revista gragoatá 22 - Universidade Federal Fluminense
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Gragoatá n. 22 1o semestre 2007 Política Editorial A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura. ISSN 1413-9073 Gragoatá n. 154p. 1-140 Gragoata 22.indb 1 Niterói 2. sem. 2003 n. 22 p. 1-290 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:52 © 2007 by Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-008 Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 – http://www.eduff.uff.br – E-mail: [email protected] Organização: Projeto gráfico: Capa: Revisão: Normalização: Editoração: Supervisão Gráfica Coordenação editorial: Periodicidade: Tiragem: Eurídice Figueiredo e Lívia Reis Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME Rogério Martins É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da E ditora. Eurídice de Figueiredo (português), Viviana Gelado e Márcia Paraquett (espanhol), Bárbara Teixeira (inglês) Caroline Brito de Oliveira Vívian Macedo de Souza Káthia M. P. Macedo Ricardo Borges Semestral 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (jul./dez. 1996) - . — Niterói : EdUFF, 1996 – 26 cm; il. Organização: Eurídice Figueiredo e Lívia Reis Semestral ISSN 1413-9073. 1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Letras. CDD 800 APOIO PROPP/CAPES / CNPq UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Vice-Reitor: Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Diretor da EdUFF: Roberto de Souza Salles Emannuel Paiva de Andrade Humberto Machado Fernandes Mauro Romero Leal Passos Conselho Editorial: Mariângela Oliveira (UFF) – Presidente Lívia de Freitas Reis (UFF) Eneida Maria de Souza (UFMG) Solange Vereza (UFF) Silvio Renato Jorge (UFF) José Luiz Fiorin (USP) Leila Bárbara (PUC-SP) Lucia Helena (UFF) Eurídice Figueiredo (UFF) Regina Zilberman (PUC-RS) Laura Padilha (UFF) Jussara Abraçado (UFF) Conselho Consultivo: Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile) Cleonice Berardinelli (UFRJ) Célia Pedrosa (UFF) Eurídice Figueiredo (UFF) Evanildo Bechara (UERJ) Hélder Macedo (King’s College) Laura Padilha (UFF) Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa) Lucia Teixeira (UFF) Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham) Maria Luiza Braga (UFRJ) Marlene Correia (UFRJ) Michel Laban (Univ. de Paris III) Mieke Bal (Univ. de Amsterdã) Nádia Battela Gotlib (USP) Nélson H. Vieira (Univ. de Brown) Ria Lemaire (Univ. de Poitiers) Silviano Santiago (UFF) Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã) Vilma Arêas (Unicamp) Walter Moser (Univ. de Montreal) Gragoata 22.indb 2 6/11/2007 14:25:52 Gragoatá n. 22 1º semestre 2007 Sumário Apresentação .................................................................................... 5 ARTIGOS Epistemic Disobedience: the de-colonial Option and the Meaning of Identity in Politics........................ 11 Walter D. Mignolo O arquivo e o presente....................................................................43 Raúl Antelo Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações..............................................63 Eurídice Figueiredo “Nós Outros, Neo-Ibéricos”: O Entre-Lugar da identidade nacional no pensamento de Manoel Bomfim.............................85 Luiz Fernando Valente Debates de 1920: formas de pensar a tradição............................99 Silvina Carrizo A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)......................................................... 119 Haydée Ribeiro Coelho Modernismo brasileño y vanguardia argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mario: um diálogo fictício).........133 Mónica Bueno Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza.................................................... 145 Paulo Sérgio Marques Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti.............. 163 Graciela Ravetti Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño.............................................................. 179 Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo Gragoata 22.indb 3 6/11/2007 14:25:53 El sueño de la razón....................................................................... 191 Olga Valeska O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade................................................................207 Andréa Lúcia Padrão Ângelo O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana...........................................221 Danilo Luiz Carlos Micali Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma.......................................................235 Consuelo Alfaro Lagorio Perdón, desculpa, desculpa aí. La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano.......253 Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes e Leticia Rebollo Couto RESENHAS PIZARRO, Ana.O sul e os trópicos. Ensaios de cultura latino-americana. Niterói, RJ: EdUFF, 2006, 112 p. ......................................................................................273 Lívia Reis TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006, 156 p. . ......................................................................275 Heloisa Costa Milton Gragoata 22.indb 4 6/11/2007 14:25:53 Apresentação Na década de 1980, numa conferência em Campinas, o crítico uruguaio Ángel Rama sugeria a necessidade de se construir, através do trabalho intelectual, “uma aventura de um diálogo possível” entre o Brasil e a América Hispânica. Esta preocupação refletia seu trabalho de latino-americanista e homem dedicado ao estudo das letras e da cultura. Muita pesquisa foi feita desde então e o hiato existente entre as duas partes da América Latina parece ter ficado menor. Foi com o intento de continuar a construir este “diálogo possível” que este número 22 da Revista Gragoatá foi pensado. A leitura dos diversos textos que compõem o volume, sem dúvida, conduz o leitor por um multifacetado universo de literatura e de cultura atravessado por problemas políticos, éticos, estéticos e teóricos que fazem parte das principais preocupações da crítica cultural na atualidade. O texto que abre o volume, “Epistemic Disobedience: the de-Colonial Option and the Meaning of Identity in Politics”, do pesquisador argentino radicado nos Estados Unidos Walter Mignolo, apresenta um argumento que se baseia em duas teses interrelacionadas. A primeira tese, a identidade NA política seria, para o autor, um movimento necessário de pensamento e ação no sentido de romper as amarras da teoria política que prevalece na Europa desde Maquiavel, racista e patriarcal por negar o agenciamento político às pessoas classificadas como inferiores (em termos de gênero, raça, sexualidade, etc). A segunda tese se fundamenta no fato de que estas pessoas, consideradas inferiores, tiveram negado o agenciamento epistêmico pela mesma razão. Assim, toda mudança de descolonização política (não-racista, não heterossexualmente patriarcal) deve suscitar uma desobediência política e epistêmica. As duas teses são os pilares da opção descolonial, que permite pensar em termos do diversificado espectro da esquerda marxista e, de outro lado, do diversificado espectro da esquerda descolonial. No artigo “O arquivo e o presente”, Raul Antelo demonstra que o modernismo latino-americano é um fluxo histórico com momentos de intensidade, lacunas, períodos de agitação e ruptura dissidente. Reconstruir seu arquivo não significa procurar sua origem mas escolher, identificar e analisar aqueles momentos preteridos pela autonomia modernista. O efeito barroco, o assim chamado neo-barroco latino-americano dos anos 70, vincula-se diretamente a uma espécie de momento pré-póstero dessa história. Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 5 5 6/11/2007 14:25:53 Em “Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações”, Eurídice Figueiredo propõe uma leitura cruzada dos discursos da mestiçagem em relação aos discursos da transculturação, do hibridismo e da crioulização, mapeando como foram conceitualizados ao longo do século XX por alguns pensadores significativos da América Latina — continente emblemático da mestiçagem. Demonstra, em seguida, como eles acabaram extrapolando o âmbito deste continente para um uso mais generalizado tanto na América do Norte quanto na Europa, tendo em vista o fluxo de imigrantes, que cresce de maneira exponencial, numa diáspora que muda a feição de países até então considerados homogêneos, tanto étnica quanto culturalmente. No artigo “‘Nós Outros, Neo-Ibéricos’: O entre-lugar da identidade nacional no pensamento de Manoel Bomfim”, Luiz Fernando Valente demonstra que Bomfim define o singular espaço ocupado pelo Brasil dentro da geografia sócio-politicocultural lusófona em termos de uma dialética entre uma mentalidade consciente da sua diferença, que se poderia qualificar de pós-colonial já no século XVII, e o persistente “parasitismo” da herança ibérica, que teria “infectado” nosso corpo político e social, deixando seqüelas das quais ainda não nos conseguimos recuperar. Rejeitando as noções de síntese e harmonia caras ao pensamento oficial e codificadas no século XIX pelos textos de von Martius, Bomfim constrói a identidade brasileira como um “entre-lugar,” configurando-a através de uma espécie de psicomaquia entre, de um lado, um espírito independente, criativo e contestador, presente desde o início da nossa formação, e, do outro, um corpo sócio-político doente, contaminado pelo decadente colonialismo português. Já Silvina Carrizo em “Debates de 1920: formas de pensar a tradição” examina as diferentes discussões em torno do conceito da tradição de intelectuais como José Carlos Mariátegui, no Peru, e Gilberto Freyre, no Brasil, na década de 1920. Ao mesmo tempo, busca dialogar com as propostas de alguns escritores da época, como Graciliano Ramos, para analisar o alto grau de debate sobre o tema em questão. Tanto o indigenismo peruano quanto o regionalismo nordestino possibilitaram uma relação particular entre o regional e o étnico, o cultural e o temporal, assim como entre a linguagem e a memória, ao colocar no centro desta problemática universos culturais antes não considerados. Em “A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973)”, Haydée Ribeiro Coelho traça a interlocução entre o Brasil e os países hispano-americanos nos anos 1960 e 1970 através da análise de alguns textos do Suplemento Literário do Minas Gerais (cuja primeira edição data de 1966) que, buscando romper o isolamento do Brasil em relação aos demais 6 Gragoata 22.indb 6 Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:53 países da América Latina, publicou literatura e crítica hispanoamericanas. O material selecionado contém entrevistas, textos panorâmicos sobre a literatura hispano-americana, destacando também as resenhas que permitissem refletir sobre a indicação de obras aos leitores do Suplemento, propiciando ao estudioso de hoje reconstituir aspectos do diálogo do Brasil com a América Hispânica. No artigo intitulado “Modernismo Brasileño y Vanguardia Argentina: Filiaciones y Homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)”, Mónica Bueno estabelece um paralelo entre a literatura brasileira e a literatura argentina, demonstrando que o modernismo brasileiro é, como a vanguarda argentina, uma polifonia que os críticos tentam delimitar. Considerando que o romance na América Latina tem sido um gênero privilegiado para marcar a forma irreverente da margem cultural, a autora aponta Macedonio Fernández como o ponto de virada na história do romance na Argentina, por alterar consideravelmente os fundamentos epistêmicos da representação e Mário de Andrade no Brasil, porque põe em crise o marco do gênero. Em “Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza”, Paulo Sérgio