observar os corpos dos dois gêneros. É difícil não enxergar homoerotismo na cena em que Telly leva Casper para sua casa, tiram a camisa no quarto e um se exibe para o outro. As meninas podiam se beijar apenas por estar com vontade, como amigas, e recusar o beijo do colega, assim como na cena da piscina, mais para o final do filme. Beijo entre diversas pessoas ao mesmo tempo era permitido, assim como era permitido assisti-las como voyeur, visto na cena da casa noturna, onde o personagem do Harmony leva Jenny para observar um pouco da ação. Diversos tipos de sexualidade eram normais, permitidas e, o melhor: tudo era lindo, divertido e perigoso. A novidade também estava nos corpos que eram mostrados. Eram corpos bonitos, mas em um padrão de beleza completamente diferente do em voga então na televisão e propagandas de moda. As garotas não eram tão magras e os seios não eram tão grandes. Não era tudo tão proporcional, também. Os rapazes eram bem menores e mais magros, o que me animava, já que eu me sentia completamente indesejável com minha magreza exagerada. A linguagem que os personagens usavam, os temas das conversas e o gestual eram muito verdadeiros. Era raro ver na tela adolescentes que se comportavam como adolescentes: tinham muito tempo livre, passavam muito tempo na rua, bebiam, faziam pequenos furtos, paqueravam, causavam problemas com outros grupos por nada, brigavam por diversão. Fazia toda a diferença ter um roteirista de 19 anos (idade de Harmony Korine na época), que, além de jovem e skatista, era fã de Werner Herzog, cinéfilo e se inspirava nas histórias reais de seus amigos, muitos inclusive no elenco. A vida desglamorizada filmada de modo mais cru, muito frequente no cinema independente americano dos anos 1970, já estava fora de moda fazia um bom tempo, e essa parecia uma abordagem fresca e necessária. logo iniciaria minha vida sexual – o que não aconteceria de verdade – e que nunca correria nenhum risco, que era fácil se prevenir. A questão do HIV era frequente o tempo todo, principalmente para os jovens. Eu era dessas crianças que passava um bom tempo assistindo MTV diariamente e vendo programas para jovens um pouco maiores que eu. Ali, a Aids era alertada o tempo todo. Quando assisti ao filme, era uma questão básica, que logicamente seria abordada. Mas claro que não era tão óbvio, e o filme marcou especialmente por abordar a questão de modo criativo. Anos depois, impressionou-me saber que muitos amigos haviam conhecido o filme na escola, geralmente no ginásio, que havia sido usado como material didático de apoio para alertar sobre a doença. A maioria deles conta que ficou bastante chocado ao final, apesar da euforia inicial. Já os amigos que viram em casa (a maioria escondido dos pais), viam naquele universo um pouco um objetivo de vida, como eu. Em um dos relatos de exibição em sala de aula, a professora da quinta série do fundamental, após mostrar o filme, adaptou o jogo Detetive, onde é preciso descobrir quem é o assassino, para descobrir quem é o portador do vírus. E afinal, Jesus Christ, what happened? Voltando ao filme 20 anos depois, e assistindo hoje apenas pela segunda vez, fica claro como ele permeou boa parte da minha vida. Nunca deixei de falar sobre o filme, nem discuti-lo com amigos, copiei estilos de roupa, ouvi músicas do universo do filme, tentei andar de skate. Nada deu muito certo, mas rever o filme me fez perceber que sou, sim, citando as músicas do Sonic Youth e Blur que ouvia na mesma época, um daqueles problemáticos pequenos garotos e garotas. O comportamento das meninas no filme me chamava bastante atenção, elas discutiam sexo assim como os rapazes: falavam de virgindade, sexo selvagem, esclareciam seu desejo. No grupo dos rapazes da minha escola, era normal falar de sexualidade, embora nenhum de nós realmente soubesse nada daquilo, mas era novidade para mim aquela intimidade do mundo feminino. Confesso que fiquei um pouco decepcionado, 20 anos depois, quando li que Chloë Sevegny achava na época da filmagem os diálogos dessa cena vulgares, que ela não costumava falar daquele jeito com as amigas. A cena da enfermaria, em que as meninas fazem o teste de HIV, tem muito da vergonha do jovem ao se expor aos médicos. Já os meninos dizem não se importar em ficar doentes. Eu certamente não era nenhum deles. Achava que 30 31 HUSTLER WHITE Hustler White | 1996 | 79min Elenco: Tony Ward, Bruce La Bruce, Alex Austin, Kevin Kramer, Ron Athey, Glen Meadmore Sinopse: Montgomery Ward é um batalhador em Los Angeles que aparece flutuando em uma banheira de hidromassagem. Sua voz começa o relato das circunstâncias que levaram à morte. Tudo começa com um escritor alemão chamado Jürgen Anger que para na Califórnia, com a intenção de escrever um livro sobre prostituição masculina. Quando ele conhece Monty, o contrata por mil dólares para que conte a história de sua vida e os detalhes de seu trabalho. Direção: Bruce LaBruce, Rick Castro Roteiro: Bruce LaBruce, Rick Castro Produção: Bruce LaBruce, Jürgen Brüning Direção de fotografia: James Carman Montagem: Rider Siphron Casting: Jamool Direção de arte: Steve Hall, Tyr Jung-Hall Edição de som: Lawrence W. Wemdleton, Rider Siphron Mixagem de som: Mark Meyuhas Festivais: Festival de Berlim (1996), Festival de Toronto (1996), Festival do Filme Lésbico e Gay de Seattle (1996) etc. 32 33 HUSTLER WHITE - A CAVALO ENTRE O DESEJO E A MORTE Will Domingos […] na paquera de ‘entendidos’ e michês, esta procura de compradores e vendedores de sexo percorre itinerários urbanos, territorialidades materiais; as circunvoluções desejantes são estampadas no plano real da paisagem urbana em movimento. Elas usam, em verdade, circuitos moleculares que atravessam a massa de transeuntes – um aparelho de captura do olhar que singulariza um sujeito desejante na multidão, separando-o fugazmente da fileira de rostos “facsimilizados” e anônimos. O olhar de relance da prostituta, do “entendido”, do michê […] sexualiza e acende a multidão anódina, […] por um lado, abrem-se ‘pontos de fuga’ libidinais, mas, por outro, a prostituição procede a uma reconversão econômica desse fluxo desejante. (PERLONGHER, 2008, p. 247248). O personagem do michê é um ator social marginal, desviante e promíscuo diante do corpo social hegemônico e também da comunidade gay em processo de disciplinarização. O seu trabalho desenvolve-se num território ambíguo “[…] a cavalo entre o desejo e a morte, entre a disrupção passional e a submissão ao sistema de regras e preços do mercado” (PERLONGHER, 2008, p. 253). A partir de um repertório teórico e de suas pesquisas de campo, Néstor Perlongher (2008) oferece descrições e análises minuciosas dos modos de configuração da paquera na prática da prostituição urbana, em seu livro O Negócio do Michê. Se o autor não se priva de manifestar seus desejos numa escrita encharcada também por um estilo confessional e repleto de atravessamentos entre o falar sobre o outro e a troca de vivências, as mise-en-scènes cinematográficas em 34 torno do personagem do michê também fizeram uso de qualidades sensoriais, autoetnográficas e subversivas desse fluxo desejante, em que se dão o trottoir1 e o cruising2 dessas existências performáticas. Nos anos 90, além de Hustler White (1996, Bruce LaBruce e Rick Castro), destacaria – seja pela forma fílmica ou pelo discurso transgressor ou mesmo assimilacionista e higienizado sobre o michê – filmes como Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991, Gus Van Sant), The Living End (1992, Gregg Araki), Not Angels But Angels (1994, Wiktor Grodecki), Body Without Soul (Telo bez Duse, 1996, Wiktor Grodecki), Skin and Bone (1996, Everett Lewis), From The Edge Of The City (Apo tin Akri tis Polis, 1998, Constantine Giannaris), e nos anos 2000, obras como Vagón Fumador (2001, Verónica Chen), Garçon Stupide (2004, Lionel Baier), Mistérios da Carne (Mysterious Skin, 2004, Gregg Araki) e Greek Pete (2009, Andrew Haigh). Se os mais recentes exemplares desse universo temático, tais como Greek Pete, Homem ao Banho (Homme Au Bain, 2010, Christophe Honoré) e Eastern Boys (2013, Robin Campillo), apresentam estéticas realistas e corpos fílmicos com preocupações estético-discursivas mais próximas de filmes do cinema underground americano dos anos 1960 e 19703, com suas histórias e conflitos menores, diante da priorização da experiência sensorial do cotidiano ocioso do michê, seus prazeres prosaicos, as práticas sexuais dos personagens e suas futilidades, em parte é porque o “realismo opera com vistas a atender às necessidades impostas por novos contextos histórico-culturais” (SALOMÃO, 2005, p. 24). Estamos falando de filmes que promovem um convite às sensações que passa muito mais pela aproximação entre a arte e a vida, através de articulações entre efeitos do real e efeitos de dramaturgia, em que a “ficção absorve a força do […] documentário, usando-a para seu benefício” (SALOMÃO, 2005, p. 15),4 do que 1 O trottoir é a maneira comum de se referir à prostituição de rua, feita em calçada, onde o profissional se coloca como objeto a ser ofertado e ritualiza o desejo e seu valor em determinados gestos codificados. 2 Em momentos históricos quando as relações homossexuais ocupavam contextos menos tolerantes e até mesmo proibicionistas, o cruising comumente era conhecido como uma espécie de ritual de olhares, gestos e códigos diversos de que os homens se utilizavam para se relacionar sexualmente com outros homens, na esfera do anonimato. 3 A partir de questionamentos da ideologia dominante do fazer cinematográfico e da rejeição da norma sexual e social, esse movimento de experimentação explorava sem pudor os corpos, desejos e práticas marginalizadas (BETTIM, 2015), desconstruindo os essencialismos identitários e estéticos, caracterizando-se por uma performatividade do desvio, associada anos depois com o imaginário queer. 4 Menos pautados por um movimento narrativo que progride de acordo com ações dramáticas claras diante de conflitos facilmente identificados e reações psicológicas interligadas à construção moral e identitária dos personagens, esses filmes convocam sensações privilegiando o corpo – da imagem e dos sujeitos – e a emoção, fazendo disso acontecimentos em si mesmos, em que afetação e ação se confundem e os pesos se igualam. Aposta-se assim numa fluição e fruição mais sensorial do que numa lógica de leitura objetiva, racional e sentimentalmente pré-organizada na dinâmica da representação. 35 de experiências estéticas baseadas em experimentações na imagem, na estética do exagero vinculada à cultura pop, às promessas do digital e aos perigos da higienização das práticas sexuais dissidentes no contexto da Aids, como é o que se manifesta na radicalidade enérgica dos filmes do New Queer Cinema.5 O ímpeto maior presente em boa parte das produções audiovisuais dessa geração certamente estava na visibilidade performativa dos estilos de vida dissidentes e no desejo como elemento central das histórias. Diante disso, desfaziam-se as identidades no movimento instável, caótico e amoral das subjetividades e territorialidades dos indivíduos. Em Hustler White (1996), Bruce LaBruce e Rick Castro experimentam possibilidades de aproximação entre a estética pop, a visualidade pornográfica, a violência estilizada e cômica e o final feliz ironizado, a partir de perturbações na linguagem clássico-narrativa e da reapropriação de clichês da comunidade gay. Acompanhamos a busca do escritor Jürgen Anger (interpretado por Bruce LaBruce) pelo michê Monti (Tony Ward), pela região de Santa Monica Boulevard, em Hollywood. O escritor está na cidade pesquisando a indústria pornográfica e a prostituição, quando se apaixona de modo obsessivo pela imagem de Monti, ao cruzar por ele em uma esquina. No filme, coloca-se em cena toda uma cultura de gestos, imagens e sensações, mas a fluidez dos corpos, da cidade e da multiplicidade das vivências não permite o encontro de uma organicidade homogênea e harmônica em torno da lógica das ações no espaço e no tempo, o que acaba particularizando essa forma de apropriação em torno do mainstream. A ocorrência disso se dá por sucessivos processos de desterritorialização e reterritorialização do desejo, dos limites do corpo e do corpo social, algo que remete à condição de deriva dos michês. Quando os desejos, as corporalidades, as sexualidades, os gestos e afetos escorregam das arquiteturas da heteronormatividade, estamos diante de outros movimentos de pertencimento à experiência dos espaços de visibilidade e às políticas do cotidiano. Assim, a normalidade não é o centro, e o desvio se torna a condição dessas existências, assim como o comportamento da materialidade fílmica. Se esses personagens fossem vistos como minorias desviantes, seria difícil apostar na existência de algo como um gueto gay, uma vez que esses grupos não são tidos como agrupados no filme, muito pelo contrário. A sociabilidade aqui é marcada pela sobrevivência e pela lei do mais forte, em que não há espaço para 5 Esse convite às sensações no New Queer Cinema era atravessado pela constante do excesso tanto na forma estética quanto num realismo naturalista ambíguo, já que não havia abandonado completamente a dramatização das emoções e dos gestos do corpo, a qual se intensificava nas narrativas quase sempre no instinto da transgressão, da violência, do descontrole emocional e do prazer, configurando o aspecto traumático de um tipo de realismo por vezes associado ao choque, segundo autores como Hal Foster, Beatriz Jaguaribe, entre outros. 36 julgamentos em torno de bem, mal, certo, errado. Toda a noção de desvio presente no filme está vinculada à ideia de prazer visual. E quanto a isso, não estamos falando somente do prazer sexual proporcionado pelo sexo pornográfico, mas também de encenações de uma cultura espetacularizada da violência e do choque. Por isso, há uma obsessão da câmera em filmar de perto e com tempos alongados, qualquer coisa que possa causar sensações no corpo do espectador. No que diz respeito às práticas sexuais dissidentes e subversivas, destacam-se cenas sadomasoquistas e da cultura BDSM, além da presença de cortes, enforcamento, penetração por membro amputado, entre demais práticas que não se restringem aos órgãos sexuais. Há uma cena ícone sobre o cruising e o trottoir em Hustler White (1996), que é quando o escritor Jürgen relata para o seu próprio gravador, o cruzar de olhares entre ele – num carro em movimento – e o hustler Monti (Tony Ward) numa calçada, ambos sob a luz do dia. Jürgen diz (referindo-se a si mesmo em terceira pessoa): Jürgen considera esse olhar furtivo como um sinal encorajador, um relâmpago, como o amor à primeira vista. Para o garoto, é um olhar gelado, fixo, que caça, encurrala, é a possibilidade de um cliente entre milhares de clientes possíveis. A partir de uma estrutura de planos ponto de vista, o cruising é estabelecido na cena, em câmera lenta e acompanhado por uma música não diegética de rock. Após a gravação falada de Jürgen, a mesma música retorna, e vemos Monti em uma barra de flexão se exercitando. O mesmo plano de suas subidas na barra é repetido cerca de três vezes, enfatizando o olhar desejante de Jürgen e investindo no poder mobilizador da imagem no corpo do espectador. O cruising e o trottoir não assumem formas fixas. A performatividade desse tipo de ritual lembra a lógica da concepção de gênero enquanto performance (BUTLER, 2003), já que os gestos, os códigos e as práticas expressadas no corpo produzem papéis identitários e sexualidades múltiplas, assim como os efeitos e as ocasiões que se alcançam a partir desse ritual de desejo e conquista. A voz off de um policial interrogando Monti é recorrente ao longo do filme de LaBruce e Rick Castro. O policial insiste inúmeras vezes sem resposta: “Você é gay ou hétero?”. Ao final do filme, Monti responde: “Eu sou um hustler [michê]”. Se em termos de representatividade das dissidências sexuais o cinema ainda é muito 37 frágil e omisso, é certo dizer que ao lado da figura da travesti e da drag queen, o personagem do michê proporcionou experiências narrativas cinematográficas mais próximas de uma real negação da heteronormatividade e, principalmente, discussões em torno da sexualidade sem reafirmar identidades gays fixas e padronizadas, propondo papéis e corpos descentralizados e transitórios, a partir do investimento na esfera da fluidez dos desejos. Referências Bibliográficas BETTIM, Lucas. Um certo Old Queer Cinema. In: MURARI, Lucas; Nagime, Mateus. (Org.). New queer cinema – cinema, sexualidade e política. 1. ed.: Caixa Cultural, 2015, v., p. 108-11. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. PERLONGHER, Néstor. O Negócio do Michê – A prostituição viril em São Paulo. 