Marques compara duas cenas de morte em Maíra, de Darcy Ribeiro, e Huasipungo, de Jorge Icaza, a fim de mostrar as diferentes concepções da morte, da cultura branca européia e do indígena americano, apresentadas nos dois romances indigenistas, e como elas expressam uma cosmovisão peculiar a cada uma dessas culturas, a cristã e a pagã, a colonizadora e a colonizada. Enquanto em Jorge Icaza a morte descrita pelo olhar do colonizador serve de objeto de hierarquização e separação, a morte pelo olhar indígena de Maíra revela-se como um processo de comunhão e participação. Graciela Ravetti em “Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti” aborda questões relacionadas com o transgênero performático. Tomando como objeto a ficção de Haroldo Conti, Mascaró, el cazador americano, pesquisa, a partir da compreensão de como performance e escrita se interligam, uma chave crítica e teórica que permita novas perspectivas de análise cultural. Em “Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño”, Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo apresenta uma tendência da narrativa latino-americana contemporânea que consiste na mistura de gêneros e no uso da crítica literária ficcional na construção de romances e livros de contos híbridos. Tomando como estudo de caso a obra do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), o artigo mostra as principais características deste tipo de narrativa e faz um paralelo com outros exemplos recentes de escritores da América Latina. Finalmente propõe algumas hipóteses teóricas para tentar situar o fenômeno na tradição literária latinoNiterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 7 7 6/11/2007 14:25:53 americana e analisa sua relação com as transformações recentes no campo das humanidades e das ciências sociais. Em “El sueño de la razón...”, Olga Valeska faz uma reflexão sobre o lugar da poesia e da literatura no atual contexto de mudança epistemológica. Dentro desse campo de discussão, o seu texto focaliza a obra ensaística do poeta mexicano Octavio Paz, colocando-a em diálogo com discursos advindos de diversos campos do conhecimento. “O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade”, de Andréa Lúcia Padrão Ângelo, enfoca dois contos de Borges em um gênero ainda considerado “menor”, o policial. Mostra, também, como essas narrativas aparecem vinculadas a preocupações que ultrapassam o gênero, abrangendo elementos comuns ao universo borgiano: filosóficos, teológicos, místicos, míticos, metafísicos e históricos. Danilo Luiz Carlos Micali, no artigo “O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana”, analisa o romance do autor argentino que promove um debate sobre a Conquista Hispânica da América, do ponto de vista particular de um narrador que constrói poeticamente a sua visão daquele passado, que não diz respeito a nenhum fato histórico preciso. Mas, enquanto a historicidade desse texto transparece nas suas entrelinhas, a sua imanente poesia define o seu aspecto de prosa poética, senão de narrativa poética, traços que apontam para um possível hibridismo literário do romance. Consuelo Alfaro Lagorio, em “Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma de Ayala”, examina a obra Nueva Crônica y buen gobierno, cujo texto reproduz, entre outros, os processos críticos de identidade, resultado dos acontecimentos históricos do século XVI. A crônica envolve um interdiscurso entre tradição oral da língua materna e literalidade em segunda língua, mas recorre também à tradição iconográfica andina, como parte dos conflitos desta identidade. Consciente do irreversível das mudanças pelas quais passavam as sociedades andinas, o cronista índio decide formular por escrito o que recolhe à maneira de um etnógrafo, o que lê nas crônicas espanholas e o seu próprio testemunho sobre os acontecimentos e seus antecedentes históricos. No texto “Perdón, desculpa, desculpa aí. La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano”, Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes e Leticia Rebollo Couto levantam o conjunto de fórmulas rituais, cristalizadas ou não, que permitem expressar pedidos de desculpas em diversas comunidades ibero-americanas, bem como comparar a natureza das ofensas que demandam atos reparadores. Analisam uma amostra de nove filmes contemporâneos ambientados em oito diferentes centros urbanos (Cuba, Espanha, México, Peru, Chile, Brasil, Argentina e Colômbia). Como resultado preliminar, 8 Gragoata 22.indb 8 Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:53 observam que houve algumas diferenças no uso de desculpas nas comunidades hispânicas ou brasileiras quanto 1) a suas formulações e 2) aos tipos de ofensas que são objeto de desculpas. Em suas formulações diretas, as desculpas estão necessariamente relacionadas aos diferentes sistemas de tratamento verbo-pronominais no que se refere às formas de tratamento: ustedeo, tuteo, voseo, no espanhol, neutralização tu/você, em português, e às correspondentes relações interpessoais em cada contexto sócio-cultural. Por fim, o volume apresenta duas resenhas. O primeiro livro, resenhado por Lívia Reis, é O Sul e os Trópicos. Ensaios de cultura latino-americana, de Ana Pizarro, e o segundo, resenhado por Heloísa Costa Milton, é América: história e ficção, de André Trouche, ambos publicados em 2006 pela Editora da UFF. Eurídice Figueiredo e Lívia Reis (organizadoras) Niterói, n. 22, p. 5-9, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 9 9 6/11/2007 14:25:54 Gragoata 22.indb 10 6/11/2007 14:25:54 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics. Walter D. Mignolo Recebido 19, jan. 2007/Aprovado 15, mar. 2007 Resumo O argumento deste artigo se baseia em duas teses interrelacionadas. A primeira tese, a identidade NA política (melhor do que política de identidade), é um movimento necessário de pensamento e ação no sentido de romper as grades da moderna teoria política (na Europa desde Maquiavel), que é — mesmo que não se perceba — racista e patriarcal por negar o agenciamento político às pessoas classificadas como inferiores (em termos de gênero, raça, sexualidade, etc). A segunda tese se fundamenta no fato de que estas pessoas, consideradas inferiores, tiveram negado o agenciamento epistêmico pela mesma razão. Assim, toda mudança de descolonização política (nãoracista, não heterossexualmente patriarcal) deve suscitar uma desobediência política e epistêmica. A desobediência civil pregada por Mahatma Gandi e Martin Luther King Jr. foram de fato grandes mudanças, porém, a desobediência civil sem desobediência epistêmica permanecerá presa em jogos controlados pela teoria política e pela economia política eurocêntricas. As duas teses são os pilares da opção descolonial, que nos permite pensar em termos do diversificado espectro da esquerda marxista e, de outro lado, do diversificado espectro da esquerda descolonial. Palavras-chave: opção descolonial; desobediência epistêmica; desobediência política. Gragoatá Gragoata 22.indb 11 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:54 Gragoatá Walter D. Mignolo 0.Readers of Gragoatá may be not familiar with a fundamental paragraph by Anibal Quijano in his ground-breaking article “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad” (1990. 1992). La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/modernidad es indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso que el camino consista en la negación simple de todas sus categorias; en la disolución de la realidad en el discurso; en la pura negación de la idea y de la perspectiva de totalidad en el conocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitiva con todo poder no constituido en la decision libre de gentes libres. Es la instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las promesas liberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuencia es clara: la destrucción de la colonialidad del poder mundial (QUIJANO, 1992, p. 447. Italics mine) What Quijano is proposing here is nothing less than epistemic disobedience. Without taking that step, and making that move, epistemic de-linking will not be possible and, therefore, we will remain within the domain of internal opposition to modern and Eurocentered thoughts, ingrained in Greek and Latin categories of thoughts and the experiences and subjectivities formed from that foundation, both theological and secular. We won’t be able to transgress the limits of Marxism, the limits of Freudism and Lacanism, the limits of Foucauldianism; or the limits of the Frankfurt School, including such a superb thinker grounded in Jewish history and German language like Walter Benjamin. I hope that it would be clear for reasonable readers that affirming the co-existence of de-colonial thinking won’t be taken as “deligitimazing European critical thoughts or post-colonial thoughts grounded in Lacan, Foucault and Derrida.” I have the impression that intellectuals of post-modern and Marxist bent take as an offense when the above mentioned author, and other similar, are not revered as believers do with sacred texts. This is precisely why I am arguing here for the de-colonial option as epistemic disobedience. I. No, I am not talking about “identity politics” but of “identity in politics.” No need, therefore, to argue that identity politics is predicated on the assumption that identities are essential aspects of individuals, that leads to intolerance and that in identity politics fundamentalists positions are always a danger. Because I partially agree with such a view of identity politics — of which none is exempt, as there is an identity politics predicated on Blackness as well as on Whiteness, on Womanhood as well as 12 Gragoata 22.indb 12 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:54 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics on Manhood, on Homosexuality as well as Heterosexuality —, is that my argument is built on the extreme relevance of identity in politics. And identity in politics is relevant not only because identity politics is, as I just suggested, all over the spectrum of social identities, but because the control of identity politics lies, precisely, in the construction of an identity that doesn’t look as such but as the “natural” appearance of the world. That is, Whiteness, Heterosexuality and Manhood are the main features of an identity politics that denounces similar but opposing identities as essentials and fundamentalists. However, the dominant identity politics doesn’t manifest itself as such, but through abstract universals such as science, philosophy, Christianity, liberalism, Marxism, and the like. I will argue that identity in politics is crucial for any decolonial option, since without building political theories and organizing political actions that are grounded on identities that have been allocated (e.g., there were no Indians in the American continents until the arrival of the Spaniards; and there were no Blacks until the beginning of the massive slave trade in the Atlantic) by imperial discourses (in the six languages of European modernity — English, French and German after the enlightenment; and Italian, Spanish and Portuguese during the renaissance), it may not be possible to de-naturalize the imperial and racial construction of identity in the modern world under a capitalist economy. Identities constructed by European modern discourses were racial (that is, the colonial racial matrix) and patriarchal. Fausto Reinaga (the Aymara intellectual and activist) clearly stated in the late sixties: “I am not Indian, dammit, I’m Aymara. But you made me Indian and as Indian I will fight for liberation.” Identity in politics, in summary, is the only way to think de-colonially (which means to think politically in de-colonial terms and projects). All other ways of thinking (that is, intervening in the organization of knowledge and understanding) and of acting politically, that is, ways that are not de-colonial, means to remain within the imperial reason; that is, within imperial identity politics. The de-colonial option is epistemic, that is, it de-links from the very foundations of Western concepts and accumulation of knowledge. By epistemic de-linking I do not mean abandoning or ignoring what has been institutionalized all over the planet (e.g., look what is going on now in Chinese Universities and the institutionalization of knowledge). I mean to shift the geoand body-politics of knowledge from its foundation in Western imperial history of the past five centuries, to the geo-and bodypolitics of people, languages, religions, political and economic conceptions, subjectivities, etc., that have been racialized (that is, denied their plain humanity). Thus, by “Western” I do not mean geography per say, but the geo-politics of knowledge. Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 13 13 6/11/2007 14:25:54 Gragoatá I use South America in a very general sense that includes Central America and the Caribbean, “south of Rio Grande” in the one sense; and the Caribbean that in spite of being English or French, has more in common with the South than with the North, that is, North America (U.S. and Canada). Briefly, the imperial/ colonial history is what is at stake rather than Eu r o p e a n o r No r t h American text-books on geography. 1 14 Gragoata 22.indb 14 Walter D. Mignolo Consequently, the de-colonial option means among other things, learning to unlearn (as it has been clearly articulated in the Amawtay Wasi high learning project, I will come back to it), since our (a vast number of people around the planet) brains have been programmed by the imperial/colonial reason. Thus by Western knowledge and imperial/colonial reason I mean the knowledge that has been built on the foundations of Greek and Latin and the six European imperial languages (also called vernaculars) and not Arabic, Mandarin, Aymara or Bengali, for example. You could argue that Western reason and rationality is not all imperial, but also critical like Las Casas, Marx, Freud, Nietzche, etc. Sure, but critical within the rules of the games imposed by imperial reasons in its Greek and Latin categorical foundations. There are many options beyond the bubble of The Truman Show. And it is from those options that de-colonial thinking emerged. De-colonial thinking means also de-colonial doing, since the modern distinction between theory and practice doesn’t apply once you enter in the realm of border thinking and de-colonial projects; once you enter the realm of Quichua and Quechua, Aymara and Tojolabal, Arabic and Bengali, etc. categories of thought confronted, of course, with the relentless expansion of Western (that is Greek, Latin, etc.), foundation of knowledge, let’s say, epistemology. One of the achievements of imperial reason was to affirm itself as a superior identity by constructing inferior constructs (racial, national, religious, sexual, gender), and expelling them to the outside of the normative sphere of “the real.” I agree that today there is no outside of the system; but there are many exteriorities, that is, the outside constructed from the inside in order to clean and maintain its imperial space. It is from the exteriority, the pluri-versal exteriorities that surrounding Western imperial modernity (that is, Greek, Latin, etc.), that decolonial options have been repositioned and emerged with force. The events in Ecuador in the past 10 years, as well as those in Bolivia that culminated in the election of Evo Morales as president of Bolivia, are some of the most visible signs today of the de-colonial option, although de-colonial forces and de-colonial thinking have been in the Andes and Southern Mexico for five hundred years. In South1, Central America and the Caribbean, de-colonial thinking has been dwelling in the minds and bodies of Indigenous as well as of those of Afro-descendent. The memories inscribed in their bodies through generation, and the socio-political marginalization to which they have been subjected by direct imperial institutions as well as by republican institutions controlled by the Creole population from European descent, nourished a shift in the geo-and body-politics of knowledge. “Maroon decolonial thinking” built on the Palenques in the Andes and the Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:54 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics G u a m á n Po m a d e Ayala, Nueva Crónica y Buen Gobierno (1516) is one of the first de-colonial Indigenous political treatise that remained in manuscript format until 1936. Quobna Ottobah Cugoano, who was transported from Jamaica to England toward the second half of the eighteenth century, published another decolonial political treatise in 1786, in London: Thougts and sentiments of the evil of slavery (1786). More recently, Maori scholar and activist, Linda Tuhiwai Smith published a groundbreaking de-colonial proposal: Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. See the extensive three book reviews published by Heather Howard-Bobiwash; by John Ortley and by Monica Buttler et al., in The American Indian Quarterly, disponible on: <http:// muse.jhu.edu/journals/ american_indian_quarterly/toc/aiq29.1.html> (v. 29, n. 1-2, 2005). The pioneering and ground breaking work of Fausto Reinaga is being re-considered today in Bolivia; Frantz Fanon is being re -read, b eyond t he post-colonial market, by de-colonial intellectuals and activists. In the U.S., Native Americans are re-evaluating the pioneering work of Sioux legal scholar, intellectual and activist Vine Deloria, Jr. See for example, Devon Abbot Mihesuah, Indigenous american women: decolonization, empowerment and activism (2003). 3 See Madina Tlostanova (2006). 2 Kilombos in Brazil, for example, complemented “Indigenous de-colonial thinking” at work as immediate responses to the progressive invasion of European imperial nations (Spain, Portugal, England, France, Holland).2 De-colonial options, and decolonial thinking have a genealogy of thought not grounded in Greek and Latin but in Quechua and Aymara, in Nahuatls and Tojolabal, in the languages of enslaved African peoples that was subsumed in the imperial language of the region (cfr. Spanish, Portuguese, French, English, Dutch), and re-emerged in truly de-colonial thinking and doing: Candomblés, Santería, Vudú, Rastafarianism, Capoeira, etc. After the end of the eighteenth century, the de-colonial options extended to several locales in Asia (South, East, Central) as far as England and France, mainly, took over the leadership of Spain and Portugal from the sixteenth to the eighteenth centuries. But, let’s come back to the Andes and to South America, dwelling in and thinking from the de-colonial option (or decolonial options, if you prefer). There are a series of keywords explicit and implicit in my paper (development, inter-culturality, imaginary of the nation, de-colonial). These keywords are not in the same universe of discourse. Or better yet, in the same epistemic field. We have indeed two sets of key words here: development, difference and nation and inter-culturality and de-coloniality. The first set belongs to the imaginary of Western modernity (nation, development) and post-modernity (difference), while the second belongs to the de-colonial imaginary. Let me explain. “Development” was — as we all know —in South America and the Caribbean, the key word of the third wave of global designs after WWII when the U.S. took the lead over England and France, and replaced their civilizing mission with their own version of modernization and development. It became apparent by the late sixties and early seventies — with the crisis of the welfare State — that “development” was another term in the rhetoric of modernity to hide the re-organization of the logic of coloniality: the new forms of control and exploitation of the sector of the world labeled Third World and underdeveloped countries. The racial matrix of power is a mechanism by which not only people, but languages and religions, knowledge and regions of the planet are racialized. Being underdeveloped is it not like being Indigenous from the Americas, Australia and New Zealand? Or Black from Africa? Or Muslim from the Arab world? Being from the colonies of the Second World (e.g., Central Asia and Caucasus)3, was it not in a way being as invisible as colonies of a second-class empire, an imperial racialization hidden under the expression “Second World”? The rhetoric of modernity (from the Christian mission since the sixteenth century, to the secular Civilizing mission, to development and modernization after WWII) occluded — under Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 15 15 6/11/2007 14:25:55 Gragoatá The Eastern Front was unparalleled for its high intensity, ferocity, and brutality. The fighting i nvolved m illions of G e r m a n a nd S ov ie t troops along a broad front. It was by far the deadliest single theatre of war in World War II, with over 5 million deaths on the Axis Forces, Soviet military deaths were about 10.6 million (out of which 2.6 million Soviets died in German captivity), and civilian deaths were about 14 to 17 million. If one adds to this the six millions Jews killed under Hitler’s regime (the Jewish Holocaust); and to Iraq and Lebanon, where the State of Israel is enacting on the population of Lebanon what happened to their own Jewish ancestors in Western and Central Europe half a century ago; from the commodit y value to which enslaved Africans were subjected to the current traffic of women and children as well as human organs, the rhetoric of modernity remained strong. 5 The maquila, the commercialization of human organs and human bodies (e.g., young women in regions of Asia, Central Asia, Russia) “captured” and “sold” pretty much like enslaved African men in the sixteenth and the seventeenth century, are all examples of the same history of Western barbarism hidden under the rhetorical splendors of Western civilization. The world is flat, as Thomas Friedman celebrates, but it is also very, very thick! 4 16 Gragoata 22.indb 16 Walter D. Mignolo its triumphant rhetoric of salvation and the good life for all — the perpetuation of the logic of coloniality, that is, of massive appropriation of land (and today of natural resources), massive exploitation of labor (from open slavery from the sixteenth to the eighteenth century, to disguised slavery, up to the twenty first century), and the dispensability of human lives from the massive killing of people in the Inca and Aztec domains to the twenty million plus people from Saint Petersburg to the Ukraine during WWII killed in the so called Eastern Front.4 Unfortunately, not all the massive killings have been recorded with the same value and the same visibility. The unspoken criteria for the value of human lives is an obvious sign (from a de-colonial interpretation) of the hidden imperial identity politics: that is, the value of human lives to which the life of the enunciator belongs becomes the measuring stick to evaluate other human lives who do not have the intellectual option and institutional power to tell the story and to classify events according to a ranking of human lives; that is, according to a racist classification.5 It is true, as I mentioned before, as everybody knows, that within the same civilization of death and of fear, critical voices stood up to map the brutalities of a civilization built upon the rhetoric of salvation and well-being for all. Eric Hobsbawm wrote a powerful piece titled “Barbarism: A User’s Guide” (1994) in which he recognized, described and condemned the “barbarian” record of modern and Western civilization (as a good British intellectual Hobsbawm’s horizon was the enlightenment). And also with English humor, he clarified from the beginning that his article was not intended as a guide to practice barbarism but, rather, a guide of the barbarian moments of Western civilization (e.g., modernity and capitalism). He highlighted the Jewish Holocaust, but “forgot” the Holocaust of enslaved Africans before the enlightenment as well as the killing of non-Western lives, like the 25 million Slaves that died in the Eastern frontier of Europe, as I mentioned before, from Saint Petersburg to Belarusia and the Ukraine. II. But let’s come back to the concept of “development” during the Cold War that was the name of the global design of the US in its inaugural stage of global domination. In South America, the politics of development was denounced by the CEPAL (Comisión Económica para América Latina) itself (by its own chairman, the argentine economist Raúl Prebisch), and by the more left-leaning sociologists and economists that advanced the well known “dependency theory.” “Development” was also critiqued in South America by the foundation of Liberation Theology and Liberation Philosophy. Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:55 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics See for instance the e d it ion i n t h e web, <http://www.crusader. net/texts/mk/>; a site called The Occidental Pa n-Ar ya n Cr usade, where there is a list of “other white nationalist texts.” 6 If during the Cold War the liberal concept of “development” embodied a re-organization of the logic of coloniality as lead by the U.S., and encountered the Dependency Theory and Theology/Philosophy of Liberation as its opponents, after the end of the Cold War new developmental designs (this time in terms of a Free Trade Agreement (FTA) of a different kind), encountered a fierce resistance by the political and economic projects emanating from Indigenous Nations, mainly in the Andean region of South America. Globally, Free Trade Agreements have been opposed by a number of social movements under the banner of “yes to life” as a response to the “projects of death” embodied in FTA. Today the de-colonial option is at work around the world, beyond the critiques being advanced, daily, within the capitalist and neo-liberal civilization. In Israel and in the U.S., as well as in Europe, the opposition to the invasion of Iraq and of Lebanon has been growing. Internal critiques (liberals, Marxists, Jews and Christians) are necessary but hardly sufficient. De-colonial options are showing that the road to the future cannot be built from the ruins and the memories of Western civilization and its internal allies. A civilization that celebrates and enjoys life instead of making certain lives dispensable to accumulate wealth and to accumulate death, can hardly be constructed from the ruins of Western civilization, even in its “good” promises as Hobsbawn would like to have it. Recently, for example, Via Campesina, the Fishermen World Forum, International Friends of the Land, and other social movements, have been imposing themselves as leaders of a non-capitalist world, by forcing the collapse of the Doha Round. Pascal Lamy, the secretary of the OMC, officially announced the suspension of the Doha Round’s negotiation. Non-development projects, like projects for the reproduction of life and not for the reproduction of death (like Via Campesina, the Fishermen World Forum, the International Friends of Land, the Indigenous Nations of Ecuador, etc.), are gaining ground. A cautionary note is in order. When I talk here about “reproduction of life” I am not aligning myself with Henry Bergson’s vitalism and its re-inscription in contemporary debates. Deleuze’s vitalism or philosophy of life, for instance, has its roots in Henri Bergson’s (1911) and its conception of the “elan vital” (vital force) and it is cast in the philosophy of evolution and development of organism. “Vital force” was a concept, an important concept, in Adolf Hitler´s Mein Kampf.6 If we were only to think within the limits of modern and imperial reason, then every reference to the reproduction of life will be interpreted in the trajectory from Bergson to Hitler. Fortunately, the de-colonial option allows for a conception of reproduction of life that comes from the damnés, in Frantz Fanon’s terminology, that is, from the Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 17 17 6/11/2007 14:25:55 Gragoatá On border thinking or border epistemology (also gnosis), see Walter D. Mignolo and Madina V. Tlostanova (2006, p. 205-222). 7 18 Gragoata 22.indb 18 Walter D. Mignolo perspective of the majority of people on the planet whose lives were declared dispensable, whose dignity was humiliated, whose bodies were used as a work force: reproduction of life here is a concept that emerges from the Indigenous and enslaved Afros in the formation of a capitalist economy, and that extends to the reproduction of death through Western imperial expansion and the growth of a capitalist economy. That is, the de-colonial option that nourishes de-colonial thinking in imagining a world in which many worlds can co-exist. Today, a de-colonial way of thinking that doesn’t own allegiance to the Greek categories of thought, is already an existing option: re-inscribe in the legacies of the ayllu in the Andes and the altepetl in Mexico and Guatemala. We can imagine that similar de-colonial moves are taking place in the Islamic world, in India, in North and Sub-Saharan Africa. Re-inscription of marginalized and denigrated languages, religions and ways of thinking are being re-inscribed in confrontation with Western categories of thought. Border thinking or border epistemology is one of the consequences and the way out to avoid either Western or non-Western fundamentalisms.7 The reproduction of life that I am talking about (in the sense that the university Amawtay Wasi understands “buen vivir” instead of “professional excellence”, the mantra of the modern, corporate university in the US and Europe, but also in other parts of the world due to the imperial dimension of learning— flattening the world, as Thomas Friedman would like to celebrate) then comes from the long memories of the ayllu and the altepetl, without which it would be difficult to understand the force of Indigenous nations in Ecuador, the election of Evo Morales in Bolivia, and the Zapatistas uprising in Southern Mexico. That is, the re-articulation of Indigenous Nations and the recession of mono-topic (that is, mono-linguistic and religious ethnicity of the creole-mestizo/a elite in South America, equivalent to the national white elite in Western Europe and the U.S.), is forcing a radical transformation of the equation of one Nation-one State. The pluri-national State that is already well advanced in Bolivia and Ecuador is one of the consequences of identity in politics fracturing the political theory on which the modern and monotopic State was founded and perpetuated, under the illusion that it was a neutral, objective and “democratic” state detached from identity in politics. Whiteness and political theory, in other words, are transparent, neutral and objective, while Colors and political theory are essentialists and fundamentalists. The decolonial option disqualifies this interpretation. By linking decoloniality with identity in politics, the de-colonial option reveals the hidden identity under the pretense of universal democratic theories, while building on the racialized identities that were constructed by the hegemony of Western categories of thought, Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:55 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics histories and experiences (again, Greek and Latin foundations of modern/imperial reason). Thus, if in the modern/colonial world, philosophy since the European Renaissance was part of the formation and the transformation of European history by its indigenous population described as Western Christians, such a concept of philosophy (and theology) was the weapon that mutilated and silenced similar rationalities in Africa and in the Indigenous population of the New World. By philosophy here I mean not only the disciplinary and normative formation of a given practice, but the underlying cosmology that underlines it. What Greek thinkers called philosophy (love to wisdom) and Aymara thinkers tlamachilia (to think well), are local and particular expressions of a common tendency and energy in human beings. The fact that “philosophy” became global doesn’t mean that it is also “uni-versal.” It simply means that the Greek concept of philosophy was picked up by the intelligentsia linked to imperial/colonial expansion, the foundation of capitalism and Western modernity. I bring up these examples because I am interested in three (among others) types of projects that confront neo-liberal globalization yet at the same time work toward a socio-political organization, on a global scale, based on the de-fetichization of political power and on an economic organization that aims at the reproduction of life instead of the reproduction of death; and aims at reciprocity and fair distribution of wealth among many rather than the accumulation of wealth among the few. It is this latest economic goal that needs exploitation and domination, corruption and self-serving labor. An economy oriented toward the reproduction of life and the well being of the many, embodies a politic of representation in which the power is in the community and not in the State or any other equivalent administrative institution. A simplified version of four to five hundred years of history in South America and the Caribbean (depending on the location and the communities, Indigenous or Afro communities), would have these elements in common: a) An internal organization of the Indigenous and Afro communities (intra-cultural) as a matter of survival confronted with the invasion of Europeans (Spanish, Portuguese, Dutch, French and English imperial designs), in different locales of the Americas and the Caribbean; b) An external organization to fight against the imperial/ colonial infiltration in their town, economic and social organization, cultures and lands. First, in confrontation with imperial/colonial authorities; secondly, after “independence” against the nation-state controlled by Creoles from European descent and Mestizos with European dreams; finally, and more recently, in confrontation with Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 19 19 6/11/2007 14:25:55 Gragoatá Walter D. Mignolo the transnational corporations dilapidating the forests, the beaches and the areas rich in natural resources; and also in confrontation with the national-states defending Free Trade according to Washington designs. The consequences of three hundred years (approximately) of direct colonial rule and of two hundred years (approximately) of internal colonialism (that is, the Creole/Mestizo elite after independence), was the growing force of nations (indigenous and afros) within the nation where mestizaje became the ideology of national homogeneity, an oxymoron that portrays the reality of colonial states in South America and the Caribbean. In the U.S. (like in England, Germany or France), mestizaje was not a problem until the recent flow of immigration. For centuries, modern/imperial Europe lived under a national ideology sustained by a white Christian population (either Catholic or Protestant). Indigenous nations within