1ª edição (1987). São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2008. SALOMÃO, Pedro Eduardo Pereira. Realismos contemporâneos: a inserção da realidade na ficção cinematográfica. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Beatriz Jaguaribe de Mattos. UFRJ, 2005. 38 39 VIDA SEM DESTINO Gummo | 1997 | 89min Elenco: Jacob Reynolds, Nick Sutton, Jacob Sewell, Chloë Sevigny, Carisa Glucksman, Darby Dougherty, Linda Manz, Mark Gonzales, Max Perlich. Sinopse: Moradores de uma cidade de Ohio atingida por um furacão seguem em vidas niilistas numa paisagem pobre e deserta com personagens comuns e angustiados Direção: Harmony Korine Roteiro: Harmony Korine Produção executiva: Stephen Chin, Ruth Vitale Produção: Cary Woods Co-Produção: Robin O’Hara, Scott Macaulay Direção de fotografia: Jean-Yves Escoffier Montagem: Christopher Tellefsen Casting: Lyn Richmond Direção de arte: Amy Beth Silver Equipe de arte: Chloë Sevigny, Mia Thoen, George E. Boyd, Anthony Gasparro Equipe de som: Steve Borne, Bradford L. Hohle, Leo Madrazo, Brian Miksis, Aaron J. Rudelson, Reilly Steele Festivais: Festival de Veneza (1997), Festival de Londres (1997), Festival de Toronto (1997) etc. 40 41 É COMO UM ANJO SUSPIRANDO Sergio Silva “Life is beautiful. Really, it is. Full of beauty and illusions. Life is great. Without it, you’d be dead.” Um pré-adolescente triste, com orelhas falsas de coelho cor-de-rosa na cabeça e cigarro na mão vaga pelos escombros destruídos por um tornado em Xenia, Ohio, em Gummo. O primeiro longa-metragem dirigido por Harmony Korine - o “skatista roteirista adolescente” do Kids de Larry Clark (1995) - é uma explosiva obra-prima feita de retratos de família rodeado por baratas, gatos chamuscados, banheiras imundas, cola de sapateiro e acumuladores. Jamais estreado nos cinemas brasileiros, e lançado em VHS pela comportada Warner como “Vida sem destino”, tudo em Gummo é sens(x?)ual e descoberta. São corpos que raramente são retratados como desejáveis e desejantes no eugênico ambiente do cinema (e, passados 19 anos de seu lançamento, sabemos que tudo ficou ainda mais tímido), vivendo e negociando suas sexualidades, num mundo onde os adultos quase não existem - e, na ausência deles, tocam o terror. Solomon segue Tummler para todo canto, ambos com suas armas de chumbinho atirando em gatos perdidos em lixeiras e que vendem para um comerciante local. Um de seus concorrentes é Jarrod, garoto andrógino que mora com a avó que sobrevive graças aos aparelhos em uma casa entulhada de caixas. Solomon admira demais o amigo, para quem faz cruas elegias sussurradas em voice over. Compartilham o trabalho e os ganhos da caça de gatos, a cola que inalam, os passeios de bicicleta ao som de black metal e o encontro sexual (separadamente) com a mesma cândida adolescente cafetinada por um sujeito grotesco. Quando a menina diz que Solomon é “magro demais”, ele se refugia no porão da casa para malhar com pesos improvisados com talheres ao som de Like a prayer, de Madonna - e sua mãe o acompanha numa sequência de sapateado entre o patético e o sublime (que caminha para a violência, quando ela encosta um revólver na cabeça do filho, ameaçando-o por não lhe dar um sorriso. Mas tudo termina 42 bem: Gummo é um filme terrivelmente angustiante, doce e terno, não podemos esquecer). Duas irmãs adolescentes (e uma terceira, criança, observa) colam fitas isolantes nos seios para, após retirá-los bruscamente, ver como os mamilos cresceram. Elas saltam sobre as camas ao inocente som de Everyday, de Buddy Holly (e uma delas, Dot, é Chloë Sevigny, a atriz-símbolo de uma era, nesta altura namorada de Korine e responsável pelo magnífico figurino do filme) e duvido muito que não foram poucxs adolescentes que as imitaram quando viram o filme. E é Korine quem terá uma das mais abertas cenas de afeto gay de Gummo, quando ele, (ator e personagem) bêbado no sofá, tem um longo diálogo com um ator negro portador de nanismo para o qual se declara. Aliás, como já não existe mais mundo após o fim dele (e gêneros e orientações sexuais do filme são extremamente dúbios e livres), temos o Bunny Boy. Mais tocante personagem de Gummo, ele vaga por uma ponte, cuspindo entre a cerca de proteção, mijando nos carros, fumando seu cigarro. No caminho, encontra dois pequenos cowboys com armas de brinquedo que o matam, o xingam e humilham. Pouco depois, ele desce uma ladeira com seu skate (numa das mais lindas cenas do filme, com genial fotografia de Jean-Ives Escoffier, parceiro constante de Leos Carax e de quem Korine era fã declarado) e toca seu acordeão num banheiro escolar. Quase tudo em Gummo acontece em duplas idênticas - irmãos gêmeos esfregam as costas um do outro na banheira, dois irmãos skinheads dão depoimento para a câmera e fazem uma patética briga de socos, há duelos de braço de ferro entre dois homens e duas mulheres, surgem dois missionários que vendem chocolates de porta em porta, dois cowboys falsos acuam Bunny Boy - e mesmo sua figura delicada encontra eco na de Jarrod. Exercício poético à partir do universo white trash, Gummo emociona com personagens que vestem camisetas de bandas de metal, cenas de luta livre envolvendo uma cadeira e declarações de amor a Pamela Anderson e Patrick Swayze. Quando se menos espera, estamos tomados pela ternura do olhar de Korine. Solomon se lava na banheira mais encardida da história do cinema comendo um prato de macarrão, uma barra de chocolate e bebendo iogurte. Nas paredes, uma instalação feita de bonecas barbie destruídas de um lado e fatias de bacon coladas com fita adesiva do outro dão o tom delirante do filme. Dot e a irmã procuram juntas sua gata preta. Bunny Boy e as duas irmãs se beijam na piscina, sob a chuva. Solomon e Tummler matam a gata, sob a mesma chuva, graves e melancólicos. A exemplo do que acontecerá em seus filmes seguintes, o clima sufocante e grave é sempre combinado com o humor - e a triste 43 gravação de “Crying”, de Roy Orbison embala a cena final. Logo depois, Korine teria maior aproximação do mainstream ao dirigir o clipe de Sunday (1998), de Sonic Youth - incluindo ali uma primeira representação gay e não-infantil de Macaulay Culkin -, faria o primeiro filme com o selo Dogma 95 dos EUA com Julien Donkey-Boy (1999), lançaria seu longa mais caro, o drama sobre sósias Mister Lonely (2007), e também o mais barato, o romance de escombros Trash Humpers (2009). Talvez tenha atingido o ápice do seu gosto por cultura pop com Spring Breakers - Garotas perigosas! (Spring Breakers, 2013), e no recente Needed me (2016), video de Rihanna), sem nunca deixar de se interessar por personagens que desejam dominar seus próprios corpos. Da minha parte, sempre estarei acompanhando cada novo trabalho com fascínio e amor. It’s hard to understand, but the touch of your hand can start me crying (...) Yes now you’re gone, and from this moment on, i’ll be crying, crying, crying, crying, yeah, crying, crying over you. 44 45 SITCOM Sitcom | 1998 | 85min Elenco: Adrien de Van, Evelyne Dandry, François Marthouret, Marina de Van, Stéphane Rideau Sinopse: Uma família francesa burguesa vive em aparente harmonia até que o pai compra um pequeno rato. Devido a este animal de estimação, o caos instala-se e cada membro da família vai expor suas perversões sexuais. O filme é uma farsa provocante que faz estalar o verniz da burguesia e desafia os valores familiares das sitcoms. Direção: François Ozon Roteiro: François Ozon Produção: Olivier Delbosc, Marc Missonnier Direção de Produção: Paul Raoux Direção de fotografia: Yorick Le Saux Montagem: Dominique Petrot Música: Éric Neveux Equipe de som: Charles Autrand, Christophe Bourreau, François Guillaume, Benoît Hillebrant Festivais: Festival de Edimburgo (1998), Festival de Chicago (1998), Festival do Filme Gay e Lésbico da Carolina do Norte (2000) etc. 46 47 PAPÉIS TRANSGREDIDOS EM SITCOM Marília Lima O filme começa com uma cortina fechada, ouvimos diversas vozes, toca-se o sino, o público faz silêncio, abre-se a cortina e tem início o espetáculo. No primeiro plano do filme, vemos a chegada do pai em casa. Quando o personagem entra, é recebido com uma festa surpresa de aniversário que apenas sabemos em voz off, criando a expectativa de que estamos diante de uma família tradicional francesa, de classe alta. Não vemos, no entanto, a família nesse início, o plano geral mostra apenas a frente da casa, logo fica a cargo do espectador imaginar essa família feliz. Até que ouvimos tiros, pessoas gritando e pelo off imaginamos o pai atirando na própria família. Assim a construção imaginária da família tradicional se quebra e dá lugar a abertura de um questionamento não apenas sobre sua constituição, mas também sobre sua representação. A motivação do pai assassino é o que espectador busca entender, qual o conflito do filme que repercutiu nisso? Um rato! Então, o que cai no filme não é só um postulado da família (assassinado pelo pai), mas aquilo que é representado como ordem natural de acontecimentos no cinema clássico, uma causalidade verossimilhante desencadeada por um ratinho de laboratório. A chegada do rato nada traz de estranho, é de quem menos desconfiamos, e, é claro, é ele que vai despertar em quem o toca os desejos, atitudes e gestos ainda não experimentados. O bicho como agente causador de conflitos na história do filme mostra o primeiro elemento de uma carreira cinematográfica que coloca no plano outras maneiras de se trabalhar a imagem. Ozon desestabiliza seus personagens tal qual uma narrativa clássica faz, mas rompe a primazia do conflito sobre o desenvolvimento do filme com um simples rato. Assim como ficam seus personagens, ele desestabiliza o legado da estrutura narrativa onde todo um cinema clássico se instituiu. Aqui (talvez) mais próximo de Luis Buñuel do que de Pier Paolo Pasolini, Ozon nos conta uma história que entendemos, só não sabemos o que fazer com ela. O filme apresenta várias situações irônicas e, por isso mesmo, o título Sitcom, que é uma comédia com situações comuns de família ou grupo de amigos e etc. Ele se enquadraria então no gênero da comédia, contudo, não rimos com a firmeza com que deveríamos rir, mas vem com a risada sem graça um estranhamento e a dúvida sobre aquele que nos conta a história. 48 Não culpamos mais o rato pela crise, mas quem comanda a história, o narrador. Esse que constrói os personagens, nos guia, nos direciona, nos salva e nos alivia. Em Sitcom, o narrador é o rato que nos toca, que nos mostra a facilidade de romper com a imagem dogmática da família e do cinema. Em outros filmes, Ozon usa a mesma estratégia de instaurar o conflito com um elemento simples. Em 8 mulheres (8 femmes, 2002), o patriarca da família é assassinado, as mulheres passam a desconfiar uma das outras, investigando e descobrindo seus segredos. Nos diversos papéis das mulheres, há algo escondido nelas. No entanto, a “mensagem” do filme não recai sobre como nos escondemos por traz da fachada, mas sobre aquilo que o espetáculo protege: as estratégias imagéticas de velar um discurso, mostrado como “transparente”, com toda sua onisciência divina. O espetáculo em Ozon é revelado pelo abrir das cortinas em Sitcom, pelo fechar delas em 8 mulheres e em Dentro da Casa (Dans la Maison, 2012), pelo olhar do personagem para a câmera no final de Os Amantes Criminais (Les Amants Criminels, 1999)e por outras estratégias que derrubam a quarta parede. Em Sitcom, não se têm imagens surreais que libertariam os desejos reprimidos como em Buñuel, usou-se um rato. Essa é a quebra de Ozon da linguagem, da estética de um cinema dominante que representa com naturalidade a família, o casamento, o trabalho, a sexualidade. A direção do rompimento não vai em busca de uma outra forma de representação que enquadraria novamente os seres, mas direciona o questionamento para o espectador sentado na plateia sobre aquilo que ele vê como construção. São os papéis instituídos que se veem em situações diferentes da norma que seria a graça do filme. A ironia funciona porque reconhecemos esses papéis e não imaginamos isso para eles. A empregada supostamente não apareceria tão arrumada para um jantar na casa dos patrões, o filho não deveria ser gay, assim como a filha não poderia ser sadomasoquista, a graça está na situação inesperada, como qualquer comédia. Mas o questionamento vem da autoconsciência de reconhecer a representação dos papéis, não na sua quebra, mas antes, quando já de início colocamos a empregada no lugar estabelecido para ela, do filho tímido e da filha mimada. O narrador não nos diz nada além disso, a família nos é apresentada de maneira simples por meio de Maria, a empregada que vai começar os trabalhos na casa. Em um tour pelos cômodos, a mãe mostra os quartos ao mesmo tempo em que apresenta a família: o filho que não abre as cortinas por ser um garoto (“Sabe como são os garotos!”, a mãe diz), a filha que tem o quarto bagunçado justificado por ser artista. E o que vem depois é o toque do rato que desperta os comportamentos fora dessa norma que foi mostrada de modo econômico, mas o suficiente para ditarmos seu papel com nosso olhar viciado. Mas não nos culpemos por isso. Estamos acostumados com a ideia da 49 ordem natural das coisas, nos agarramos a ela e a jogamos no cinema. Fizemos a domesticação do cinema na forma da linguagem bem comportada, compreensível, por vezes abstrata, mas sempre no limite da representação acessível: basta colocar uma dona de casa, o marido executivo, um casal de filhos e a empregada que temos um mundo para destruir. Um mundo que construímos, e essa construção não precisa ser feita então pelo cinema, já está dada. O que precisa ser trabalhado é o seu avesso, onde não teremos mais base para reconhecer o outro, sua representação será irreconhecível, precisaremos de mais para entender os personagens, os conflitos, as ironias. É o que Sitcom joga para o espectador, é o que outros filmes dentro de uma noção de New Queer Cinema fazem. Eles subvertem a representação naturalista que deriva do moralismo dos comportamentos, não apenas pautando os temas tabus, mas inovando na sua forma cinematográfica. Em Sitcom, o filho Nicolas assume sua homossexualidade logo após tocar no rato, no jantar da família. Depois de assumido, ele muda seu comportamento, cuida do corpo, troca as roupas antigas por novas, torna-se mais extrovertido, o espectador reconhece assim a cultura gay em Nicolas, por meio de muitos códigos que se tornaram referência na representação. Essa transição performática do personagem transparece o medo encarnado das pessoas que categorizam umas as outras a partir de suas sexualidades. Referências Bibliográficas BORDWELL, David. Narración en el Cine de Ficcion. Paidós: Madrid, Barcelona, 1996. BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 151-172. LIMA, Marília X. (org.) Mostra François Ozon. São Paulo: Luzes da Cidade, 2016. RICH, B. Ruby. New Queer Cinema – Versão da diretora. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.). In: New Queer Cinema – Cinema, Política e Sexualidade. Brasil, LDC, p. 18-29. O cinema, assim como outras artes e entretenimentos, que foi (e ainda é) usado para fortalecer cada vez mais as bases sociais, culturais e econômicas do patriarcado, da heteronormatividade e ditar os padrões dos corpos e das performances, agora é usado para escancarar esses modelos com ironia e colocar na imagem as possibilidades dos afetos e dos desejos. Aqui, a estética e a política evidenciam um olhar sem referências, sem base, que nos dá algo novo para ver, ser afetado e causar um outro pensamento. A teoria queer em suas diversas faces nos coloca diante do outro sem essência, sem base, atravessado por vários discursos e performances, mostra a construção que somos e que fazemos das verdades e dos mundos possíveis. O cinema pode ser uma chave para levar esse questionamento ao espectador e, com um rato, todo um quadro de referências cinematográficas se quebra, assim como a base da representação, mostrando como esse sistema é frágil e dúbio. O filme, por fim, nos mostra o que aconteceu dentro da casa no momento em que o pai chega e é recebido com a festa surpresa. Foi apenas um sonho. A família então continua viva e quem morre é o rato, o culpado de tudo. Volta-se assim à estabilidade de todos, mas que agora são diferentes, evoluídos depois da crise, fechando a estrutura clássica do filme. Mas o rato não está morto! 