the Creole/Mestizo nation, is what is at stake today in the Andes, Southern Mexico and Guatemala. Indeed, what is in recession is the ethnicity upon which nationstates were imagined, from the early nineteenth century until recently. What is in recession is the Latin ethnicity and what is accelerating and rising is the variegated spectrum of Indigenous and Afro projects, in their epistemic and political dimension. What is at stake then in identity in politics and epistemology? We are not just facing demands, from Indigenous and Afrocommunities, to the national state and to the Latin ethnic group that control politics and economy. We are facing a radical shift in which Indigenous and Afro-communities are clear about two basic principles: (a) The epistemic rights of Indigenous and Afro communities upon which political and economic de-colonial projects are being built and a de-colonial subject affirmed as difference in the human sameness (e.g., because we are all equal we have the right to the difference, as the Zapatistas claimed) and (b) Without the control of the epistemic foundation of Afro and Indigenous epistemology, that is, of political theory and political economy, any claim made from the liberal or Marxist State will be limited to offering liberty and preventing Indigenous and Afros to exercise their freedom. De-colonial thinking is the road to pluri-versality as a universal project. The pluri-national State that Indigenous and Afros claim in the Andes, is a particular manifestation of the larger horizon of pluri-versality and the collapse of any abstract universal that is presented as good for the entire humanity, its very sameness. This means that the defense of human sameness above human differences is always a claim made from the privileged position of identity politics in power. 20 Gragoata 22.indb 20 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:56 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics III I have been asked question as this: oh, so you mean that to shift the geo-graphy of reason or to shift from ego-politics to geo-politics of knowledge you have to be Indian, and that only Indians can do it? So, what about me, who is not Indian but White, what can I do? Am I being left out of the game? Last time I have been asked such questions, not without anger, was by a young Spanish Marxist, during one of the summer seminars, organized by Universidad Complutense. This seminar was on “De-colonial thinking” and Nina Pacari was one of the speaker and participants during the week-long seminar. The question brought to the forefront the complicity between geo- and bodypolitics of knowledge disguised under “disciplinary identity.” One of the arguments advanced during the debates, in that long week seminar, was that after all the talk about de-colonial thinking, cannot be taken seriously; that de-colonial arguments were not argument grounded in the social sciences (and I am not joking here). Another sociologist in the audience asked, with the assurance that being a sociologist gave him, “could you define de-colonial thinking? You gave a history, used it metaphorically, but you never gave a definition.” They were asking for epistemic obedience. I did not offer him of course a definition because it would have meant playing according to the rules he was asking me to play to that was “disciplinary identity”. And he was refusing to play according to the rules I was playing, which was the racialization of bodies and geo-historical locations. That is, I was not playing the game of disciplinary identity but of “geo-and body-identification” as formed and shaped, in the modern/colonial world, by the rhetoric of modernity justifying capitalist economy. In other words, I was offering the Marxist and sociologists interlocutors to consider the de-colonial option; and they refused of course, inviting me to play according to the social sciences disciplinary norms and marxist convictions. It was not easy for my interlocutors to see that they were playing an “identity politics game” and pretended, or believed, that their position occupied a location beyond identity; beyond geo- and body- political configurations. I was, in other words, de-linking from Eurocentrism in the particular sense that the concept of Eurocentrism has for us, in the project modernity/coloniality. Eurocentrism doesn’t name a geographical place but the hegemony of a way of knowing grounded in Greek and Latin and in the six European and imperial languages of modernity; that is, modernity/coloniality. And how do you de-link from Eurocentrism if you are, like me, an Argentinean of European descent and not an Indian of the Andean Region or an Ecuadorian, Barbadian or Martinican of African descent? Certainly, you can be of African descent Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 21 21 6/11/2007 14:25:56 Gragoatá The work of Gunther Rodolfo Kusch extends from 1952 (La seducción de la barbarie) to 78 (Geocultural del hombre Americano’1976’ and Esbozo de una antropología Filosófica Americana, 1978). In the meantime he published three major books: América Profunda (1963), Pensamiento Indígena y Pensamiento Popular en América (1973). What follows is a summary of ideas running through the work of Kusch, here as well as in articles and talks he delivered in Argentina and Bolivia, mainly. 8 22 Gragoata 22.indb 22 Walter D. Mignolo and embrace the tradition of White European thinkers, Jews or not; or you can be a White person from France or the U.S. and embrace the tradition of African and Afro-Caribbean radical thinkers, etc. I am uncoupling the formation and transmission of epistemic regions, linked to bodies and regions of the modern/ colonial world and their movement through time and space. They move but they do not vanish: go tell a post-modern thinker or a conservative European philosopher that there is no such a thing as European philosophy or European history of ideas, and you may have the confirmation that fictional entities also exist; and that European thinkers have made clear that there is a corelation between certain ideas, certain regions of the world and certain types of persons. That is why still Indigenous and Afro intellectuals have difficulties in getting their ideas competitive with say some one like Martin Heidegger or Samuel Huntington, to give two different examples. Now let’s go back to the initial question of the previous paragraph and take the example of the Argentinean philosopher of German descent, Gunther Rodolfo Kusch (1922-1979), whose work was written and published between 1953 and 1980. Among Kusch’s many original contributions, and his isolation precisely because of its originality, is the concept of “mestizo consciousness” that he introduced in the late fifties. “Mestizo consciousness” in the fifties, in Argentina and in the pen of a philosopher of German descent, was a concept not yet ready to be seen.8 Here we have, in the work of Rodolfo Kusch, a sustained effort of twenty five years of epistemic disobedience. He paid his dou, and he was isolated. “Mestizo consciousness” for Kusch did not have anything to do with biology and mixed blood, which was the canonical understanding of mestizaje: mixed blood of Spaniard or Portuguese (generally the father) and Indian (generally the mother). We should remember also that Spaniard or Portuguese coupled with Africans were called “mulatos.” Although Kusch refers only incidentally to Blacks in America, “mestizo consciousness” is a concept open enough to embody also the “mulato consciousness.” What is then, for Kusch, “mestizo consciousness”? It has been a concern of thinkers and philosophers of European descent, particularly in Argentina, there being displaced Europeans; that is, Europeans but not quite enough. The distinction in Castilian language between “ser” (to be) and “estar” (to be), acquired a philosophical dimension that explained the fractures and the existential feelings of displaced Europeans in the Americas. Important: Kusch doesn’t talk about Latin America, but about America. For a philosopher in America, a mestizo consciousness, it was difficult to think “Being”, or “Existence”, or “History” or “Economy” of “Humanity”…etc., etc.Those uniNiterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:56 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics versal entities could/can only be conceived, explored, unfolded, conceptualized from the perspective of a “pure consciousness”, from a consciousness where there is no difference between ser and estar; for a consciousness in which some one es donde está and está donde es. That is, for some one who can feel/be where she is and are where she should be. If you are not, if you do not feel you are a “pure consciousness,” you may feel that you do not belong to the sphere of Being, of History, of Economy, of Politics, etc. Instead, if you feel you belong to the “pure consciousness” category you may not even know it and do not ask such questions, because simply you feel you are and, naturally, everybody else should feel the same and if they don’t, well, it is not your fault; there must be something wrong with them. However, the category of “pure consciousness” is only conceivable from the perspective of “mestizo consciousness”, which is a way of shifting the geography of reason and unveiling the regionality of a consciousness without qualification because it is assumed to be uni-versal. Thus, mestizo consciousness for an Argentine philosopher of German descent, very well versed in Kant, Hegel, Niestzche, Husserl, Heidegger, the fracture between ser and estar is not a question of blood but a question of feeling; a feeling of being out of place, of feeling when he will theorize during the fifties as the natural force of America and in the sixties and seventies moving to an understanding of Aymara philosophy, of Aymara thought. But also bringing both together, the correlation between space and density of organic life (pampas, mountains, jungles, flora, rivers, etc.) with scattered cities and low demographic density. In other words, Greece and Rome (or Jerusalem for Levinas) are far, too far away, for a mestizo consciousness in America. Instead, the exuberant organic life (some would say “nature”) and the dense memory of Indigenous civilizations and cosmologies (instead of Greek, Roman or Hebrew) and languages (Aymara and Quechua, instead of Greek, Latin and Hebrew), offered in America the place and the memory of who one is (ser) and where one is (estar). Thus, mestizo consciousness is a philosophical and not a biological concept. A philosophical concept that is unthinkable in the history of European philosophy, from Tales of Mileto to Heidegger of the Black Forest in Messkirch. Mestizo consciousness is a philosophical concept open to the pluri-versal, like double consciousness in Du Bois, mestiza consciousness in Anzaldua; mestizo/mulato consciousness in Colombian thinker, writer and medical doctor, Manuel Zapata Olivella. Concepts in the history of European philosophy are mono-topic and uni-versal not pluri-topic and pluriversal. And why are concepts that are elaborated in de-colonial projects and in the process of de-colonial thinking pluri-topic and pluriversal? Because the colonial wound has been diversified, emNiterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 23 23 6/11/2007 14:25:56 Gragoatá Walter D. Mignolo ploying the language of Wall Street, around the world: Indians in America, Australia and New Zeland; Sub-Saharan African Blacks and in the Americas; Arabs and Berbers in North Africa and in the Middle East; Indians in post-partition India; and even Chinese, Japanese, and Russian and their colonies had to deal one way or another