50 51 AIMÉE & JAGUAR Aimée & Jaguar | 1999 | 125min Elenco: Maria Schrader, Juliane Köhler, Johanna Wokalek, Heike Makatsch, Elisabeth Degen, Detlev Buck, Inge Keller Sinopse: Na Berlim sitiada pela Guerra Mundial surge a inesperada história de amor entre Lilly Wust, a esposa de um militar nazista e Felice Schragenheim, uma judia integrante da resistência alemã. Lilly é a ariana perfeita, que se dedica a um lar decorado com bustos de Hitler e cuida dos quatro filhos enquanto o marido luta no front. A despeito dos amantes ocasionais e das bombas que arruínam a cidade, Lilly cai de amores pela auto-confiante Felice Schragenheim, que lhe envia cartas apaixonadas sob o codinome de ´Jaguar´. O filme é baseado na história verídica relatada por Lilly Wust, aos 80 anos, à escritora Erica Fischer, que a transformou em best-seller no ano de 1994. Direção: Max Färberböck Roteiro: Max Färberböck e Rona Munro Produção executiva: Lew Rywin Produção: Hanno Huth, Günter Rohrbach Diretor de Produção: Feliks Pastusiak, Stefaan Schieder Direção de fotografia: Tony Imi Montagem: Barbara Hennings Música: Jan A.P. Kaczmarek Casting: Risa Kes Direção de arte: Uli Hanisch Designer de som: Hubert Bartholomae, Friedrich M. Dosch Editor de som: Jörn Poetzl, Sylvana Zafosnik-Jakob Festivais: Festival de Berlim (1999), Festival Gay e Lésbico de Los Angeles (1999), Festival do Filme Gay e Lésbico da Carolina do Norte (2000) etc. Prêmios: Indicado a melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro 2000. Vencedor do prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim (Maria Schrader e Juliane Köhler) 52 53 ROMPENDO COM A HETEROSSOCIABILIDADE – A EXISTÊNCIA LÉSBICA E A POTÊNCIA DA ALEGRIA EM TEMPOS SOMBRIOS Érica Sarmet Na cena final de Aimée & Jaguar (1999), temos Lilly Wust e Felice Schragenheim, o casal protagonista, a jogar cartas com um grupo de amigas. Todas fumam, cantam e se divertem enquanto debatem a existência ou não do “amor único e verdadeiro”. “- O que você procura, Felice?” pergunta uma delas. “- Eu? Procuro vocês, todas, todos. Tudo! Mas me contentaria com um só momento, tão perfeito que duraria uma vida.” “- Onde você encontra isso?” “- Aqui mesmo”, responde Felice. “- Não quero um sempre. Quero o agora”. Apesar da inegável força da trama principal que conduz o filme – a história de amor entre uma lésbica judia e uma dona de casa ariana, casada com um soldado nazista e mãe de quatro filhos –, podemos dizer que um dos aspectos mais marcantes da obra do diretor alemão Max Färberböck é a existência lésbica fora da heterossociabilidade, a potencialização dos encontros entre corpos de mulheres e os afetos plurais gerados neles e a partir deles. A voz over que narra o filme já é um indicativo da dimensão da importância que a amizade e o modo de vida lésbico terão: acompanhamos a narrativa não pelos relatos de uma das personagens principais, mas sim a partir do olhar atento de Ilse, ex-amante de Felice e ex-babá dos filhos da Sra. Wust. Ao se esbarrarem na apresentação de uma orquestra sinfônica, Ilse percebe de imediato o encantamento da namorada por sua patroa. A energia erótica advinda desse encontro é inebriante, e Felice começa a escrever cartas de amor para a chefe da namorada assinadas como “Jaguar”. Na Alemanha de 1943, em plena Batalha de Berlim, vemos como sobrevive em meio aos bombardeios e à perseguição da polícia nazista uma comunidade de mulheres, em sua maioria judias, que circulam disfarçadas pela alta sociedade nazista berlinense. Juntas, elas formam uma rede de proteção sustentada por identidades e passaportes falsos, mas também festas e encontros sexuais. A alegria e a reunião de corpos dançantes, vibrantes e múltiplos são a um só tempo 54 estratégias de sobrevivência e respiros de liberdade em uma cidade esfumaçada pelo terror. É nessa brecha, nessa fenda da dor causada pela guerra e o genocídio, que o continuum lésbico se fortalece e possibilita a existência fora da norma social. Mais do que a sexualidade, elas vivem um modo de vida gerido por uma ética própria. Segundo Michel Foucault, Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar definir e desenvolver um modo de vida (FOUCAULT, 1981, p. 3). Como judias na Alemanha nazista, elas não são consideradas humanas; como sapatões, tão pouco. O que fazem, então, é aproveitar intensamente os momentos do “agora”, como diz Felice, para perfurarem ainda mais as camadas da vida heterossocialmente comportada e orientada: vestem-se com roupas masculinas à la Marlene Dietrich, engajam-se em relacionamentos não monogâmicos, festejam e celebram a vida dentro de casa, pois, do lado de fora, é certo, a morte está à espreita. São relações femininas que, permeadas pelo poder do erótico, carregam consigo uma carga eletrizante de energia que provém, justamente, do “compartilhamento de alegria, seja física, seja emocional, seja psíquica” (LORDE, 1984). Essa estratégia permanece com Felice e Lilly mesmo após tudo “dar errado” – o marido descobre a traição de Lilly e a expulsa de casa; as amigas de Felice fogem de Berlim, e esta escolhe permanecer na cidade, mesmo correndo o risco de ser presa e morta. As duas vão morar em uma casa mais afastada, com os pais de Lilly. Passam dias de completa felicidade, nadando no lago, brincando ao sol com as crianças, recitando poemas e declarações de amor uma a outra. O jogo, a alegria, o entrelaçar dos corpos e até a natureza em torno substancializam um momento de suspensão para quem vivia, a todo momento, sendo lembrada da vulnerabilidade e precariedade de suas vidas. Nesse breve espaço-tempo em que as duas escolhem ficar em Berlim, não há mais marido, não há Hitler, não há guerra, não há amigas mortas, não há dor. Existe apenas o desejo, o toque, o gozo de estar viva e de estar junto. Em seu famoso texto sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich escreve que a existência lésbica tem sido vivida sem acesso a qualquer 55 conhecimento de tradição, continuidade e esteio social. Segundo a autora, a destruição de registros, memória e cartas documentando as realidades da existência lésbica é uma estratégia histórica de manutenção da heterossexualidade compulsória para as mulheres, que coloca “à parte de nosso conhecimento a alegria, a sensualidade, a coragem e a comunidade, bem como a culpa, a autonegação e a dor” (RICH, 2010, p. 36). Aimee & Jaguar trabalha justamente com a memória e a história fancha/sapatão, esforçando-se para eternizar o presente vivido pelas personagens. Primeiramente, trata-se de uma obra baseada em uma história real (quando o filme foi lançado no Festival de Berlim, a verdadeira Lilly Wust, já com 85 anos, estava presente na sessão); em segundo lugar, é um filme permeado por trocas de cartas, declarações, poemas e registros fotográficos, sejam eles feitos pelas próprias amantes ou por outrem – a exemplo do momento em que as amigas “pagam” seus novos passaportes com uma série de fotografias eróticas ou quando a Gestapo encontra a foto de Felice no bolso de Lotte, logo após a assassinarem. Há também a referência a uma cultura lésbica pré-existente que a espectadora, mesmo não tendo vivido, sabe identificar e pode em algum nível relacionar-se, como o já mencionado figurino dietrichiano, símbolo clássico da estética da existência lésbica no cinema. Ainda que a história de amor possua um final trágico – infelizmente, um padrão a ser seguido pela maioria dos filmes lésbicos, mas sobretudo por aqueles rodados nos anos 1990 e 2000, Aimée & Jaguar não se encerra com a tristeza: ao final do filme, voltamos para uma das primeiras sequências, quando, em 1997, Lilly, já idosa, reencontra Ilse em um asilo. As duas conversam sobre o passado, os sentimentos que ambas nutriam por Felice e como ficou a vida depois que ela se foi. Ilse teve várias amantes. Lilly nunca mais se relacionou com ninguém; foram cinquenta anos sem estabelecer nenhum laço, dominada pela culpa de se considerar responsável pela execução da amada. O Anjo Azul (Der blaue Engel, 1930, Josef von Sternberg). Trata-se de uma canção que versa sobre uma paixão inesperada, arrebatadora, que não pode ser evitada e precisa ser vivida, precisa do agora. Lá, ela sempre estará; lá, elas sempre estarão, pois é onde o agora nunca morre. “Apaixonar-me novamente/ Nunca quis/ O que posso fazer?/ Não posso evitar”. Referências bibliográficas FOUCAULT, Michel. Da Amizade como Modo de Vida. Entrevista de Michel Foucault a R. De Ceccaty, J. Danet e J. Le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp 38-39 (W. F. Nascimento, tradução disponível online). _______________. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Entrevista com B. Gallagher e A. Wilsomn. Verve, 5, pp. 260-277, 2004/1984. LORDE, Audre. Uses of the Erotic: the Erotic as Power. In: Sister Outsider. Trumansburg: Crossing Press, 1984. RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 05, p. 17–44, 2010. De acordo com Foucault (2004), a liberdade é algo que nós mesmos criamos e que não se refere à descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo, de uma verdade sobre a nossa sexualidade. Adaptando o argumento do autor, podemos dizer que ser lésbica não é ser livre. A sexualidade faz parte da forma de estarmos no mundo, ela faz parte da liberdade, mas reside em compreender como, por meio da sexualidade, podemos criar novas formas de relações, novas formas de amor, novas formas de criar. É nisso que reside a experiência política da amizade e da alegria na existência lésbica. De modo sensato, o filme não termina na sequência em que as idosas conversam entre si; assim, ficaríamos com a imagem de uma Lilly que, no fim, não conseguiu ser livre. Vamos, ao invés disso, para as mulheres na mesa, o jogo de cartas, o riso, o flerte. Elas cantam a versão original em alemão de Falling In Love Again, música interpretada por Marlene Dietrich em 56 57 LOLA AND BILLY THE KID Lola + Billidikid | 1999 | 93min Elenco: Gandi Mukli, Baki Davrak, Erdal Yıldız, Murat Yılmaz, Inge Keller, Michael Gerber Sinopse: Murat, um jovem turco de origem Berlim, descobre sua homossexualidade. Cada noite ele anda por parques solitários em busca de sua sua primeira experiência sexual. Seu irmão Osman também quer perder a virgindade, mas com uma mulher. Chefe da família após a morte do pai, Osman é homofóbico. Murat decide fugir da atmosfera opressiva e, assim, atender a Lola, travesti que atua em um clube, e seu namorado,“Bilidikid”. Entre Murat e Lola nasce uma amizade muito especial. Direção: Kutlug Ataman Roteiro: Kutlug Ataman Produção executiva: James Schamus Produção: Martin Hagemann Co-Produção: Zeynep Ozbatur Atakan, Martin Wiebel Direção de fotografia: Chris Squires Montagem: Ewa J. Lind Música: Arpad Bondy Casting: Annette Borgmann Direção de arte: Mona Kino Equipe de arte: Anselm Breig, Markus Leuwer, Alexander Liebenthron, Ulla Gothe, Xenia Eichholz, Axel Zornow Equipe de som: Axel Arft, Günther Friedhoff, Michael Junge, Mel Kutbay Festivais: Festival de Istambul (1999), Festival de Seattle (1999), Festival Gay e Lésbico de Turim (1999) etc. 58 59 UMA ENCRUZILHADA ÍNTIMA E GERACIONAL Pablo Gonçalo para Juarez, in memoriam Quem estiver em Berlim e por acaso passar na Nollendorfplatz, no bairro de Schönenberg, poderá, talvez, reparar num pequeno detalhe que está pendurado numa das paredes dessa estação de metrô. Vê-se uma das tantas e pequenas inscrições urbanas que recordam as barbaridades praticadas pelo passado nazista e que grifaram essa cidade, a Alemanha, a história da Europa. Não se lê, nos grifos daquela pedra, como de praxe, informações sobre os judeus deportados para Auschwitz ou outros campos de concentração. Não se enfileiram datas, dias e locais de morte de nenhum indivíduo em particular. Tão aterrorizante como qualquer uma dessas placas, aquela, contudo, aborda a memória da perseguição e opressão sofrida por gays no contexto nazista, que não apenas criminalizou o homossexualidade, como via-se na missão de “medicar”, castrar, castigar e algumas vezes matar indivíduos que manifestavam o desejo por pessoas do mesmo sexo. Bizarros, esses anos prenhes de intolerância e planejamento visavam justamente apagar o afã de liberdade sexual e livre de preconceitos que a estação Nollendorf, no auge da república de Weimar, representava. Desde os anos oitenta, contudo, o bairro de Schönenberg passou a abrigar anseios de resistência queer, e promove, atualmente, os dias de festejo do orgulho gay de Berlim. A história, sim, tem seus percalços, e são similares acasos do tempo que marcam o filme Lola + Billidikid (1999, Kutlug Ataman). É para parte dessa transformação, ou de um retorno, junto ao seu sinuoso trajeto, que a narrativa do filme nos conduz. Como se não fosse um passado remoto – ou um local tão distante –, a primeira sequência da obra de Kutlug Ataman ocorre a pouquíssimos quilômetros da Nollendorfplatz, no Tiergarten, amplo parque no centro da cidade, onde, no escuro, à noite, ocorrem encontros cegos entre homens e perambulam michês. Murat é um jovem bonito, atento ao mundo. A câmera realça seus olhos negros. Ele caminha sozinho: hesita antes de atravessar uma pequena ponte sobre um lago. Está com as mãos no bolso. Curioso, ele observa os movimentos, os olhares dos homens e dos meninos. Alguns interessados. Outros, interessantes. Há, ainda, aqueles apenas bisbilhoteiros. Imberbe e imaturo, Murat não possui exatamente todos os códigos desse ambiente de desejo latente pelo qual se sente atraído. Sua transformação será mais do que o tema do filme; ela guiará 60 e conectará todas as histórias e os percursos que são arquitetados pela narrativa de Ataman. Há, nesse retrato do protagonista, um detalhe, que se revela essencial. Murat é filho de imigrantes turcos. Chamada de Gastarbeiter, expressão que pode ser traduzida como trabalhadores visitantes ou trabalhadores convidados, a geração dos seus pais foi conclamada a auxiliar a reconstrução da Alemanha pós-guerra. Havia um amplo incentivo estatal e governamental, e todo o êxito econômico da Alemanha “ocidental”, conforme a denominação da época, deve-se ao empenho de imigrantes turcos, italianos, gregos, entre outras origens e nacionalidades. O recorte dramático e histórico de Lola + Billidikid dialoga diretamente com esse recente passado dos Gastarbeiter. O próprio Murat já é da segunda ou terceira geração após a imigração. Conversa em alemão, de forma natural e fluida, com Osman, o seu irmão, que, num vértice mais tenso, é totalmente identificado com os antepassados turcos e exala várias dessas características identitárias. Gosta da música, da comida, da religião, da tradição da família turca e possui olhares de desconfiança frente a tudo que remete a traços culturais alemães. Murat, no entanto, foge dele. Ao início do filme, diz que estava numa biblioteca – embora ele, Osman, não saiba o que isso seja. Murat encontra-se diante de uma encruzilhada. Não apenas em decorrência da sua homossexualidade, que é um claro tabu de intolerância entre os turcos mais ortodoxos, como Osman, mas também por já ser um sujeito híbrido que, além do seu passado turco, pisa, caminha, age e interage com os outros berlinenses que lhe são contemporâneos. Sintomaticamente, Murat encontrará um refúgio onírico e uma realidade agonística dentro de uma mambembe trupe de turcos gays, que ora cantam, ora se prostituem e, de forma irreverente, perturbam o cotidiano ordeiro assim como encantam o imaginário dos arianos nativos. Lola e Billi, o tal “the kid”, dois dos protagonistas ancilares, que tão título ao filme, irrompem de dentro de uma casa de shows, meio improvisada, meio anárquica. Eles formam um inusitado casal, de polos justamente opostos que se atraem, que se amam de forma intensa e, muitas vezes, destruidora. No palco, emergem algumas das melhores cenas do filme de Utuman. Vê-se o furor, a irreverência e o deboche de Lola. Travestida, ela surge, reluzente, com uma peruca colorida. Dança com as colegas, uma música turca e insinua, incorpora e desmancha os clichês da sensualidade das mulheres turcas. Seu sarcasmo é sua principal arma. Amparado num balcão de bar, olhando-a, está Billi, de jaquetas e com gel no cabelo, como se quisesse ter imigrado de um western urbano. Ele gosta de se meter em trapaças, em roubadas, que envolvem a prostituição nos banheiros mais remotos. Tanto Lola como Billi parecem emergir de algumas cenas de outras cinematografias para povoar e animar o cabaré do filme de Ataman e da própria narrativa que enlaçará o jovem Murat. 