with the mono-topic cosmovision of Western civilization encapsulated in Greek and Latin, the six modern European imperial languages, and the corresponding subjectivity inscribed in and through artistic expression, popular culture, mass communication, etc. That is why mestizo consciousness is diverse and diversified. And that is why also any de-colonial project and any de-colonial option had to deal with border epistemology and border thinking and double translations as methodological path (sorry for the pleonasm, and the redundant expression “methodological path”). The dislocation of “mestizo consciousness” lived and experienced in the critical awareness of people of European descent has something in common with the dislocation of Indigenous and Afro dislocated consciousness also in America. If the awareness of being of European descent, and therefore not of African or of Original (that is Ab-Original) descent, is the awareness of a dislocation of a “mestizo consciousness”, that consciousness has something in common with W.E. B. Du Bois double consciousness or Gloria Anzaldúa mestiza consciousness. What they have in common is the colonial wound; a sense of the modern/ colonial fracture; of the modern/colonial racial displacement. Certainly, there is a question of scale, and the colonial wound in an Argentine of European descent is not the same as the colonial wound of an Aymara of ab-original descent. The three kinds of experiences, however, are felt in relation to the presence of the absence: the pure consciousness of European imperial/ colonial expansion and forced invitation to assimilate or to feel the difference, the colonial difference. Thus, the de-colonial option shall become clear in this context. De-colonial means thinking from the exteriority and in a subaltern epistemic position vis-à-vis the epistemic hegemon that creates, builds, constructs an outside in order to assure its interiority. Don’t we hear that every day in President Bush’s discourses, a discourse that was common among Western Christians in the sixteenth and seventeenth century; secular Liberals in the nineteenth and twentieth century; Neo-liberals and Marxists. The de-colonial implies to think from languages and categories of thoughts not-included in the fundamentals of Western thoughts. Again, Greek and Latin and (please repeat with me…!). But the question here was, what can an Argentine of European descent do if his family language is German and the official language of the country, Argentina, is Spanish? He is not 24 Gragoata 22.indb 24 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:56 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics Black or Indian, so how can he think from Exteriority (instead of Greek or Latin) categories of thoughts that are not imbedded in the imperial history of Western thoughts? There a few ways to answer these questions. Be patient, please. We have to unknot the knot, learn to unlearn, and learn to relearn at every step. Kusch engaged in three of his books, with both the colonial archive of Indigenous philosophy and the present philosophical thoughts among Aymara’s. In the first dimension, he engaged with Waman Puma de Ayala and the Warochiri Manuscript, as well as the Quechua and Aymara dictionaries by González Holguin and Ludovico Bertonio. In the preface of one of his fundamental books, El Pensamiento Indígena y Popular en América (1963), Kusch observes, from the outset: La búsqueda de un pensamiento indígena no se debe sólo al deseo de exhumarlo científicamente, sino a la necesidad de rescatar un estilo de pensar que, según creo, se da en el fondo de América y que mantiene cierta vigencia en las poblaciones criollas (Prologo). Certain words like “rescatar” (to recover) and “el fondo de America” (“deep America”) do not sound right forty years later. We would say “re-inscribe” and perhaps “in the ab-original memory in America”. But this is not the point. The point is the clarity of the project and the need to make it explicit from the very beginning, the first sentence of the prologue. A couple of good books have been written, more recently, in which a scientific analysis (philosophical one and anthropological the other; Josef Estermann and Fernando Martinez Enriquez) has been advanced. Kusch follows in the steps of Nahuatl historian Miguel Leon Portilla and attempts to take another step. And that step is to move from the analysis of Aymara thought, to take it seriously, to understand the socio-historical and subjective “problems” in America. Furthermore, a third step is to offer the sketch of an American way of thinking (parallel, co-existing and overlapping, and obviously differential with a Western way of thinking. The key concept here is estar instead of ser. This is nothing less than the main goal of El pensamiento indigena y popular en America. Let me offer you a highlight of the Kusch enterprise from chapter 10, “Salvation and Economy”. I selected this chapter because it can be put into a dialogue with Felix Patzi and Nina Pacari that I mentioned before. Kusch began the chapter, as he often does, with an anecdote that sets the stage of the issue to explore. In this case, he remembers that Toledo, a small city in Bolivia, a very well educated resident and self identified Indian, confessed to Kusch that for him Indians were illiterate and as such they couldn’t get used to a cooperative system. A few weeks ago a fight among Indians themselves took place in the copper of Huanuni. The tragic case Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 25 25 6/11/2007 14:25:57 Gragoatá Walter D. Mignolo of the past few weeks goes way back to the neoliberal privatization of the mining industry. The neo-liberal strategy was to create an Indian elite of cooperativistas who were the bosses of other waged Indians. That is, Indians exploiting other Indians. The same strategy took place before neo-liberalism, during the Cold War and US projects of modernization and development in South America. Kusch is reporting on one specific case that helps in understanding imperial global designs and their impact on social and personal relations. The case reported by Kusch is not an isolated one. As a matter of fact, Kusch shows the links of a long chain of events going back to the sixteenth century, the massive appropriation of land and the transformation of living to waged labor. Kusch now, in the chapter, goes into one of the stories told in the one of the many narratives of Visitas (Spanish administrative visits to different towns to gather information to be used by the Crown in its managerial designs). The botton line is this. Garci Diez, the Dominican father that reports on the Visit to the region of Lupaca, reports with indignation the fact that women will produce tejidos, fabric, weaving by the request of Mallku (the supreme authority of the region) and not receiving, to his eyes, anything more than some food and other small recognition. Garci Diez believes that the women should receive a salary for their work and that is what the Spaniards will give them, instead of just food and other small recognitions in species. But, alas, the women refused to deal with the Spaniards, they are not interested in the salary, and will only do the work for and when Malku asks them to do so. Obviously, what Garci Diez reports is what he sees according to the logic of an emerging capitalist economy. He wasn´t able to see that the other logic, the sistema de prestaciones, that is, of communal reciprocity that govern an economy of which he was only able to see the object, the fabric; the workers and the time employed to produce the object; and finally the receiver of the object, the Mallku, who was not properly rewarding the time employed to produce the object. The Mallku, in Garci Diez’s eyes was exploiting the women while he was trying to extract them from that inhuman system by offering them a salary for their work, so they will not be exploited. And yet, the women apparently preferred to be exploited by the Mallku rather than to be exploited by the Spaniards. Seriously speaking, they opted for a qualitative economy of communal reciprocity instead of a quantitative economy in which the product of labor is compensated by a salary; an economy in which the focus is on the object and the time of labor and not an economic system that functions according to other logic, that produces different subjectivities, and that focuses on the well being of the community instead of private and personal accumulation. What happened in Huanuni is that Garci Diez view beca26 Gragoata 22.indb 26 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:57 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics me naturalized and those particular Indigenous communities, cooperativistas and waged Indians, were both caught into Garci Diez’s logic. And the resident of the small city of Toledo, who told Kusch that Indians who refused the co-operativista system were illiterate, was also already caught into the single logic of capitalist economy. However, the fact that Indians and Indigenous communities were converted to the capitalist system doesn’t mean that every single Indian in the Americas has been converted. And the other way around: the fact that Indians, in the government of Evo Morales, and those supporting him, as well as in Ecuador and the U.S., maintain a social organization based on communal reciprocity and qualitative economy, doesn’t mean that every one who is or considers himself Indian, like the resident of Toledo, has to accept communal reciprocity as a way of living. We have to uncouple socio-economic organization from the essentialist qualities of the agents: a capitalist economy can be endorsed and embraced by Indians or Afros, by peasant or by waged industrial workers. Conversely, a communal reciprocity economy could be endorsed by Creole and Mestizo Bolivians and by white US or French members of the middle or high middle class ( I doubt that any higher than that would endorse communal reciprocity economy). But Kusch’s doesn’t stop at the descriptive and interpretive stage of two economic systems that, even if they infected each other through the centuries, there is still “something” that distinguishes them. It would be, for instances, like looking at Islam and Christianity in their mutual interaction throughout the centuries. You could say that it is too binary for your postmodern taste; or too simplistic and dichotomous, for the same post-modern taste. But, you see, we are already talking about two binary systems: capitalist and communal reciprocity economies, on the one hand, and Christianity and Islam on the other. So, dichotomies are not onto-logical but hermeneutical. In any case, this is not the point I want to make — just a preparation to it. Kusch takes the next step by asking a question of surprising actuality, taking into account the situation in Venezuela and Bolivia, and the result of the election in Ecuador, two days ago. Kusch asks: does the indigenous system of prestaciones, reciprocity economy, have any incidence today in South America? What would be the impact of a qualitative economy over a quantitative economy? And he further asks, in 1963, “What is the true meaning of the current revolutionary agitation all over America. Will it be just a case of foreign infiltration?” (pp. 435). He was referring to the rumors that the revolutionary agitation was due to the Soviet and Cuban influence on Latin America, and he knew that that was not the case. However, intellectuals like Nina Pacari and Feliz Patzi Paco are following, from their Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 27 27 6/11/2007 14:25:57 Gragoatá Walter D. Mignolo own Indigenous experience, a path that Kusch dis-covered as a philosopher out of place, by discovering the mestizo consciousness among displaced Europeans in the history of America. So, that is the answer to the question I asked at the beginning of this section: how can a European for whom his or her language is not Aymara and whose skin is not Black and his ancestors from Africa, engage in de-colonial thinking and advance the de-colonial option? Well, Kusch offers a good example. IV More than ideology: the conflation of populism with the left in Latin America. Harvard International Review, Har vard, v. 28, n. 2, p. 14-18, July 2006. 