61 Contudo, deve-se perguntar: que filmes são esses? Quais são os imaginários cinematográficos francamente evocados pelos personagens? Mais: como esses personagens atualizam esses mesmos universos oníricos? Não por acaso, eles surgem de dentro de um típico cabaret europeu, um tanto underground e frequentado por alemães. A Lola que está lá, no entanto, apenas longinquamente remete aos mesmos aspectos étnicos da clássica Lola, meio musa e um tanto femme fatale, que Fassbinder celebrou e tão bem levou às telas1. Esta Lola tem trejeitos árabes, é desajeitada, nada solene, cheia de rompantes e de instantes súbitos, um tanto enigmáticos, que se afastam totalmente da típica e estereotipada austeridade germânica. Na tradição dos filmes alemães, ela dialogaria com certas áureas femininas e homoeróticas que reverberam em alguns planos de Werner Schroeter. A Lola do filme de Ataman, por outro lado, estaria mais próxima de Tahia Carioca, a musa da dança do ventre nos filmes egípcios, do que, num contraste, as fantasias despertadas pelo ícone de Marlene Dietrich, as quais são tão reveladores do imaginário simbólico do entreguerras na Alemanha. Nem num polo, nem noutro. A Lola que vemos dançar, e toda a misteriosa e kitsch sensualidade que dela evola, é híbrida, imperfeita, fronteiriça e por natureza indefinida. A mesma ambivalência habita as veias de Billi. Mesmo que não esteja travestido, ele parece um personagem que saltou de um western pós-moderno, à la Nicholas Ray, e começou a perambular e se prostituir pelo bairro de Neuköln, onde reside parte significativa da imigração turca em Berlim. Ele respira a aura corporal de um Artaud meio punkboy, no imaginário reverso e de homens num mundo sem homens, tal como habilmente sugerido por Kathy Acker no seu Pussy, king of the pirates. Ao contrário do encanto de Lola, Billi reivindica atos violentos, ações clandestinas e que verbalizam um impulso por inadequação da cultura alemã e da vida contemporânea berlinense. Essa violência repercute em outros amigos do clã libertário dele e Lola, que perambula pela rua, sem regras, solto a respirar o ar fresco que reivindicam para si. É assim, por exemplo, que o personagem Iskender envolve-se, após uma noite de prostituição com o arquiteto alemão Friedrich Schmidt. Não há, inicialmente, nenhuma relação de afeto por parte de Iskender, mas somente um interesse mais explícito – e cômico – em se apropriar do carro de Schmidt. Eivada por arroubos de violência e por constantes interrupções, o idílio entre Schmidt e Iskender ora desfruta de sentimentos sinceros, ora escorre para atos bruscos e irracionais. Esse conjunto dramático tecido por Ataman visa, de forma precisa, conotar esteticamente os paradoxos enfrentados por essa comunidade ficcional e utópica, que seria gay e turco-germânica. No polo antagônico dessa ilha, deliciosamente fantasiada, emerge um grupo de três jovens alemães que teriam feixes 1 Nota dos Editores: referência a Lola (1981, Rainer Werner Fassbinder). 62 xenófobos e homofóbicos. No entanto, o filme os retrata de forma ingênua e pueril sem compartilhar com uma forte convicção das abordagens preconceituosas e deliberadamente violentas, inaceitáveis, que praticam na rua. Mesmo vazios de conteúdos ideológicos claros, sua verborragia física prega a intolerância e, certamente para a maior parte desse terceto dramático, uma impossibilidade de conviver e partilhar da rua por onde andam gays e turcos. Ataman, no entanto, revela-se astuto ao deixar seu contraponto dramático mais complexo. Numa das enigmáticas cenas do filme, a dupla mais nova dos estudantes protofascistas incita o neófito à sua primeira agressão homofóbica. Ele possui os mesmos passos hesitantes do Murat do início do filme. E é justamente Murat quem flerta com ele. Os dois se encontram num banheiro que, sintomaticamente, calha de estar no Olympiastadion, onde Hitler hospedou as olimpíadas nazistas. Eles se beijam de forma delicada e intensa. Talvez o único beijo verdadeiramente sincero de todo o filme. Aos chutes, os jovens fascistas abrem a porta do banheiro e interrompem o possível fluxo de paixão e sexo. Mais esperançoso do que primeiramente soa, todo o contraponto dramático-narrativo de Lola + Billidikid revela uma – remota – possibilidade de união e convívio carinhoso entre alemães e imigrantes, o qual, de forma recorrente, seria sempre sabotado por lapsos mais nacionalistas, conservadores e moralistas. É para além desses arraigados veios que Murat e o jovem alemão, também gay e também ainda hesitante dos preconceitos da sua cultura “original”, precisam apostar. Ambos estão na encruzilhada. Ambos, contudo, podem inventar um possível caminho. Não há, nessa teia, respostas ou horizontes claros. Apenas o risco das travessias. Não por acaso, Lola + Billidikid concentra-se em contar sua história a partir de um ponto de vista agudamente familiar. E é aqui, dentro dos valores patriarcais, turcos e ortodoxos, que reside o principal polo de autodestruições frente aos anseios mais liberais de Murat. Dramaticamente, por um lado, a escolha revela-se inquietante e primorosa. A família já em si é conotada de forma desintegrada. A mãe é viúva e conversa em turco com seus dois filhos, Osman e Murat. Os dois, contudo, optam por respondê-los em alemão. Há um terceiro filho que, de forma enigmática e preconceituosa, foi expulso de casa. O que resta, assim, dos valores turcos mais tradicionais são cacos esparsos. Da tradicional família turco-berlinense, esse mote se desenlaça de forma bastante forçada do terceiro ato do filme em diante. No ângulo da tela, portanto, constata-se como as opções de encenação de Kutlug Ataman acabaram escorregando para exageros tipicamente melodramáticos, que seriam, de fato, desnecessários e arrefecem os memoráveis lampejos de irreverência que pululam ao longo filme. Lola + Billidikid alcançou as telas em 1999. Um ano indecifrável. Na mesmo época, lançava-se Corra Lola, Corra (Lola rennt, 1998, Tom Tykwer), uma fugi63 dia celebração de uma geração berlinense que, dez anos após a queda do muro, reivindicava uma maneira livre e autônoma de circular pela cidade, embalada por um ritmo eletrônico, pós-punk, que ainda marca a cidade. A estreia ocorreu anos depois de O ódio (La Haine, 1995, Mathieu Kasovitz), bombástico filme que retratava com afinco os ranços xenófobos e devastadores entre árabes, judeus e franceses numa periferia, num banlieu parisiense. Os estilhaços de raiva que esse filme mostra ainda ecoam nos recentes atentados terroristas na Europa. A obra de Ataman, por outro lado, responde a esses mesmos desafios geracionais de forma mais misteriosa. Embora sejam fiascos de expectativas, as trôpegas sensações de Murat apontam para um caminho íntimo, pessoal e audacioso. Uma trajetória que aposta nos vértices transformadores do afeto e da delicadeza. São esses mesmos feixes que, na tela preta, ao findar da narrativa, reverberam. Ainda que frágeis, eles conclamavam por uma experiência possível diante da virada do milênio. Se vingaram ou não, isso já é outra história. Ou outro filme? Referências Bibliográficas ACKER, Kathy: Pussy, king of the pirates. Grove Press: New York, 1996. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema. A history. Rutgers University Press: New Jersey, 1989. _________. Fassbinder’s Germany: history, identity, subject. Amsterdam University Press, 1996. KUZNIAR, Alice A. The queer German Cinema. Stanford: UP, 2000. 64 65 MENINOS NÃO CHORAM Boys Don’t Cry | 1999 | 118min Elenco: Hilary Swank, Chloë Sevigny, Peter Sarsgaard, Brendan Sexton III Sinopse: Saiba como Teena Brandon se tornou Brandon Teena e passou a reivindicar uma nova identidade, masculina, numa cidade rural de Falls City, Nebraska. Brandon inicialmente consegue criar uma imagem masculinizada de si mesma, se apaixonando pela garota com quem sai, Lana, e se tornando amigo de John e Tom. Entretanto, quando a identidade sexual de Brandon vem a público, a revelação ativa uma espiral crescente de violência na cidade. Direção: Kimberly Peirce Roteiro: Kimberly Peirce, Andy Bienen Diretor de Produção: Caroline Kaplan, Pamela Koffler, Jonathan Sehring Produção: John Hart, Eva Kolodner, Jeff Sharp Direção de fotografia: Jim Denault Montagem: Tracy Granger, Lee Percy Música: Nathan Larson Casting: Kerry Barden, Billy Hopkins, Jennifer McNamara Direção de arte: Shawn Carroll Equipe de arte: Phyllis Detrich, Sherief Elkatsha, Jimmy Estrada, Lynn A. Johanson Equipe de som: Gina Alfano, Jeremy Brill, Robert Fernandez, Sean Garnhart Efeitos especiais: Jack Bennett Festivais: Festival de Veneza (1999), Festival de Toronto (1999), Festival de Chicago (1999), Festival de Nova York (1999) etc. Prêmios: Vencedor de melhor atriz (Hilary Swank) e indicado a melhor atriz coadjuvante (Chloë Sevigny) no Oscar e Globo de Ouro 2000. Indicado a melhor atriz revelação (Swank) e melhor beijo (Swank e Sevigny) no MTV Movie Awards 2000. 66 67 BRANDON TEENA E A IMPOSSIBILIDADE DE PERTENCER Thays Prado Desde seu lançamento em 1999, muito se escreveu sobre Meninos Não Choram (Boys Don’t Cry), de Kimberly Peirce. Entre as diversas reflexões provocadas pelo filme na mídia e na academia, chama a atenção a discussão sobre pessoas transgênero, termo aqui utilizado para se referir a todos os indivíduos que, “deliberadamente ou acidentalmente, desafiam as normas de gênero” (HALBERSTAM, 2000), e seu papel na desconstrução delas. De um lado, há o argumento de que, na busca por expressarem socialmente sua identidade de gênero, acabariam reforçando estereótipos e o binarismo moderno. Do outro, o entendimento de que a figura transgênera é, em si, a tradução da desconexão entre sexo e gênero e a denúncia da construção social e artificial de ambos (HALBERSTAM, 2000). Independente do viés teórico utilizado para discutir intelectualmente a questão, seria, no mínimo, injusto depositar sobre os ombros de pessoas transgênero a responsabilidade de desmontar a lógica patriarcal, machista e homofóbica em que vivemos. Embora Meninos Não Choram seja baseado em fatos reais, neste ensaio atenho-me à representação cinematográfica do personagem Brandon Teena (Hilary Swank), para comentar brevemente sobre a angustiante negociação da existência trans em uma sociedade em que, por convenção, só é possível ser homem ou mulher. Para isso, é útil voltar a atenção para três elementos principais: o uso da linguagem, o corpo e a performatividade de gênero no convívio social. Brandon Teena, cujo nome na certidão de nascimento é Teena Brandon, nasceu com o sexo feminino, se identifica com o gênero masculino e se passa por homem. Vivendo na pequena cidade de Lincoln, no estado de Nebraska, nos Estados Unidos, Brandon estava sendo acusado de forjar cheques, quando, ao paquerar Candace (Alicia Goranson) em um bar e entrar em uma briga por ela, acaba indo parar em Falls City. Ali, entre bares, sinucas e caraoquês, Brandon se apaixona por Lana (Chloë Sevigny) e sustenta sua identidade masculina para ela, 68 sua mãe alcóolatra (Jeannetta Arnette) e os amigos, normalmente alcoolizados e sob efeito de drogas ilícitas, John (Peter Sarsgaard) e Tom (Brendan Sexton III). Ao descobrirem que Brandon é biologicamente uma mulher, John e Tom o assassinam brutalmente. Embora haja uma larga discussão sobre a representação da vida queer em ambientes rurais nos Estados Unidos (CRAWFORD, 2008), não é um exagero dizer que Falls City é mais do que um exemplo do terror que pessoas que não se conformam às normas rígidas de gênero podem viver, especialmente longe do anonimato dos grandes centros urbanos. A sufocante cidadezinha pode também ser lida como uma metáfora da claustrofobia que consiste em viver em uma sociedade que só considera válida e valiosa a existência cisgênera, heterossexual, branca e de alta classe econômica. Diante do fato de que ser humano não é o bastante para ser parte da humanidade, artificialmente dividida entre dois gêneros, quem vem de um outro lugar, ou de um não lugar, jamais poderá encontrar em Falls City a sensação de lar. Aliás, essa divisão binária é tão frágil e o lugar de pertencimento tão estreito, que só é possível suportá-los sob grande anestesia. Um espaço que urge por transgressões da ordem estabelecida e, ao fazê-lo, recria sua própria prisão, revela o desejo violento e paradoxal de existir de forma autêntica e, simultaneamente, pertencer. Nomear pode ter tanto a função de individualizar quanto a de agrupar e organizar a realidade. Nos dois casos, dar um nome a algo ou alguém é uma forma de reconhecer sua existência. Quando Brandon dá ao seu sobrenome o status de nome próprio, permite que sua identidade de gênero, masculina, ganhe realidade para além de sua sensação interna. Mas nomear sua verdade mais autêntica é justamente o que seus, então, amigos interpretam como farsa e enganação. Não que a farsa seja recriminada em qualquer circunstância. Na cena em que Brandon apresenta um documento com nome falso aos policiais após ser pego dirigindo em alta velocidade, os mesmos amigos o haviam considerado esperto o suficiente para se safar da lei. Nessa contradição entre a legitimação da farsa e a supressão violenta da verdade, ecoa o questionamento (HALBERSTAM, 2000): “que tipo de verdades exigimos das pessoas que, de alguma maneira, não conformam a categorias normativas de gênero?”. A função de agrupação do ato de nomear também não serve a Brandon. Ele não é uma mulher, pois, apesar de ter nascido com o sexo feminino, não se identifica como uma. E, ainda que, segundo Wittig (1980), lésbicas não possam ser consideradas pertencentes à categoria de mulheres, pois a definição de mulher se dá a partir de uma noção heterossexual e, necessariamente, em relação à de homem, Brandon tampouco se considera lésbica. Na cena em que seu primo gay corta seu cabelo e comenta “Se você fosse um cara, eu te comeria”, Brandon 69 responde: “se você fosse um cara, você quer dizer”. Para Brandon, a masculinidade que performa está mais próxima da masculinidade hegemônica do que a do próprio primo, biologicamente homem, mas homossexual e com trejeitos afeminados (DAWSON, 2015). No entanto, a revelação do nome real de Brandon – Teena Brandon – o faz ser interpelado como lésbica e como mulher, e violentado como tal. A pergunta opressora de John sobre o que Brandon realmente é escancara o desespero de uma sociedade binária por classificar e conter as identidades dentro de limites seguros e bem estabelecidos. Nesse contexto, qualquer coisa que extrapole as definições artificiais dos polos homem e mulher só pode ser considerada uma aberração. Brandon apela para o uso da linguagem médica, talvez a única na qual ele possa existir: “crise de identidade sexual” é o que pode descrever sua condição humana. O termo que traduz parte do que Brandon é – pois jamais poderá traduzir sua experiência única por completo – é o mesmo que lhe coloca, necessariamente, à margem. E é justamente a natureza paradoxal da linguagem que ele usa para se definir que o permitiria reafirmar sua existência política e física, por meio do requerimento de hormônios masculinos e de uma cirurgia de mudança de sexo, por exemplo. Mas esse movimento é também o que o aproximaria da coerência entre sexo e gênero tão cultuada pela modernidade. Nesse sentido, é interessante observar de que forma o corpo de Brandon lhe serve como um veículo de prazer ou de exclusão. Por um lado, seus seios e genital lhe causam a sensação de não pertencimento entre corpo e identidade. Por outro, a possibilidade plástica desse corpo de ser remodelado é a ferramenta que lhe permite materializar a si mesmo. A transformação da aparência, portanto, não se limita a uma necessidade de adaptação ao que a sociedade estabeleceu como fisionomia masculina, mas é também um ato de transgressão que usa a construção social do que significa ser homem como fonte de realização e prazer. As ações de Brandon para se passar como homem – ataduras nos seios, uso de dildo, cabelo curto, roupas masculinas, trejeitos – revelam que, para ser homem, não é preciso ter um sexo biológico específico, mas uma série de aparatos, ferramentas e conhecimento para performar a masculinidade do jeito “correto” (DAWSON, 2015). Ao menstruar, o corpo desestabiliza a identidade masculina de Brandon e lhe coloca diante da dura realidade de que, mesmo contra sua vontade, ainda funciona, biologicamente, como uma mulher. É o sexo traindo o gênero e revelando a fragilidade e o limite da tentativa de “passar despercebido” como outro. Mas a menstruação de Brandon é também o gênero traindo o sexo definido pela radicalidade médica, cujo conhecimento oficial é o de que apenas mulheres menstruam. Desse modo, Brandon não é, necessariamente, um homem incompleto 70 ou falso, mas incompleto é o conhecimento fisiológico que ainda não pode compreender que certos homens possuem útero e vagina e, portanto, menstruam. O corpo de Brandon não é apenas um lugar de questionamentos, mas também de dor. Em uma sociedade de conhecimento estreito, não pode ser lido como autêntico e nem tem existência própria, mas só pode ser visto como um desvio em relação à norma dos corpos cis. Uma imitação frágil, limitada, imperfeita, repugnante e que demanda ser corrigida, consertada. Nesse sentido, o estupro “corretivo” é um violento rito de passagem às avessas que obriga Brandon a ser, novamente, interpelado como uma mulher lésbica em um mundo machista e patriarcal. No longo depoimento que precisa dar aos policiais que investigam o estupro, Brandon passa pelo mesmo processo de culpabilização e revitimização por que passam as tantas mulheres vítimas de violência nos mais diversos lugares do mundo – urbanos e rurais. O questionamento do investigador sobre sua virgindade reforça, ainda, a ideia machista de que apenas um pênis biológico pode configurar “sexo de verdade”, deslegitimando qualquer outra experiência sexual. A pergunta perversa, “onde eles tentaram penetrar primeiro?”, à qual Brandon precisa responder duas vezes – “minha vagina”, “onde?”, “minha vagina” – é uma armadilha que o aprisiona no único lugar em que a lei e a sociedade podem reconhecê-lo (DETLOFF, 2006): Brandon é biologicamente uma mulher e esse é um lugar sem valor nenhum. As negociações de pertencimento acontecem também no âmbito social da performatividade de gênero. Para provar sua masculinidade, que inevitavelmente tem como referência a masculinidade hegemônica (CONNELL, 2005), Brandon se submete a ações autodestrutivas, como o abuso de álcool, o envolvimento em brigas de bar, a direção em alta velocidade, a fuga de policiais e até mesmo a escolha de se segurar em uma corda na carroceria aberta de uma caminhonete em movimento. “Achei que era o que garotos faziam por aqui” é sua justificativa. John e Tom trazem ao espectador a perspectiva de que performar a masculinidade hegemônica tem um alto custo para quem quer que seja que se proponha a fazê-lo. E a necessidade de reafirmá-la constantemente não tem fim, de modo que qualquer hesitação em dar o próximo passo para prová-la pode arruinar o projeto de se apresentar como “homem de verdade”. Isso é evidente na cena em que Tom instiga Brandon a se cortar para mostrar sua bravura, e Brandon, ao se recusar, afirma: “Eu acho que, comparado a você, sou uma mulherzinha”. Ironicamente, o que irrita seus amigos homens não são as falhas da masculinidade de Brandon, mas sua habilidade de performá-la de maneira tão convincente. Isso é o que consideram um ato de “desonestidade, fraude e decepção” (HALBERSTAM, 2000). 71 Brandon performa, ainda, a masculinidade romântica do arquétipo do príncipe encantado. O tipo de homem capaz de satisfazer uma mulher como nenhum outro. Nesse aspecto, é possível observar uma conotação machista de que apenas as mulheres vivenciam o ideal romântico e Brandon, por ser biologicamente uma mulher, é capaz de fazê-lo. No entanto, Lana, mesmo não tendo nada a perder, hesita em fugir com seu príncipe quase-perfeito. Quase, pois Lana compara a condição biológica de Brandon a defeitos e problemas que ela também tem. Se negar a Brandon o direito de viver uma história de amor é cruel, torcer para que ele consiga fugir com Lana e viver em paz em uma cidade maior, é desejar que ele se invisibilize e sucumba à sociedade heteronormativa que tanto o oprime e massacra. De certa forma, é ignorar uma parte da totalidade de Brandon e querer que ele passe como um homem cis, heterossexual. Talvez, seja justamente essa a recusa de Lana. Como bem observa Halberstam, “algumas pessoas queer precisam sair de casa para serem queers, outras precisam permanecer perto para continuarem sendo diferentes”. Para Lana, é possível que o não pertencimento lhe traga mais a sensação de identidade do que o próprio pertencer. Falls City é um exemplo clássico da alegoria foucaultiana do panóptico, do qual é impossível escapar. Em um sistema hegemônico que se autorregula, um indivíduo específico que foge à regra serve de oportunidade para reafirmá-la. Ainda que a vida seja empobrecida, esvaziada de perspectivas e possibilidades, os próprios indivíduos se vigiam, pois é mais seguro perpetuar a velha miséria do que dar lugar ao amedrontador e amplo desconhecido. O destino trágico de Candace nos mostra que não vigiar é também tornar-se inimigo. Nesse cenário, qualquer negociação de pertencimento será sempre um ato violento. CONNELL, R.W. Masculinities. Second Edition. Berkeley, CA: University of California Press, 2005. CRAWFORD, Lucas Cassidy. Transgender without Organs? Mobilizing a Geo-Affective Theory of Gender Modification Women’s Studies Quarterly, 1 October 2008, Vol.36(3/4), pp.127-143. DAWSON, Leanne. Passing and policing: controlling compassion, bodies and boundaries in Boys Don’t Cry and Unveiled/Fremde Haut. Studies in European Cinema, 02 September 2015, Vol.12(3), p.205-228. Routledge. DETLOFF, Madelyn. Gender Please, Without the Gender Police: Rethinking Pain in Archetypal Narratives of Butch, Transgender, and FTM Masculinity. Journal of Lesbian Studies, 2006, Vol.10(1-2), p.87-105. Taylor & Francis Group. HALBERSTAM, Judith. Telling Tales: Brandon Teena, Billy Tipton, and Transgender Biography. Auto/Biography Studies, 2000, Vol.15(1), p. 62-81. Routledge. WITTIG, Monique. The straight mind. Feminist Issues, 1980, Vol.1(1), pp.103-111. Meninos Não Choram é uma narrativa fundamental de denúncia das diversas formas de violência contra a população queer. No entanto, se, como afirma Butler (1990), assumir uma posição de resistência é criar para além da oposição, cabe também ao cinema queer contar histórias que construam espaços mais amplos, em que seja possível pertencer além da artificialidade binária, em que não seja preciso segurar o choro como prova de coisa alguma, mas em que também não haja tantas dores para chorar. Referências Bibliográficas BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge, 1990. 72 73 QUERO SER JOHN MALKOVICH Being John Malkovich | 1999 | 112min Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, John Malkovich, Catherine Keener. Sinopse: Um homem consegue um novo emprego no 7º e meio andar de um edifício comercial, onde todos os funcionários devem andar curvados. Lá encontra uma porta, escondida, que leva quem ultrapassá-la até a mente do ator John Malkovich, onde pode permanecer durante 15 minutos, até ser cuspido numa estrada na saída de Nova Jersey. Impressionado com a descoberta, resolve alugar a passagem para outras pessoas, dentre elas o próprio John Malkovich. Direção: Spike Jonze Roteiro: Charlie Kaufman Produção executiva: Charlie Kaufman, Michael Kuhn Produção: Steve Golin, Vincent Landay, Sandy Stern, Michael Stipe Direção de fotografia: Lance Acord Montagem: Eric Zumbrunnen Casting: Justine Arteta, Kim Davis-Wagner Música: Carter Burwell Direção de arte: Peter Andrus Equipe de arte: Gene Serdena, Casey Storm, Lynn Barron, Fanée Aaron Equipe de som: David W. Alstadter, Richard L. Anderson, Victoria Bowes, Forrest Brakeman, John T. Cucci Efeitos especiais: Ryan Arndt, John E. Gray, John Ziegler, Jason Barnett Festivais: Festival de Veneza (1999), Festival de Nova York (1999), Festival de Hong Kong (2000) etc. Prêmios: Indicado a 3 prêmios Oscars 2000 (Diretor, Atriz Coadjuvante [Catherine Keener] e Roteiro Original). Vencedor do BAFTA 2000 de melhor Roteiro Original. 74 75 CORPOS QUE CAEM Mateus Nagime O ano de 1999 parece ter sido especial na história do cinema norte-americano. No fim do século, a Guerra Fria e a ameaça comunista já eram coisa do passado e o politicamente correto estava em seu auge. O lado obscuro da sociedade americana começava a ficar mais evidente também com a escalada de massacres em escolas e demais locais públicos, a ponto deles serem considerados uma coisa “tipicamente norte-americana”. O cinema independente teve alguns anos para analisar a fundo essa sociedade, antes que o 11 de setembro e o clima de terror impusessem uma autocensura. Não que em 1999 os melhores filmes tenham sido melhores que os melhores filmes de outros anos - ainda que talvez seja verdade. Mas de qualquer modo foi uma brecha, em que filmes que desafiavam frontalmente o sistema viraram sucessos de bilheteria ou de crítica. Depois dos ataques terroristas em 11 de setembro de 2001, em pleno solo norte-americano, os filmes mais ousados não teriam tanto acesso ao público ou ainda o respaldo de uma crítica mainstream em um país que entrava a fundo em uma guerra após a outra. Por isso, 1999 surge como um alento no cinema norte-americano engajado, que está pronto a dissecar as feridas de forma mais direta, buscando um espectador contemporâneo. É ainda mais impressionante o fato de não percebermos essa tendência em filmes mais obscuros, que foram sendo descobertos ao passar do tempo, mas sim nos grandes títulos do ano, lembrados em festivais ou que tiveram bom resultado de bilheteria e que trataram de personagens contemporâneos, estabelecendo um diálogo direto com o público1. Tudo isso através de uma renovação do cinema de autor, seja através de filmes de cineastas consagrados, como De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut), primeiro filme de Stanley Kubrick a liderar as bilheterias, O Informante (The Insider, Michael Mann), e O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley), primeiro filme de Anthony Minghella pós-Oscar, ou de novos cineastas em construção de carreira, como Paul Thomas Anderson em Magnólia (Magnolia), David Fincher em Clube 1 A “safra” de 2002, por exemplo, ainda que igualmente interessante, era mais alegórica, com filmes que se passavam em outras épocas, como As Horas (The Hours, Stephen Daldry); Chicago (Rob Marshall), Longe do Paraíso (Far from Heaven, Todd Haynes); Gangues de Nova York (Gangs of New York, Martin Scorsese) etc., ou ainda faziam alusões a personagens e histórias antigas, como A Estranha Família de Igby (Igby Goes Down, Burr Steers), uma releitura de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Sallinger. 76 da Luta (Fight Club), M. Night Shyamalan em O Sexto Sentido (The Sixth Sense), Daniel Myrick e Eduardo Sánchez em A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project) e os irmãos Wachowsky em Matrix (The Matrix). Ou ainda através de estreias, como Sam Mendes em Beleza Americana (American Beauty) e Spike Jonze em Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich), o assunto deste texto. Malkovich marca também a estreia do roteirista Charlie Kaufman. A trama apresenta uma história bem surrealista, em todos os detalhes possíveis: seja o escritório que fica no andar 7 ½ de um prédio em Nova York ou a ideia de que possa existir um portal que leve à cabeça de John Malkovich, ou ainda que isso seja algo recorrente - é possível seguir “pulando” de portal em portal e viver eternamente, como alguns dos coadjuvantes. A primeira vista, o filme conquista o espectador pelo seu humor absurdo, em que por 200 dólares (ou um punhado de sorte) alguém pode entrar no cérebro de um ator famoso. A cena em que John Malkovich entra em sua própria mente - onde todo mundo se parece e fala “Malkovich” - ou ainda de Maxine (Catherine Keener) e Lotte (Cameron Diaz) entrando no subconsciente do ator são pequenas obras-primas de um cinema surrealista contemporâneo. Porém, numa revisão, alguns aspectos ficam mais evidentes: o filme se inicia com um casamento entre duas pessoas um tanto fracassadas em um apartamento sujo, bagunçado, e pouco iluminado: Craig (John Cusack) e Lotte Schwarz. Ele, um desempregado obcecado por suas marionetes, apresentando histórias eróticas no meio da rua tentando convencer a todos que se trata de uma arte; ela, uma atendente de loja de animais que leva trabalho para casa e vive em meio a chipanzés com problemas psicológicos e outros tipos de animais: serpentes, pássaros, cachorros etc. Tudo começa com uma escapada típica: o marido que não dá atenção para a esposa e passa a flertar com a colega de trabalho, no caso Maxine. Mas Maxine não dá atenção a Craig, até que ele entra sem querer no portal que leva à cabeça de Malkovich e que o permite a ver o mundo pelos olhos do ator. Quem não desejaria ser outra pessoa? Para Craig, esse é o local perfeito onde ele pode brincar de marionete: ao conseguir controlar o corpo de Malkovich, ele vira o titereiro perfeito, manipulando um ser humano. Para Maxine, é a grande oportunidade de ganhar dinheiro e alcançar a fama: ela é a única a não ter vontade em ver o mundo através de Malkovich. Para Lotte, uma transformação maior ainda acontece: ela se descobre transexual e se sente finalmente confortável com seu corpo, ou melhor, o seu novo corpo. Mesmo que seja numa chave de comédia de absurdos, o filme vai explorar muito o próprio absurdo que é a ideia de nos identificarmos objetivamen77 te com nossos corpos. Maxine parece só desejar Malkovich quando ela imagina perceber a presença de Lotte nos olhos do ator. Se a identificação de Lotte com Malkovich é mais intensa e reveladora, a identificação de Craig também é importante, afinal ele parece se sentir melhor dentro da pele de outra pessoa. Maxine vai ao ponto máximo de falar que Lote é o “pai da criança... ou a segunda mãe”, pois afirma que era com ela que estava fazendo amor ao ficar grávida. Se as duas terminam o filme juntas, criando uma criança, constituindo uma família, numa relação lésbica cis um tanto estranha - Maxine nunca tinha tido desejos por outras mulheres, aparentemente, e Lotte teria se “descoberto” trans e não exatamente lésbica ou bi durante a trama -, isso não importa muito. O que o filme pretende é desestabilizar o status quo, argumentar que as ideias pré-concebidas e fixas sobre sexualidade e gênero não têm lugar num mundo contemporâneo. O grande destaque do filme é John Malkovich, não só interpretando Malkovich, o ator, mas também as várias versões de Malkovich, à medida que outras pessoas assumem seu corpo. Quando as cortinas se abrem no início do filme, talvez seja difícil imaginar um estudo de domínio de corpo mais impressionante que o engendrado por Jonze e Kaufman: afinal o que/quem nos controla e o que/ quem nós controlamos? 78 79 TABU Gohatto | 1999 | 100min Elenco: Takeshi Kitano, Ryuhei Matsuda, Shinji Takeda, Tadanobu Asano, Yoichi Sai Sinopse: Sozaburo, um jovem de dezoito anos, torna-se um dos membros de uma tropa de samurais especialmente selecionados pelo Shogun, conhecidos como Shinsengumi. Os guerreiros, extremamente hábeis no uso de espadas, são treinados para matar quem se opuser ao regime do Shogun. Sozaburo se envolve numa relação homossexual com alguns dos guerreiros do grupo. Ele se considera culpado pelo crime envolvendo dois guerreiros que se apaixonaram por ele. Direção: Nagisa Ôshima Roteiro: Nagisa Ôshima, Ryôtarô Shiba Produção executiva: Jean Labadie, Jeremy Thomas, Nobuyoshi Ôtani Produção: Shigehiro Nakagawa, Eiko Oshima, Kazuo Shimizu Direção de fotografia: Toyomichi Kurita Montagem: Tomoyo Oshima Direção de arte: Yoshinobu Nishioka Equipe de arte: Shoichi Yasuda, Emi Wada, Kiyomi Hirose Música: Ryuichi Sakamoto Equipe de som: Hiroshi Abe, Kunio Ando, Hiroshi Ishigai, Takako Kawamoto Festivais: Festival de Cannes (2000), Festival de Nova York (2000), Festival de Vancouver (2000), Festival de Toronto (2000) etc. Prêmios: Indicado à Palma de Ouro 2000, e vencedor de 4 Prêmios Blue Ribbon (jornalistas japoneses): Melhor filme, direção, ator revelação (Ryûhei Matsuda) e ator coadjuvante (Shinji Takeda). 