9 28 Gragoata 22.indb 28 The Latin-ethnics (that is, people of European descent in South America and the Caribbean) are caught within the epistemology of modernity. Dependency theory, as stated before, as well as the philosophy and theology of liberation, were strong statements to fracture the homogeneity of a political economy controlled by liberal ideologues and liberal institutions (I am talking about the 60s), that were either too naïve to believe in the development of the so termed underdeveloped (or Third World) or were perfect hypocrites that were selling the ticket of development and modernization knowing perfectly well that it was a legally organized way to continue the pillage of regions around the world, outside of Europe and the U.S., and that were not under the control of the Soviet Union. Now, during the first decade of the 21st century, the roads to the future could be analyzed in four general directions: One is what has been loosely called by some a “turn to the left” (by the extreme right and the enthusiastic left), or as a “return to populism” (by neo-liberal aligned leaders like Fernando Henrique Cardoso).9 In the first camp the names of Luiz Ignacio Lula da Silva in Brazil, Nestor Kirchner in Argentina and Michele Bachelet in Chile, could be loosely described as such, in spite of their differences and in spite of their loose (if any in some case), links with the “left,” in the Marxist meaning of the word. In general “left” means that these governments are not always enthusiastic and following the dictates of Washington as did Carlos Menem in Argentina, Sánchez de Losada in Bolivia and before them Augusto Pinochet in Chile. In this context, “Left” means that neo-liberal and extreme right dictate are not being followed by global designs emanating from Washington D.C. The second is the “re-turn to the right.” The current talk about extending the Puebla-Panama corridor (initiated by Vicente Fox) to Bogota now that Alvaro Uribe has been confirmed for his second term in office: From July onwards, Colombia will form part of the one-sided geopolitical mega-project that seeks to consolidate the neoliberal model in western Latin America with the aim of privatizing highway infrastructure, public services and natural resources. This economic and political strategy is promoted by Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:57 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics Washington via Mexico’s President Vicente Fox and counts on the financial support of the Inter-American Development Bank and the World Bank, while various multinational companies are committed to its implementation. Nonetheless, the impact President Alvaro Uribe’s announcement, that in his second period in office Colombia will join Plan Puebla Panama, will have in the country at every level in the immediate future has gone unnoticed by public opinion, probably through ignorance as to Plan Puebla Panama’s causes and consequences.10 Fernando Orellano Ortiz. Plan Puebla Panamá. Disponible on: < http://www.scoop.co.nz/ stories/HL0607/S00341. htm>. 11 See Fernando Aellano Ortiz, disponible on: <http://www.scoop.co.nz/ stories/HL0607/S00341. htm>. 12 See report on NeoNazis, disponible on: <http://www.scoop.co.nz/ stories/HL0511/S00064. htm>. 13 See Ernesto Laclau (2005). 10 One could guess that if Bogotá joins the corridor PueblaPanama, then the corridor could be extended to Santa Cruz, Bolivia, where it will be well received by the Nación Camba and the Unión Radical Nacional Socialista de Bolivia. The aim of the plan is very clear: to help multinational companies privatize ports and airports, highways, electrical energy, water, gas, oil and, above all, to get unrestricted control of the huge resources of biodiversity of the Lacandona forest (2), and the Chimalapas in Oaxaca (3) in Mexico and of the Mesoamerican Biological Corridor that reaches all the way to Panama. It has a planned cost of US $25 billion and seeks to open up Central America and Colombia to free trade.11 “ Nación Camba” is the name of a right-wing movement that took the name “Camba” from Indigenous and peasant populations. It is known as the Separatist Movement of Bolivia and is made up of rich, white people -the URNSB (Union Radical Nacional Socialista de Bolivia) and is one of the organizations that protect the desires of whites in Bolivia. Both groups, with different degrees of viciousness, use a language of liberation and sovereignty with direct and indirect references to Nazism and the Kux Klux Klan. 12 The third orientation or direction has been traced with distinctive strokes by Hugo Chávez, in Venezuela. For many, Fernando Henrique Cardoso among them, Chávez is a populist; the return to the populism of the Cold War. It will require an extensive and detailed argument to show that this may not be the case. Just as a hypothesis consider the following: There is a significant, radical difference between Juan Domingo Perón and Hugo Chávez. Perón was “a populist” following the recent conceptualization of populism.13 However, being a “populist” is not necessarily all that bad as liberal and right wing intellectuals would like to portray it. For, was a “democratic” president like Alvaro Uribe or George W. Bush preferable to a populist like Perón? Yes and no. Since both options are within the system, that is the political-economic system of modernity/coloniality, neither of the options are clear-cut. But the point here is not to discuss the pros-and-cons of populism. Rather it is to submit (without space for arguments) that Hugo Chávez is not only different from Perón, but quite the opposite. Perón operated on the fetichization of the State to Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 29 29 6/11/2007 14:25:57 Gragoatá See Arturo Escobar (2004). 14 30 Gragoata 22.indb 30 Walter D. Mignolo manipulate a crowd (the populus), to which he offered significant benefits (unionizing, vacations, shortening the length of working hours, health insurance, extra-month of salary every twelve months, etc.). All these compensations were based on clear-cut “social class politics.” That is, based on material benefits, which, of course, were very welcomed by the workers. Hugo Chávez operates on the basis of “identity in politics.” Chávez`s self-description as a mestizo shall not be taken lightly. He is building on the large population of mestizos/as and mulatos/as in Venezuela, which not by chance, happened to be the lower class. Identity politics operates on the assumption of essential identities among marginalized communities (for racial, gender and sexual reasons) that deserve recognition. In general, identity politics doesn’t engage in politics at the level of the State and remains within the sphere of the civil society. Identity in politics, instead, de-links from the iron cage of “political parties” as have been set up by modern/colonial political theory and Eurocentered at that. “La Revolución Boliviariana”, like MAS (Marcha hacia el Socialismo), are both political projects that de-link from the Eurocentered frame of political theory and political economy and, at the same time, that empower the de-colonization of colonized racial subjectivities. Both projects are of course different, but they also differ from Fidel Castro’s in Cuba. While Castro’s socialist project in Cuba remains within the rules of the game (that is, of changing the content but remaining within the same logic of Western modernity), Chávez brakes away by re-inscribing the struggle for independence carried on by Simón Bolívar. Although for many Bolívar is not the “ideal model”, in the sense that he contributed to the affirmation of a Creole elite of Spanish descent that turned their back on Indians, Afros, Mestizos/as and Mulata/s, it is a history with which Chávez and Venezuela have more in common then that with Vladimir Lenin and the Soviet Revolution. In that sense, the connections that Chávez is looking for with the populus that supports him and with the slogan of “Bolivarian Revolution”, is not based on class-improvements without a common subjectivity to work at (like in the case of Perón). Granted, there is not yet a clear formulation of the project, but there is enough signs to believe that what Chávez is looking for runs parallel to the de-colonial epistemic and political project that had been advanced, in the past 10 years, by a community of scholars, intellectuals and activists.14 While one can see in Chávez’s political and economic management (both in internal politics and international relations) the remains of the fetichization of State power, Evo Morales provides still a different path. The fourth path I am describing here. The history of Bolivia in the past fifteen years, the growing strength of the Indigenous nation (in its diversity or, if you wish, the Indigenous nations), established a distinct mode and model Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:58 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics Enrique Dussel (2006). 16 See Samir Amin (1990); Sayyid Qutb (2001); Ali Shariati (1980). 17 Indigenous intellectual do not enjoy yet of wide circulation, because precisely the coloniality of knowledge, t hat non-i ndigenous intellectuals enjoys. Not being acknowledged by the media or the university, it doesn’t mean that their work and intellectual production is less meaningful in the social fabric. It is less recognized — certainly — by the elite that control the market of intellectual production. My comments here are based on the intellectual and political trajectory of Luis Macas and his leadership in the creation of Amawtay Wasi (Aprender en la sabiduría y el buen vivir; Learning wisdom and the good way of life); on the intellectual and political trajectory of Nina Pacari. Recently she has clearly expressed the epistemic and political historical foundations of Indigenous de-colonial projects in Ecuador (La incidencia de la participación política de los pueblos Indígenas: uno camino irreversible. Paper presented and discussed widely during one day section of the summer school, organized by the Universidad Compluten se de Madrid; The one week workshop was titled: pensamiento descolonial y la emergencia de los indigenas en América Latina. Nina Pacari questioned head on the title of the workshop: “En estos últimos tiempos se habla de la emergencia indigena. De unos seres anclados en los museos para el gusto colonial de muchos, hemos pasado a ser unos actores que les provocamos miedo, incertidumbres o desconfianza.” and in 15 of the political that I will describe as the de-colonial move. The awareness among the leaders and the participants in Indigenous claims is that power cannot be taken (as Enrique Dussel reminds us)15 because power is not in the State but in the people politically organized, it is loud and clear in Bolivia. By that I mean that in Bolivia, like in any place else today in South America and the Caribbean, the possibility that Evo Morales may not end his period as president, will not change at all the political organization and mobilization of the Indigenous