80 81 BELEZA DESCONCERTANTE Aleques Eiterer Canto do cisne de um diretor que elevou o sexo explícito ao patamar de obra de arte com o clássico O Império dos Sentidos (Ai no korîda/ L’Empire des Sens), de 1976, Nagisa Oshima constrói uma bela e enigmática obra com Tabu (Gohatto/Taboo), seu último filme, realizado em 1999. Os caminhos abertos pelos jovens diretores e a ampliação da circulação de filmes promovidos pelo New Queer Cinema, no começo dos anos 1990, contribuiriam para que uma leva de filmes asiáticos que tratava o homoerotismo de forma mais aberta e com protagonistas LGBTs circulasse em festivais e logo em seguida chegasse ao circuito de filmes de arte. Como define Erly Vieira Jr. em seu texto no catálogo da mostra New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política, esses filmes “foram recebidos, num contexto global – e, em especial, pelas plateias LGBT –, como se fizessem parte de uma ‘nova onda’ queer, desta vez asiática”. Esses fatores, aliados aos avanços sócio-político-culturais LGBTs, sobretudo, podem ter estimulado Oshima a tratar mais abertamente sobre um tema que já tinha abordado de forma mais sutil em Furyo, Em Nome da Honra (Merry Christmas Mr. Lawrence, 1983), em que a presença de Jack ‘Strafer’ Celliers (David Bowie) causa profundo efeito no Capitão Yonoi (Ryuichi Sakamoto, também compositor de trilhas de diversos filmes de Oshima). E também como observa Erly, ao contrário do New Queer ocidental, que, na sua maioria era composto por jovens cineastas que transpunham para telas, muitas vezes, suas próprias experiências, como parte do enfrentamento ao discurso conservador que relacionava os gays diretamente com a epidemia de aids do começo dos anos 1980, os filmes asiáticos, por sua vez, traziam em seu seio diversos diretores já consagrados e/ ou de longa trajetória, como é o caso de Oshima. Baseado nos contos Maegami no Sozaburo e Sanjogawara Ranjin, do livro Shinsengumi keppuroku, do escritor Ryotazo Shiba, Tabu foi o último filme realizado por um Oshima que já contava com 66 anos e convivia com as consequências de um derrame. Porém, o filme é cuidado em todos os detalhes, do rigor e da beleza na construção dos planos, passando pela impecável direção de arte, até a atuação de todo o elenco. Oshima faleceria em 2013, aos 80 anos. 82 Estamos em Quioto, no ano de 1865, fim da Era dos Samurais, e acompanhamos a inserção de novos membros na milícia Shinsengumi. É então que entra em cena, pontuado pela bela música de Ryuichi Sakamoto, o rosto enigmático, belo e andrógino de Sozaburo Kano (Ryuhei Matsuda), que demonstra grande habilidade com a espada. Em seguida, também se destaca como espadachim o personagem Tashiro (Tadanobu Asano), e ambos são escolhidos como novos membros da milícia. A evolução do Sozaburo é vista pelos olhos do Tenente-Comandante Hijikata (Takeshi Kitano, aqui creditado como Beat Takeshi, em uma grande atuação, cheia de nuances). Hijikata, como nós, tenta decifrar o que há por trás do enigmático rosto de Sozaburo. Como prenúncio, o próprio Kitano, que também atuou em Furyo, anuncia, em Tabu, que a homossexualidade não é temida pelos samurais, embora a primeira cena do filme seja uma severa punição a dois prisioneiros (um holandês e um coreano) que são flagrados tendo relações sexuais. A admiração de Hijikata pela beleza de Sozaburo recorda também a admiração de Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) pelo jovem Tadzio (Björn Andresen) em Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971, Luchino Visconti), embora aqui ela vá ganhando outros contornos. Vindo de uma família abastada, quando questionado porque entrou para a milícia, Sozaburo apenas dá um leve sorriso. Sua primeira missão, após sua aceitação na milícia, é executar por decapitação um membro que descumpriu o rígido código de conduta do grupo. Ele cumpre a missão sem pestanejar; quando o comandante Kondo (Yoichi Sai) afirma: “Ele tem coragem”, e Hijikata pensa: “Não, algo mais que coragem”. Sozaburo rejeita as investidas de Tashiro e nada nos é mostrado do que se passa entre eles. Apenas outros personagens afirmam que os dois vivem um romance. Para ter certeza, Hijikata coloca os dois para se enfrentarem com espadas. E em mais uma cena intrigante, Sozaburo, um espadachim bem melhor, perde para Tashiro. A situação faz Hijikata concluir que eles são amantes, fato que é reafirmado pelo intertítulo. A evolução da narrativa nos propõe mais questões do que necessariamente explicações. Oshima desconstrói várias tradições do cinema japonês: filme de samurai, câmera à altura de pessoa ajoelhada no tatame, intertítulos explicativos e realização em estúdios, com poucas cenas externas. Todas essas tradições parecem usadas por ele para subverter os próprios sentidos delas e para nos confundir, no bom sentido do termo. Sob uma perspectiva queer, um dos muitos pontos curiosos do filme é que a homossexualidade não é encarada como um mal, um desvio e/ou uma 83 aberração, como dentro de uma lógica religiosa/ocidental. A única ressalva enunciada por Kondo é que “corações inflamados pela paixão” trouxeram problemas no passado, por tirá-los do foco principal, o combate, e podem comprometer a segurança de todos. Segundo Ruy Gardnier, em sua crítica publicada na revista eletrônica Contracampo na época do lançamento do filme, “em toda a narrativa de Tabu, diversos homens deixam-se contaminar, ao menos em pensamento, por essa inclinação. O sexo não é encarado do ponto de vista da reprodução, da procriação, mas da produção de desejo, de um ideal propriamente de beleza que povoa aquele mundo”. Quem espera encontrar um filme de samurais e/ou um romance gay entre espadachins ao estilo O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005, Ang Lee), nesse caso, entre cowboys, isto é, estereótipos de masculinidade, pode se decepcionar, pois Tabu tem outra complexidade em seu enredo e forma. Da mesma forma que Furyo, que se passa num campo de prisioneiros ingleses, dentro do seio do exército japonês, tudo em Tabu é muito mais sugerido do que explicitado. Assim como Furyo, Tabu é um filme essencialmente de personagens masculinos, com poucas personagens femininas nesse e nenhum no anterior. Também não se deve esperar grandes arroubos sexuais, como no já citado O Império dos Sentidos. Há apenas uma discreta cena de sexo no filme, embora de grande força. as novas informações sobre a relação entre Hijikata e Kondo, as possibilidades de histórias imaginadas por Hijikata, o diálogo que escutamos e que não escutamos entre Sozaburo e Tashiro. Tudo isso coroado com uma incrível cena metafórica da bela árvore sendo decepada. Referências Bibliográficas GARDNIER, Ruy. Tabu, de Nagisa Oshima. In: http://www.contracampo.com.br/ criticas/tabu.htm. Acesso em 15/06/2016. RICH, B. Ruby. New Queer Cinema – Versão da diretora. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Juiz de Fora, LDC, p. 18-29. VIEIRA JR., Erly. Em busca de um cinema queer asiático. In: MURARI, Lucas e NAGIME, Mateus (org.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. Juiz de Fora, LDC, p. 164-171. Ainda segundo Gardnier, na mesma crítica, Tabu é “um filme sobre a beleza: de forma alguma sobre os poderes benéficos e límpidos dela, mas justamente sobre sua parte soturna, obscura. Tabu exprime a parte excessiva da beleza, tudo aquilo nela que é prejudicial a todo sistema porque o excede em energia, suga dele tudo que pode e se apropria, tal qual vampiro ou sanguessuga ou parasita, de tudo que pode até adquirir o estatuto de peça imprescindível do sistema. A beleza torna-se um vírus”. Sozaburo seria um psicopata? Pelos olhos de Hijikata e por algumas pistas que o filme dá, sim. Porém, a construção de sua psicopatia também é muito mais sutil do que costumamos ver nos filmes ocidentais, sobretudo os norte-americanos. Uma certeza que o filme deixa clara é que Sozaburo usa sua beleza e o sexo como poder de dominação e gosta disso, como nos diz mais um dos intrigantes intertítulos. Ele seduz quase todos os personagens do filme, como Terence Stamp em Teorema (1968, Pier Paolo Pasolini). Porém, nada em Oshima é simples. Na bela sequência final, novas camadas e interrogações são colocadas: a bela história contada por Soji (Shinji Takeda), 84 85 O PÂNTANO La Ciénaga | 2001 | 103min Elenco: Mercedes Morán, Graciela Borges, Martín Adjemián Sinopse: A cidade de La Cienaga é conhecida pelas extensões de terra que se alagam com as chuvas repentinas e fortes, formando pântanos que são armadilhas mortais para os animais da região. Perto da cidade fica o povoado de Rey Muerto, em que está localizado o sítio La Mandrágora, onde são cultivados pimentões vermelhos. Para ele vão duas famílias, lideradas por Mecha (Graciela Borges) e Tali (Mercedes Morán). Mecha é uma mulher em torno de 50 anos, que tem 4 filhos e um marido que procura ignorar bebendo cada vez mais. Já Tali é prima de Mecha e também tem 4 filhos, sendo que ama seu marido e sua família. Em meio a um verão infernal, as duas famílias entram em conflito quando a tensão entre elas aumenta. Direção: Lucrecia Martel Roteiro: Lucrecia Martel Produção executiva: Ana Aizenberg, Diego Guebel, Mario Pergolini Co-Produção: José María Morales Diretor de Produção: Marta Parga Direção de fotografia: Hugo Colace Montagem: Santiago Ricci Casting: Florencia Blanco, Martín Mainoli, Luciana Rico, Natalia Smirnoff Direção de arte: Graciela Oderigo Equipe de arte: Cristina Nigro, Sebastián Molchasky, Marisa Amenta, Cristina Nigro Equipe de som: Guido Berenblum, Emmanuel Croset, Adrián De Michele, Hervé Guyader Efeitos especiais: Rubén Santeiro Operador de câmera: Hugo Colace Festivais: Festival de Berlim (2001), Festival de Mar del Plata (2001), Festival de Cinema de Karlovy Vary (2001), Festival de Toronto (2001), Festival de Nova York (2001), Festival de Chicago (2001) etc. Prêmios: Vencedor do Prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim 2001. Indicado a 8 prêmios da Associação Argentina de Críticos Cinematográficos 2002 (incluindo melhor filme e direção), vencedor de melhor atriz (Graciela Borges), filme de estreia e fotografia. 86 87 O PÂNTANO Chico Lacerda A inclusão do filme O Pântano (La Ciénaga, 2001, Lucrecia Martel) na mostra New Queer Cinema – a segunda onda poderia ser justificada pela personagem de Momi, filha da matriarca Mecha, e seu desejo por Isabel, empregada doméstica da mãe. Isto se tomássemos queer por sua acepção habitualmente utilizada pelo senso comum, ou seja, como um conjunto de identidades que se contrapõem à heterossexualidade e à cisgeneridade, algo próximo à expressão LGBT. Sendo, porém, um pouco mais rigorosos com as ramificações do conceito, o filme parece, para além disso, dialogar de forma mais ampla e profunda com a noção de sexualidade queer desenvolvida por Teresa de Lauretis (2011). De acordo com Lauretis, o conceito de sexualidade foi historicamente reduzido à reprodução biológica e ao enlace entre indivíduos, ou seja, tomada somente a partir do ponto de vista do desejo que leva à cópula com um indivíduo do sexo oposto (e logo à reprodução) ou do desejo que une dois indivíduos, sejam do sexo oposto ou não. Tal noção, longe de operar uma desconstrução de identidades e estruturas consolidadas, como propõe a teoria queer, tanto se baseia quanto reforça os papéis de gênero e as estruturas de enlace hegemônicos. Nesse sentido, “se quisermos resgatar o caráter contestatório e verdadeiramente inclusivo da sexualidade queer, precisamos de uma concepção de sexualidade que vá além dos equívocos nebulosos de gênero e da função reprodutora” (LAURETIS, 2011, p. 249, tradução minha). Lauretis encontra tal concepção na noção freudiana de pulsão de morte: A teoria da sexualidade de Freud supõe a presença de duas forças psíquicas ou pulsões contrárias, coexistindo e agindo juntas por meio de diferentes combinações em diferentes momentos da vida psíquica do indivíduo. A pulsão de vida é uma energia psíquica ligada a objetos – pessoas, fantasias, ideais, o próprio ego – e, portanto, ao apego, aos laços sociais, à criatividade (não por acaso ele usa o termo platônico Eros, definindo-a como “o Eros dos poetas e filósofos”). A pulsão de morte, ao contrário, é pura negatividade; é uma energia psíquica solta, sem amarras com qual- 88 quer objeto específico, que sabota a coerência do ego e, consequentemente, a coesão social. (p. 250) A pulsão de morte seria característica da sexualidade infantil, “polimorfa, não reprodutiva, compulsiva, incontrolável e irrefreável em sua busca pelo prazer” (p. 249), ou seja, não colonizada por noções de desejo e gênero, que confinam e ditam os caminhos da sexualidade dita normal (inclusive das identidades LGBT). Nesse sentido, a persistência de tal conduta na idade adulta constituiria-se, no senso comum e em certos campos do conhecimento, como uma patologia, bem representada pelas noções de perversão e parafilia. Não só a sexualidade queer, como veremos adiante, mas diversos outros elementos de O Pântano apontam para uma situação onde as normas sociais estão em suspensão. Não por acaso, o filme se passa em uma casa de campo decadente da região noroeste argentina exatamente durante uma temporada de férias, período apartado do tempo funcional e regrado do calendário de trabalho e estudos. Nesse sentido, seja o marido e as filhas e filhos de Mecha, a matriarca, sejam os amigos da família que passam pela casa, todos no filme estão imersos em tédio e imobilidade, numa temporalidade circular em que tudo se repete e nada parece avançar. Além disso, a lógica da casa e de seus visitantes impossibilita qualquer noção de privacidade, com camas e banheiros, banhos e trocas de roupa sendo constantemente invadidos e compartilhados com outros personagens. Tampouco os horários de sono e rituais de higiene são obedecidos, com pessoas adormecendo e acordando em horas aleatórias do dia e da noite ou uma mesma roupa sendo usada e repetida ao longo de dias e dias. Se, nesse cenário, os personagens mais velhos estão em constante estado de torpor, é nos mais jovens que a pulsão própria de uma sexualidade queer apresenta-se mais claramente. Mimo deseja Isabel, a empregada doméstica da casa, mas esse desejo é tanto permeado por pequenas crueldades que a posição hierárquica daquela permite quanto não avança em direção a qualquer resolução, girando no vazio ao longo de todo o filme. O desejo de Agustina, sobrinha de Mecha, por José, filho desta, segue o mesmo modelo, atravessando o filme em aproximações e afastamentos abruptos, com pequenas violências e violações substituindo a sua consumação propriamente dita. A própria Mecha alimenta, durante todo o filme, ciúmes e rancores de sua antiga amiga, Mercedes, que, supõe-se, teve um caso com seu marido Gregorio e agora namora seu filho José. Quando Gregorio passa a dormir no quarto dos fundos da casa, é com José que Mecha passa a dividir a cama de casal, tornando ambígua a real fonte dos ciúmes. Em todos os casos, os indivíduos parecem submissos a tais pulsões, sem conse89 guir transcendê-las nem tampouco resolvê-las, numa lógica de imobilidade e repetição que o filme alimenta ao longo de toda a sua duração. Se essa pulsão sexual atravessa eminentemente os personagens jovens, às crianças ficam reservadas pequenas obsessões destrutivas e auto-destrutivas mais diretamente associadas à pulsão de morte (à exceção das crianças nativas do local, que são, em determinado momento, acusadas de manterem uma relação supostamente sexual com o cachorro da família). Os filhos mais novos de Mecha e seus amigos, por exemplo, estão sempre carregando espingardas de caça em suas incursões nas florestas no entorno da casa. Nessas, a balbúrdia do grupo cria repetidos riscos de acidente, cuja tensão é explorada pelo filme de forma recorrente. O mesmo ocorre numa visita ao açude, em que o uso descontrolado de facas peixeiras expõe os corpos seminus a toda sorte de riscos. Além disso, são inúmeras as brincadeiras entre as filhas e o filho de Tali, amiga de Mecha, que teatralizam violência e morte. Nesse sentido, o filme dá especial atenção à história contada por Agustina às crianças a respeito de uma espécie de rato selvagem que, confundido com um inocente cãozinho, despedaçou o gato de sua dona. A partir desse ponto, as crianças passam a manter uma relação de atração mórbida com qualquer cão que cruze seu caminho, situação que leva um dos personagens a um desfecho trágico. A ligação de tais condutas compulsivas e mórbidas com a noção de perversão fica ainda mais clara a partir da irrupção física de sinais de uma suposta degenerescência familiar, como no dente que começa a nascer no céu da boca do filho de Tali, ou no olho deformado do filho de Mecha, ou ainda nas feridas abertas no colo da própria Mecha que, ainda que tenham uma causa bem definida – o acidente com taças de vinho –, são visualmente exploradas ao longo de todo o filme. Por fim, a aposta de O Pântano nas pulsões negativas e destrutivas é ratificada pela interdição das únicas possibilidades de transcendência, representadas pela viagem das amigas Mecha e Tali à Bolívia – sabotada pelo marido desta – e pela imagem da Virgem Maria vista em uma caixa d’água na cidade vizinha à casa de campo, que irrompe de tempos em tempos nos noticiários de TV. Em seu tédio, a própria Momi vai até o local para conferir a aparição. Porém, como afirma à prima, seca e concisa, não viu nada. Referências Bibliográficas LAURETIS, Teresa de. “Queer Texts, Bad Habits, and the Issue of the Future.” In: GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies. 2011, pp. 243-263. 90 91 MADAME SATÃ 2002 | 105min Elenco: Lázaro Ramos, Flávio Bauraqui, Marcélia Cartaxo, Ricardo Blat, Renata Sorrah, Emiliano Queiroz, Marcelo Valle, Floriano Peixoto, Gero Camilo, Guilherme Piva Sinopse: O filme retrata a vida da referência na cultura marginal urbana do século XX, o célebre transformista João Francisco dos Santos- malandro, artista, presidiário, pai adotivo de sete filhos, negro, pobre, homossexual - conhecido como “Madame Satã” e frequentador do bairro boêmio da Lapa, no Rio de Janeiro. Mostra seu círculo de amigos, antes de se transformar no mito Madame Satã, lendário personagem da boêmia carioca. Direção: Karim Aïnouz Roteiro: Karim Aïnouz, Marcelo Gomes, Sérgio Machado, Mauricio Zacharias Produção: Marc Beauchamps, Isabel Diegues, Vincent Maraval, Walter Salles, Assistente de Produção: Dominique Welinski, Gustavo Pizzi Direção de fotografia: Walter Carvalho Montagem: Isabela Monteiro de Castro Música: Sacha Amback, Marcos Suzano Casting: Luiz Henrique Nogueira Equipe de arte: Jorge de Tharso, Sonia Penna, Rita Murtinho Equipe de som: Aloisio Compasso, Marcel Costa, Dominique Hennequin, Waldir Xavier Festivais: Festival de Cannes (2002), Festival de Chicago (2002), Festival de Stockholmo (2002), Festival de Rotterdam (2003), Festival de Sundance (2003) etc. Prêmios: 15 indicações ao Grande Prêmio Cinema Brasil 2003, incluindo Melhor Filme e Direção; vencedor de 5 prêmios (ator [Lázaro Ramos], atriz [Marcella Cartaxo], direção de arte, figurino e maquiagem). 92 93 MADAME SATÃ 1 Chico Lacerda Os filmes [do New Queer Cinema], como apontou Rich, têm em comum algumas estratégias estéticas e narrativas, mas o que eles parecem realmente compartilhar é sua postura. Ela os considerou ‘irreverentes’ e ‘enérgicos’, e, de acordo com J. Hoberman, seus protagonistas eram ‘orgulhosamente assertivos’. Na verdade, o que une o grupo, na minha opinião, pode ser melhor descrito como afronta (AARON, 2004, p.3, tradução minha). Se em 2002 o cinema e o ativismo LGBT brasileiros estavam ainda bastante preocupados com representações positivas e respeitáveis, numa busca por aceitação e assimilação, Madame Satã (2002, Karim Aïnouz), dada a sua postura de afronta, pode ser considerado o representante nacional mais próximo no NQC. O filme retrata parte da vida de João Francisco dos Santos, pernambucano que morou no Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e 1970 e ficou conhecido tanto por sua insolência e violenta resistência ao controle oficial quanto por suas performances femininas nos palcos de diversos cabarés, bailes e blocos da Lapa. A abertura do filme, um close no rosto surrado de João Francisco (Lázaro Ramos) enquanto ele ouve as acusações pelas quais foi preso, pode inclusive ser lida como uma resposta direta às demandas normalizadoras das representações positivas, ao assumir sem subterfúgios características consideradas negativas por tal estratégia: “O sindicado, que também diz chamar-se Benedito Emtabajá da Silva, é conhecidíssimo na jurisdição deste Distrito Policial como desordeiro, sendo frequentador costumaz da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa as sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não 1 Este texto consiste em uma condensação da análise do filme Madame Satã realizada por Chico Lacerda em sua tese de doutorado intitulada Cinema Gay Brasileiro: políticas de representação e além. 94 tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar. Exprime-se com dificuldade e intercala em sua conversa palavras da gíria do seu ambiente. É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele, dados os seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se de possuir economias, mas como não aufere proventos de trabalho digno, só podem ser estas economias produtos de atos repulsivos ou criminosos. Pode-se adiantar que o sindicado já respondeu a vários processos e, sempre que é ouvido em cartório, provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É um indivíduo de temperamento calculado, propenso ao crime e por todas as razões inteiramente nocivo à sociedade.” (MADAME SATÃ, 2002, 00:01:07) O filme elege João Francisco como seu herói, aderindo a um perfil diametralmente oposto ao encontrado na maior parte do cinema gay brasileiro pós-Retomada, eminentemente branco, cisgenênero e de classe média, e o enredo acompanha uma trajetória marcada por repetidos confrontos com os códigos de conduta vigentes que restringiam as ações e desejos de João Francisco não somente no âmbito sexual e de gênero, mas também no que diz respeito a raça e classe social. Além disso, seu personagem atravessado por contradições e ambiguidades coloca em cheque as identidades precisas e bem resolvidas do movimento LGBT, especialmente em sua cisão entre homoerotismo e transgeneridade. O filme traz, pelo contrário, posturas extremas de ambos os gêneros coabitando o personagem de João Francisco: por um lado, malandro violento e chefe de família rígido; por outro, dançarina sensual e sofisticada em suas diversas personas apresentadas no palco e fora dele. Tais contradições tornam-se particularmente visíveis na relação dele com Tabu (Flávio Bauraqui), fresco2 amigo e protegido de João e que trabalha também como empregado doméstico para ele. A relação entre os dois conta com repetidas e repentinas passagens de um extremo a outro, com o desconforto causado pelo chefe de família e patrão que faz cobranças de forma despótica e violenta 2 A expressão fresco foi bastante utilizada no Brasil da primeira metade do século XX para descrever o homoerotismo masculino com fortes traços de transgeneridade da época. 95 sendo sempre, de súbito, substituído pela cumplicidade afetada e afetiva da troca de confidências entre os dois frescos, como mostra o seguinte diálogo: João: Que chão imundo é esse, Laurita? Termina de limpar essa porcaria. [Para Tabu] Já terminou de costurar o vestido da Vitória? Tabu: Já. João: E as toalhas do Amador, já lavou? empoderamento que lhes são dados pela abordagem, potencializando seu efeito político de confronto com o status quo. Referências Bibliográficas AARON, Michele. New Queer Cinema: A Critical Reader. New Jersey: Rutgers University Press, 2004. Tabu: Tudo. João: Então já podia ter lavado o vestido da Madame também. Tabu: Eu já lavei. João: Já secou? Tabu: Meu nome não é sol! João [arremetendo contra Tabu e jogando-o no chão]: Teu nome é trovão, desgraçado! Tabu: Ai! João [acalmando-se, suavizando a expressão e afetando a voz]: E o cu, já deu hoje? Tabu [sorrindo malicioso]: Hoje ainda não... (MADAME SATÃ, 2002, 00:10:50) A própria instituição familiar, cara à representação positiva, sofre uma série de deslocamentos no filme: João Francisco, fresco e transformista, ocupa o posto de pai e chefe da família; Laurita (Marcélia Cartaxo), prostituta a quem João serve de cafetão e de amigo, é a mãe; sua filha pequena é a prole amada pelo casal; por fim, Tabu (Flávio Bauraqui) faz as vezes de empregada da casa. O movimento aqui é contrário: ao invés de um apagamento de especificidades do homoerotismo e da transgeneridade em direção ao modelo heteronormativo, é a instituição familiar que é tensionada de modo a acomodar subjetividades e práticas deslegitimadas pelas operações de normalização. Se o uso do estereótipo da bicha efeminada de classe baixa e ligada à marginalidade não era novidade no cinema brasileiro, como mostra a sua recorrência nas décadas de 1970 e 1980, a grande diferença entre boa parte delas e João Francisco é a mesma que existe entre os personagens do New Queer Cinema e os estereótipos nos quais eles se baseiam e que atualizam: a agência e o 96 97 ELEFANTE Elephant | 2003 | 81min Elenco: Alex Frost, Eric Deulen, John Robinson, Elias McConnell Sinopse: Um dia aparentemente comum na vida de um grupo de adolescentes, todos estudantes de uma escola secundária de Portland, no estado de Oregon, interior dos Estados Unidos. Enquanto a maior parte está engajada em atividades cotidianas, dois alunos esperam, em casa, a chegada de uma metralhadora semi-automática, com altíssima precisão e poder de fogo. Munidos de um arsenal de outras armas que vinham colecionando, os dois partem para a escola, onde serão protagonistas de uma grande tragédia. Direção: Gus Van Sant Roteiro: Gus Van Sant Produção executiva: Diane Keaton, Bill Robinson Produção: Dany Wolf Direção de fotografia: Harris Savides Montagem: Gus Van Sant Casting: Mali Finn, Danny Stoltz Direção de arte: Benjamin Hayden Equipe de som: Felix Andrew, David A. Cohen, Neil Riha, Leslie Shatz Assistente de câmera: Christopher Blauvelt Festivais: Festival de Cannes (2003), Festival de Karlovy Vary (2003), Festival de Toronto (2003), Festival de Nova York (2003) etc. Prêmios: Palma de Ouro e Melhor Direção no Festival de Cannes 2003; Melhor Fotografia no Ciclo de Críticos Cinematográficos de New York; 2º Melhor Filme do Ano pela Liga dos Blogues Cinematográficos (Brasil) no Prêmio Alfred 2004. 98 99 ELEFANTE Luiz Carlos Oliveira Jr. Quando estreou, em 2003, Elefante (Elephant) nos impactou de maneira indescritível. Nem tanto por aquilo que mostrava (uma reconstrução do massacre de Columbine), mas, antes, pela forma como mostrava ações reduzidas à sua qualidade mais primária, ou seja, a de constituir uma simples passagem de forças. Deve ter sido mais ou menos o impacto que, vinte anos antes, um filme como O dinheiro (L’Argent, 1983, Robert Bresson), provocou em seus espectadores. O que mais choca em Elefante, porém, é a sua beleza, tanto no sentido de uma beleza sensória, corpórea (beleza das imagens, dos corpos, da luz, do balé sensual que antecede o massacre), quanto de uma beleza da ideia, do conceito (Elefante é um filme-dispositivo em que cada operação plástica encontra correspondência exata na estrutura conceitual que preside à obra). Por mais que o cinema de Van Sant sempre tivesse se dedicado a belos corpos, rostos, imagens, paisagens, seria demais imaginar que seu filme mais violento e pesado seria também o mais belo e etéreo. E, no entanto, Elefante se provou exatamente isso. Daí o choque. “Com a sutileza de um elefante”: essa famosa frase (usada para apontar ironicamente uma falta de medida) estranhamente adquire sentido não irônico se aplicada a esse filme. Revisto treze anos depois, Elefante continua pungente e, o que é o principal, sua reserva de significações, longe ter se esgotado, parece ter se renovado com o passar do tempo. Toda vez que um novo episódio similar acontece em alguma escola ou universidade, entendemos e atualizamos o sentido do filme de Gus Van Sant: diante da avalanche de simplificações jornalísticas grosseiras, de explicações psicológicas ou sociológicas (as quais o cineasta rechaça em bloco), cabe dar um passo atrás e buscar o que vem antes do discurso sobre o acontecimento, a saber, o olhar, a percepção, a duração. Em outros termos, trata-se de não subordinar os fatos às explicações dos fatos; trata-se de mostrar pessoas atirando (evidência, fato bruto) em vez de falar de assassinos psicopatas (predicação, adjetivação, interpretação). É sempre mais fácil atribuir esse gênero de tragédia a um desvio psicológico individual do que tentar entender a sua complexa trama de determinações. Mas Van Sant felizmente não escolheu o caminho mais fácil. Em Elefante, o mal é estrutural, sistêmico, produz-se no dia a dia da escola, da família, da sociedade, e não apenas no ato do massacre. Era curioso notar, na ocasião do 100 lançamento do filme, que muita gente se incomodava com a sua falta de didatismo ou, mais radicalmente, com a sua falta de discurso. O pecado de Van Sant terá sido não dar nenhuma chave de explicação para o horror. Em vez de articular um discurso fechado, o diretor concebeu uma minuciosa máquina de mostração que inscreve os corpos e gestos como eventos cinematográficos puros. Imperdoável atitude de cineasta. O “erro” de Van Sant, concluir-se-ia, foi ser honesto demais, foi abordar o massacre com as ferramentas que melhor conhecia, isto é, as ferramentas do cinema. Na verdade, várias explicações aparecem no filme, ou melhor, atravessam a tela, passam por ela com a mesma indiferença das nuvens (típico leitmotiv de Van Sant, que nunca se encaixou tão bem em seu esquema figural como nesse filme): bullying, jogos eletrônicos violentos, asfixia institucional, pais alcoólatras ou negligentes, facilidade para comprar armas de fogo, banalização dos traumas históricos, homossexualidade reprimido... Todas essas pistas falsas são sugeridas em algum momento. Mas as virtuais explicações daí deriváveis permanecem desarticuladas, despregadas de qualquer cadeia causal. Não me lembro de nenhum outro filme que demonstre com tanta simplicidade e concreção o fato de que, na vida, e sobretudo na adolescência, muitas coisas são ditas e feitas sem que ninguém (nem aqueles que as dizem e fazem) saiba qual é o seu sentido. O dispositivo formal mais recorrente no filme consiste num travelling que acompanha as longas deambulações de um dos estudantes pelos corredores da escola. Essas sinuosas viagens de steadycam compõem, sem dúvida, um dos capítulos mais fascinantes da história de um movimento de câmera que Stanley Kubrick, Béla Tarr, Martin Scorsese e Alan Clarke já tinham também desbravado. Van Sant monta um espaço-tempo regido por leis próprias, uma arquitetura de durações que a câmera percorre repetidas vezes, variando o ponto de vista. Assim, um mesmo evento – como o momento em que Elias faz uma foto de John enquanto Michelle passa correndo atrás deles, atrasada para seu estágio na biblioteca – poderá ser mostrado três vezes, por três perspectivas diferentes, cada uma delas correspondendo ao ponto de vista de um dos três adolescentes envolvidos na cena. Essa ação funciona como um dos momentos-charneira do filme, um dos pontos nodais em que trajetos se cruzam, linhas se interceptam somente para se separarem novamente e seguirem seus destinos solitariamente. A lógica dos planos-sequência de Elefante não é a mesma dos filmes de autores interessados na dilatação temporal ou no tour de force de encenação: é antes a lógica do videogame de última geração, em que o jogador explora sistematicamente um mesmo continuum espaciotemporal, ao qual pode voltar repetidas vezes, optando por caminhos diferentes a cada rodada ou a cada “vida”. 101 Ainda no começo do filme, os membros de um grupo de discussão estão reunidos numa sala e debatem sobre a possibilidade de se reconhecer ou não uma pessoa como gay somente por sua aparência. De maneira tão sutil quanto certeira, o filme afirma, nas entrelinhas da conversa, a insuficiência dos signos exteriores como dados confiáveis para a interpretação correta da realidade. O que está em jogo nessa cena é nada menos que a demolição de uma semiologia das aparências, que poderia minar o filme desde a origem. Van Sant trata de tirar isso do caminho já nos primeiros minutos. O debate em torno das aparências está em todo lugar no filme. Uma das primeiras cenas mostra Elias, o fotógrafo, convencendo um casal gótico a se deixar fotografar por ele. Os cliques da câmera de Elias (não um aparelho digital, mas uma câmera de processo analógico-mecânico) antecipam os cliques de destrave dos rifles dos atiradores. A morte já está presente ali. A maquiagem dark, mórbida, quiçá cadavérica dos dois adolescentes góticos já prefigura suas mortes, da mesma forma que o próprio registro fotográfico, cuja relação de intimidade com a morte já foi salientada por tantos teóricos (Roland Barthes, André Bazin, Edgar Morin, Laura Mulvey), antecipa inequivocamente o destino trágico, sela as aparências sob o registro da fatalidade. A fotografia, traço material de um instante fugidio, o mais banal e literal dos signos, marca presente de um passado ausente, emanação de um real que se faz visível mais ou menos como a luz de uma estrela morta; enfim, a fotografia, como dizíamos, serve como metonímia do filme em seu conjunto. Elias, segundos antes de morrer, aponta a câmera fotográfica para os atiradores: seu clique é o primeiro a ser ouvido, antes de os tiros começarem; de certo modo, é ele (ou sua câmera) que desencadeia o massacre. Elefante traz um pouco essa condição fantasmática: ser o testemunho in loco de um evento, todavia, irreconhecível em todas as suas nuances (como se explica na fábula budista que inspirou o filme). Um tatear no escuro, até o clique que anuncia o fim de tudo. E as nuvens... 102 103 MAL DOS TRÓPICOS Sud Pralad | 2004 | 118 min Elenco: Banlop Lomnoi, Sakda Kaewbuadee, Huai Dessom Sinopse: Keng é um soldado e Tong trabalha no campo. O tempo passa, ritmado pelas noites na cidade, pelos jogos de futebol e pelas agradáveis reuniões na casa da família de Tong. Um dia, quando as vacas da região começam a ser decapitadas por um animal selvagem, Tong desaparece. A lenda diz que um homem pode se transformar em animal selvagem. Keng parte então sozinho para o coração da floresta tropical, onde o mito muitas vezes se torna realidade. Direção: Apichatpong Weerasethakul Roteiro: Apichatpong Weerasethakul Produção executiva: Olivier Aknin Produção: Charles de Meaux Co-Produção: Paiboon Damrongchaitham, Marco Mueller, Axel Möbius, Christoph Thoke, Pantham Thongsangl Direção de fotografia: Jarin Pengpanitch, Vichit Tanapanitch, Jean-Louis Vialard Montagem: Lee Chatametikool, Jacopo Quadri Equipe de som: Lee Chatametikool, Thitipant Chongcharoen-choke-skul, Sirapob Tungkasaeranee, Narathip Tungkaseranee, Jasmin Vorabutr Figurino: Pilaitip Jamniam Efeitos visuais: Manfred Büttner, Markus Degen, Florian Gellinger, Caterina Schiffers Festivais: Festival de Cannes (2004), Festival de Melbourne (2004), Festival de Toronto (2004), Festival de Nova York (2004), Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2004) etc. Prêmios: Grande Prêmio de Júri no Festival de Cannes 2004. 104 105 O DIA DA CAÇA Rodrigo de Oliveira “Para mim, a palavra queer significa que tudo é possível”, respondia Apichatpong Weerasethakul, em entrevista à revista tailandesa Encounter, em 2003, quando questionado sobre sua identificação com o queer cinema. Identificação “casual”, mas bem informada. Weerasethakul chega aos Estados Unidos para estudar cinema em 1994, auge da onda, momento da confirmação dos cineastas e dos temas apresentados em Sundance dois anos antes, o que significava também o momento sempre terrível para qualquer movimento contracultural: a hora da assimilação e da transformação em cânone. Se, anos depois, os filmes concebidos por Weerasethakul parecerão tão “exóticos” e ainda assim tão misteriosamente envolventes, é porque partiam de uma consciência profunda das normas do dito “cinema de arte” que os precediam e só assim podiam navegar por águas tão distantes dessa norma sem nunca soarem a-históricos. Mais que isso, partiam de um cineasta a cuja identidade sexual clara se juntavam outras, definidoras. Depois dos anos do “cinema do corpo” (o corpo perecível, sobretudo), quase materialista em sua fé desesperada nas coisas físicas e no desejo de retomada política do real negado à população homossexual, o queer só poderia mesmo ser transtornado e virado ao avesso diante de alguém que filmasse e acreditasse no espírito. “Tudo é possível” é o oposto da afirmação da identidade homossexual como expressa no New Queer Cinema, que parecia dizer que “agora é possível ser exatamente quem se é”. A identidade é o orgulho da diferença, e ao cinema de Weerasethakul parece interessar mais a beleza da indistinção. Mal dos Trópicos (Sud pralad, 2004) carrega, em sua primeira metade, um traço típico do NQC: a cooptação de um gênero cinematográfico tradicional para dentro do qual se contrabandeia uma história gay. É o boy meets boy das comédias românticas, com uma diferença – como eram Veneno (Poison, 1991, Todd Haynes) e o cinema de horror, Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991, Gus Van Sant) e o road-movie, Eduardo II (Edward II, 1991, Derek Jarman) e o drama de época. Os amantes Tong e Keng não só passam por todos os estágios da representação tradicional do romance, como o fazem de maneira prazerosamente conservadora: a mão sobre a perna na sessão de cinema, o bilhetinho amoroso deixado no bolso da calça, deitar a cabeça no colo ao pôr-do-sol, cantar uma música no karaokê olhando nos olhos da figura amada. É aquela mesma retomada política do real: “agora é possível” 106 experimentar o amor gay dentro dos códigos da heteronormatividade, a céu aberto. A essa altura, Weerasethakul já tinha lidado frontalmente com outros temas caros ao NQC, à sua moda: a autópsia coletiva do corpo de um menino como reposicionamento político diante da história repressiva de um país, em Objeto Misterioso ao Meio-Dia (Dokfa mai Meuman, 2000); outro corpo masculino, extremamente sexual e, por isso mesmo, coberto por chagas inexplicáveis, que se descamam feito as chagas da Aids, como em Eternamente Sua (Sud Sanaeha, 2002); o delírio camp do travestismo como unidade de poder ideal, o melhor do masculino e o melhor do feminino, como em As Aventuras de Iron Pussy (Hua jai tor ra nong, 2003). Todos eles já carregavam este traço da diferença, mas Mal dos Trópicos é o filme que a escancara e o que aposta mais fundo no abandono da identidade. “Sud Pralad”, o título original em tailandês, significa literalmente monstro: implica a imagem de uma besta que é produzida pela união de dois animais de espécies diferentes. As platitudes da homossexualidade como a atração de iguais, incesto de segunda ordem, um caso ligeiro de síndrome de Narciso não se aplicam aí. O espelhamento é de outra ordem; e, quando Mal dos Trópicos é reiniciado em sua metade – créditos e tudo o mais –, reencontrar os amantes Tong e Keng em novos papéis significa reconhecer não só a fluidez de seus papéis românticos (Keng, o caçador mais velho e voraz da primeira parte, passa a ser alvo da caça de Tong na parte final), mas o transtorno da própria ideia do ser. Na reencarnação, a identidade (individual e de grupo) é um detalhe menor. Ter vidas múltiplas é, de fato, ser tudo o que for possível, às vezes ao mesmo tempo – ou na duração de um mesmo filme. Keng é um soldado no interior, figura máxima da autoridade e da violência; no entanto, é a figura mais desbragadamente apaziguadora (“os soldados têm o coração solitário e nunca morrem de morte natural”, a não ser quando se apaixonam). Tong trabalha numa fábrica de gelo, mas veste uma farda de soldado para viver uma outra vida mais impressionante, e no namoro é quem tem o poder – o oprimido potencial se veste de opressor potencial, mas só porque junto da fita cassete do The Clash, Keng esqueceu de dar a Tong seu coração. A segunda parte de Mal dos Trópicos explode as inversões e cruzamentos identitários: o jovem analfabeto vira tigre, vira fantasma, impressiona não ao se vestir, mas ao se despir; o velho soldado vira presa (“e companheiro”), retoma o mote das chagas no corpo, tendo seu sangue literalmente sugado por insetos ao longo de todo o percurso na selva, eventualmente até se duplica, completa a transformação, atinge a dualidade máxima, atira em si mesmo, persegue-se. 107 O que permite esse escambo todo? Justamente um senso de unidade, de pertencimento a um todo que o New Queer Cinema, na sua raiz, sequer vislumbrava. Contra a noção das comunidades fechadas, dos pequenos grupos radicais que se reúnem para implodir o establishment ou, no mais das vezes, apenas para reconhecer pares, olhar nos olhos dos iguais enquanto lá fora pesa o caráter de minoria, estes dois homens gays, apaixonados no limite do sublime/ridículo em Mal dos Trópicos se atrevem a serem comuns, porque comungam de uma mesma natureza, a própria Natureza em maiúsculo. Trata-se de uma guinada ilusória, e Weerasethakul sabe bem disso: a discriminação na Tailândia é imensa, mesmo o enorme contingente de travestis e pessoas transgêneras ainda ocupam posições sociais subalternas e são consideradas cidadãs de segunda classe, os guetos gays prevalecem, homofobia como conhecemos bem do lado de cá do mundo. Mas a utopia de Mal dos Trópicos vai além da simples ficcionalização política de um ambiente interiorano que abraça o amor destes homens como natural. Está tudo lá no plano mais memorável do filme, talvez a imagem mais forte que o cinema contemporâneo produziu nos últimos quinze anos: o confronto cara-a-cara entre algoz e vítima, entre presa e companheiro, entre amantes de espécies diferentes que formam juntos o mesmo monstro – Keng, ajoelhado na selva escura, diante de Tong, em sua forma de tigre selvagem, equilibrando-se sobre o galho de uma árvore. É a imagem-síntese, a que equilibra as duas naturezas, a que informa a constituição desse universo místico, mas tomado pela câmera de Weerasethakul como a própria manifestação “realista” dessa unidade cósmica que aproxima bichos e homens, vacas, vagalumes, insetos e amantes, diferentes e iguais, sempre. Mas a essa imagem sucede uma outra, idêntica, e que Mal dos Trópicos nos convence ser a imagem originária: uma pintura tradicional, ícone religioso de um povo, de uma cultura, milenar em sua construção. Estão lá o tigre e o soldado, pintados na mesma posição, no mesmo quadro: a lenda do Xamã que se transformava em várias criaturas e de sua vítima final, de joelhos, suplicando ao monstro, “eu te dou meu espírito, minha carne e minhas memórias” – há definição mais exata do amor? O que une estes homens é o que constitui a própria fundação da humanidade. Está aqui desde que o mundo é mundo, desde que o homem começou a contar suas histórias em papel, pedra, tinta e celuloide. O amor entre esses homens faz parte de todos nós, é matéria da nossa unidade, é manifestação do mesmo espírito. “We’re here, we’re queer!”, é claro que terão que se acostumar conosco. Mas que bonito saber, através de Mal dos Trópicos, que sempre estivemos aqui, desde o começo do tudo, como nós mesmos e como quem diabos mais quisermos e que – como é próprio das pinturas rupestres – temos milênios pela frente. Bicha é História. 108 109 110 111 BIOGRAFIAS ALEQUES EITERER Graduado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense. Como cineasta, realizou O Livro (1999), O Vestido Dourado (2000). Verdade ou Conseqüência (2002), Ausência (2004), A Demolição (2007), Abismo (2011), Araca – O Samba em Pessoa (2014) e Um Pouco a Mais (2015). Produziu diversas mostras de filmes. Organiza o Cineclube LGBT e é também coordenador do Festival Brasileiro de Cinema Universitário (FBCU) e do Primeiro Plano - Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades. CHICO LACERDA É professor do Departamento de Comunicação da UFPE, onde ministra as disciplinas de edição audiovisual e cinema queer. Doutor em Comunicação, discutiu em sua tese questões em torno do chamado cinema gay brasileiro. Fez filmes com o coletivo Sunab Filmes (sunabfilmes.wordpress.com) e agora faz com o coletivo Surto & Deslumbramento (deslumbramento.com). DENILSON LOPES É professor associado da Escola de Comunicação da UFRJ, pesquisador do CNPq e autor de No Coração do Mundo: Paisagens Transculturais (Rocco, 2012), A delicadeza: estética, experiência e paisagens (EdUnB, 2007), O homem que amava rapazes e outros ensaios (Aeroplano, 2002) e Nós os mortos: melancolia e neo-barroco (Sette Letras, 1999), coorganizador de Silviano Santiago y los Estudios Latinoamericanos (Iberoamericana, 2015), de Cinema, globalização e interculturalidade (Argos, 2010) e organizador de Cinema dos Anos 90 (Argos, 2005). Acaba de concluir livro com título provisório de Caminhando nas Folhas Secas: Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos. 112 ÉRICA SARMET É roteirista e pesquisadora em comunicação e cultura, com ênfase em questões relacionadas a gênero e sexualidade no audiovisual. Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, integra desde 2009 o NEX – Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Visuais, grupo de pesquisa vinculado ao PPGCOM/UFF. É também fundadora do cineclube Quase Catálogo, dedicado a filmes dirigidos por mulheres. JOÃO MARCOS DE ALMEIDA Formado em Rádio e Televisão em São Paulo, pela Faculdade Cásper Líbero, João Marcos de Almeida é diretor, roteirista, montador, designer e arquivista. É membro do Filmes do Caixote, um grupo de jovens diretores, responsáveis por trabalhos como Trabalhar Cansa (2011), O que se move (2013) e Sinfonia da Necrópole (2014). Como diretor, é responsável pelos curtas A Bela P... (2008), Eva Nil cem anos sem filmes (2009) e Meu amigo que trabalhou com Manoel de Oliveira, que fez cem anos (2012), entre outros. Como designer, fez o cartaz de dezenas de filmes brasileiros. É colaborador da Cinemateca Brasileira, no Setor de Documentação e Pesquisa. LUCAS MURARI Pesquisador, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Comunicação pela mesma instituição. Atua como programador e curador de cinema. LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR. É doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. Autor do livro A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo (Papirus, 2013). Ex-editor da revista eletrônica Contracampo. Já colaborou para as revistas Bravo! e Cult e para o Guia Folha – Livros, Discos e Filmes. Ministrou cursos e oficinas em espaços como Centro Cultural Banco do Brasil, Centro Cultural São Paulo, CineSESC, Cine Humberto Mauro e Fundação Getulio Vargas. 113 MARÍLIA LIMA RODRIGO DE OLIVEIRA É mestre em Comunicação pela UFJF. Dirigiu o curta Minas Hotel (2015) e co-dirigiu o curta Quase que só há estrelas, 2012. Foi curadora da Mostra François Ozon (2016, Caixa Belas Artes de São Paulo). É coordenadora de comunicação e curadora do Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades. É crítico e cineasta. Organizador do livro Diário de Sinta – Reflexões sobre o filme de Paula Gaitán (ed. Confraria do Vento/2011), roteirista do longa-metragem Exilados do Vulcão e roteirista e diretor do curta Eclipse Solar e dos longas As Horas Vulgares e Teobaldo Morto, Romeu Exilado. MATEUS NAGIME Graduado em cinema e vídeo pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Imagem e Som pela UFSCar Pesquisador, Preservador Audiovisual e às vezes professor. Curador de mostras cinematográficas como New Queer Cinema (2015) e Cinema Mexicano Contemporâneo (2016). Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, como tesoureiro (2013-14), secretário-geral (2014-16) e atualmente como diretor técnico. Trabalhou nos setores de revisão e catalogação do arquivo audiovisual do Centro Técnico Audiovisual (CTAv) entre 2009 e 2013 e no centro de pesquisa e documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna entre 2012 e 2014, onde organizou o Home Movie Day - Rio de Janeiro em 2013. Membro do comitê editorial da Imagofagia. PABLO GONÇALO Professor adjunto do curso de cinema e audiovisual da UNILA, Universidade da Integração Latino-Americana. É doutor em comunicação pela UFRJ, foi bolsista do DAAD com doutorado-sanduíche pela Universidade Livre de Berlim e realizou mestrado em comunicação pela UnB. Sua pesquisa foca nas trajetórias históricas de roteiristas e como eles estabelecem diálogos intermediáticos entre o teatro, as artes visuais, a literatura e o cinema. É autor do livro O cinema como refúgio da escrita: roteiros e paisagens em Peter Handke e Wim Wenders, Annablume, 2016. PEDRO MACIEL GUIMARÃES Professor do Departamento de Cinema (Instituto de Artes/Unicamp) e do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da mesma universidade. Mestre e doutor em Cinema e Audiovisual pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Desenvolve pesquisas sobre história e estética do cinema clássico e cinema moderno, atores de cinema, gêneros cinematográficos (melodrama, musical, noir) e as transferências culturais entre Europa e Hollywood. 114 SERGIO SILVA É roteirista, diretor e programador. Dirigiu vários curtas e médias-metragens. Fez a pesquisa do acervo de Rogério Sganzerla para o longa Mr. Sganzerla - Os Signos da Luz (2011, Joel Pizzini) e assistência de produção executiva em Luz nas trevas – a volta do Bandido da luz Vermelha (2010, Helena Ignez, Ícaro C. Martins). Programador da Cinemateca Brasileira, onde realizou inúmeras retrospectivas desde 2012. É integrante do coletivo Filmes do Caixote realizando várias funções em filmes do grupo. THAYS PRADO É jornalista, roteirista e mestre em Gênero, Mídia e Cultura, pela London School of Economics and Political Science, onde se dedicou a estudar representações de gênero e sexualidade no cinema. Está particularmente interessada em investigar a representação da adolescência como potencial para a desconstrução de estereótipos machistas e LGBTQI-fóbicos. Feminista, trabalha atualmente como coordenadora de programas na ONU Mulheres Brasil. WILL DOMINGOS É realizador, montador e fotógrafo. Mestre em Estudos do Cinema e Audiovisual pela UFF, onde estudou as formas de encenação do cotidiano e da intimidade nas vivências homoafetivas no cinema contemporâneo. É também integrante do coletivo OSSO OSSO (ossoosso.tumblr.com) e da produtora independente Farpa Filmes. 115 CRÉDITOS Realização Luzes da Cidade – Grupo de Cinéfilos e Produtores Culturais Insensatez Audiovisual Curadoria Denilson Lopes Mateus Nagime Coordenação de Produção Aleques Eiterer Marília Lima Pedro Nogueira Produção de Cópias Raquel Rocha Produção Local Daniela Marinho e Rafaella Rezende Galvão - Brasília Cesar Teixeira - Fortaleza Editoração do Catálogo Mateus Nagime Lucas Murari Textos Aleques Eiterer Chico Lacerda Denilson Lopes Érica Sarmet João Marcos Almeida Luiz Carlos Oliveira Jr Marília Lima Mateus Nagime 116 Pablo Gonçalo Pedro Maciel Guimarães Rodrigo de Oliveira Sérgio Silva Thays Prado Will Domingos Revisão dos Textos Fabricio Felice Marcelo Silveira Larissa Helena Tradução e Legendagem dos Filmes Felipe Gonçalves Mesa de Debates Ailton Monteiro Aleques Eiterer Denilson Lopes Fernando Pocahy Henrique Codato Ilda Santiago Luiz Carlos Oliveira Júnior Mariana Baltar Mateus Nagime Ruy Gardnier Tania Montoro Projeto Gráfico, Web Designer e Vinheta Inhamis Studio Assessoria de Imprensa Marina Fernandes – Brasília Eduardo Vanini – Rio de Janeiro Sarah Coelho - Fortaleza Redes Sociais e Assistência de Produção Fausto Junior Registro Fotográfico e Videográfico Marília Lima Pedro Nogueira Louise Ralola Fotografias Divulgação O Luzes da Cidade é composto por: Aleques Eiterer Fausto Junior Marília Lima Nilson Alvarenga Pedro Nogueira Tamires Fortuna AGRADECIMENTOS Amanda de Andrade, Amélie Rayroles, Bruce LaBruce, Cleo Chang, Dulce Maria de Carvalho, Giulia Côrtes de Carvalho, Janaina Bernardes (Studio Karim Aïnouz), Jürgen Brüning, Karen Lima, Luiza Paiva, Max Färberböck, Patricia Barbieri, Rumeysa Boz, Sompot Chidgasornpongse (Boat), Ulrike Weis e Vanda Eiterer. e os/as cineastas com filmes presentes na mostra e todas outras pessoas que nos ajudaram neste projeto 117