population. What counts is not that Evo Morales was elected president (although, of course, important), as the international media celebrated still anchored in the old model of fetichization of power, but the radical shift that is taking place by the inscription of identity in politics. Identity in politics, in Bolivia, has also made clear the rift between different versions of Marxist left and Indigenous de-colonial projects. And that is basically what is at stake in the “levèe éthnique”: de-colonization (a word that is of current use in the Andes) doesn’t mean anymore that the State will be in the hands of the local elite (which ended in “internal colonialism” in South America during the nineteenth century, and in Asia and Africa after WWII). De-colonization, or rather decoloniality, means at once: a) unveiling the logic of coloniality and the reproduction of the colonial matrix of power (which of course, means a capitalist economy); and b) de-linking from the totalitarian effects of Western categories of thoughts and subjectivity (e.g., the successful and progressive subject and blind prisoner of consumerism). By de-linking as de-coloniality I start and departs from Samir Amin’s introduction of the term within a Marxist vision of a polycentric world. However, the attention and homage that Amin paid to the work and vision of Sayyid Qutb is a signpost that alerts us to the divergent and sovereign projects of Marxism and Islamism, as Iranian philosopher Ali Shariati had clearly articulated it before the Iranian Revolution.16 But Marxism cannot de-link in the sense of de-coloniality because either will no longer be Marxism or it will be a new imperial project that absorbs, swallows, silences and represses categories of thoughts articulated in languages and cosmologies that are not Greek and Latin, translated into the six European and imperial languages of Western modernity (Italian, Spanish, Portuguese, German, English and French). There is today a strong Indigenous intellectual community that among many other aspects of life and politics has something very clear: their epistemic rights and not just their right to make economic, political and cultural claims.17 La “levée éthnique” is, in the last analysis “a de-colonial epistemic break” that cannot be subsumed under Michel Foucault’s narrative (Les mots et les choses, 1966) and even less under the “paradigmatic changes” of Thomas Khun (The Structure of Scientific Revolutions, 1970). The de- Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 31 31 6/11/2007 14:25:58 Gragoatá Continuação nota 17: Patzi-Paco (aymara sociologist and current Ministro de Cultura y Educación) and his proposal Sistema Comunal: una propuesta alternative al sistema liberal. La Paz: CEA, 2004. To this core of Andean indigenous intellectuals, we could add the influential work Decolonizing methodologies: research and indigenous people by Linda Tuhiwai Smith. She is Associate Professor of Maori Education and Director of the International Research Institute for Maori and Indigenous Studies at the University of Auckland, New Zealand. Also, the well know work in the U.S. of Vine Deloria, Jr., Devon Abbot Mihesuah and Carvender Wilson. As for the contribution of Afro-Caribbean see Padget Henry. Caliban’s reason: introducing caribbean philosoph. London: Routledge, 2003 and Catherine Walsh and Juan García for the contribution of AfroAndean intellectuals and activists. 32 Gragoata 22.indb 32 Walter D. Mignolo colonial epistemic break is literally, something else. True, there is not much written and documented for the social scientist of the First World to “study.” Epistemic fractures are taking place around the world and not among the Indigenous communities in the Americas, Australia or New Zealand; it is happening also among Afro-Andean and Afro-Caribbean activists and intellectuals. And it is most certainly also taking place, although shaped by different local histories, among progressive Islamic intellectuals and activists. And as far as that epistemic break is concerned, the consequence is the retreat of “nationalism”, that is, the ideology of the bourgeois State that managed to identify the State with one ethnicity and, therefore, able to succeed in the fetichization of power: if the State is identified with one nation, then there is no difference between the power of the people and the power in the hands of the people of the same nation in the hands of those who represent the State. Furthermore, the people and the State that the people and its representatives created all operated under the same cosmology: Western political theory from Plato and Aristotles to Machiavelli, Hobbes and Locke. But things began to change when Indigenous people around the world claimed their own cosmology in the organization of the economic and the social, of education and subjectivity; when Afro-descendents in South America and the Caribbean followed a similar path; when Islamic and Arabic intellectuals broke away from the magic bubble of Western religion, politics and ethics. This is, in a nutshell, “la versant de-colonial” (or the decolonial option) that is taking place at the global scale for the simple reason that the logic of coloniality (that is, capitalism, State formation, Uni-versity education, media and information as commodity, etc.) has been and continues to be “flattening the world” (according to the enthusiastic expression coined by Thomas Friedman, 2006). The radical shift introduced by “la versant de-colonial” moves away, de-links from Western civilization’s expendability of human lives and civilization of death (massive slave trade, famines, wars, genocides and elimination of the difference at all cost, as we have been witnessing in Iraq and Lebanon), toward a civilization that encourages and celebrates the reproduction of life (not of course, in terms of having or not having rights to abortion, which I do not have time to analyze here), but the celebration of life on the planet, including human organisms that have been “detached” from nature in the cosmology of European modernity; cf Francis Bacon, Novum Organum, 1605). Inter-culturality shall be understood in the context of decolonial thinking and projects. Contrary to multi-culturalism, that was an invention of the national-State in the US to concede “culture” while maintaining “epistemology”, inter-culturality Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:58 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics in the Andes is a concept introduced by Indigenous intellectuals to claim epistemic rights. Inter-culture, indeed, means inter-epistemology, a tense dialogue that is the dialogue of the future between non-Western (Aymara, Afros, Arabo-Islamic, Hindi, Bambara, etc) and Western (Greek, Latin, Italian, Spanish, French, German, English, Portuguese) cosmology. Here you find precisely the reason why Western cosmology is uni-versal (in its difference) and imperial while de-colonial thinking and epistemologies had to be pluri-versal: what non-Western languages and cosmologies had in common is to have been forced to deal with Western cosmology (once again, Greek, Latin and modern imperial European languages and epistemology). IV. Let me advance a blue-print of the de-colonial processes and epistemic disobedience and suggest the horizons these acts of epistemic disobedience are opening up toward a future beyond capital accumulation and military enforcements; beyond post-modern and post-structuralist recasting of Eurocentered cosmology of modernity. Notice that in my view modernity is not a historical period of which we cannot escape, but the narrative (e.g., the cosmology) of a historical period written by those who felt they were their protagonist. “Modernity” was the term in which they cast the heroic and triumphant view of the history they were making. And that history was the history of imperial capitalism (there were other empires which were not capitalist) and modernity/coloniality (which is the cosmology of the modern, imperial and capitalist empires from Spain to England and the U.S.). Aymara sociologist and current Minister of Culture and Education in Bolivia, Félix Patzi Paco, advanced before his appointment by President Evo Morales, the outline of a “communal system” in counter-distinction with the dominant “(neo) liberal system.” I am offering here a modified version of his proposal. Patzi starts from the assumption that socio-economic systems with a certain degree of complexity are formed by a nucleus and a context; or a center and a periphery, if you wish. The nucleus or center consisted of various types of managements, economic and political. That is, management of resources and labor, on the one hand, and management of social distribution of resources and labor. In the current (neo) liberal system, management of resources and labor and management of social distribution, we know, is geared toward accumulation of wealth, individual (quantitative minority) appropriation of natural resources and exploitation of labor. The nucleus is constituted, for him, by the economic and political management. My modification here is to include management of education in the nucleus, since education is basic for both the formation of subjectivity and the formation Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 33 33 6/11/2007 14:25:58 Gragoatá Walter D. Mignolo and management of economic and political organization of society. Patzi Paco’s proposal should be understood in diachronic as well as synchronic dimensions. The economic and political systems implanted by European imperial/colonial expansions (Spanish, Portuguese, French, British, Dutch) fractured and mutilated exiting economic and political systems in the continent and in the Caribbean Islands. However, indigenous systems co-existed, marginalized and fractured, with the imperial cores. Although Patzi Paco is basically thinking from the experience of Aymara Ayllus, it is possible to include Palenques and Kilombos formed by runaway enslaved Africans, as still another co-existing economic and political system. Education (in the family, schooling and advanced training), economy and politics are different aspects of communal organization, called ayllu in Aymara, oikos in Greek and state in modern European vernacular and imperial languages. Thus, the analytic and the projection toward the future follow a dialogic or pluri-logic movement. In the first place, and historically, the communal system of Andean economy was displaced and fractured, by the installation of an emerging system, mercantile and colonial capitalism, consisting on the appropriation of land and the massive exploitation of labor (Indigenous and Afro-enslaved). The ayllu survived, however, and entered in a double historical register. Quichua lawyer, politician and activist, Nina Pacari, puts it in this way: nuestros mayors salvaguardaron y fortalecieron nuestras identidades e instituciones por dos vías simultáneas: 1) la interna, radicada en la Fortaleza de los usos y costumbres, en la recreación de los mitos y los ritos, en la reconstitución de los pueblos y territorios, así como en la reconstrucción de la memoria ancestral y colectiva para proyectarse en un futuro con inclusion social que no es otra cosa que el posicionamiento del principio de la diversidad; 2) la externa, que permitió utilizar los mecanismos como los “alzamientos”, “levantamientos indígenas” o “revueltas” en contra del abuso y del despojo promovido por la estructura del poder imperante (PACARI, 2006). Pacari mentions two simultaneous ways in which the history of Indigenous nations had survived in co-existence and power differentials for five hundred years. The internal and the external, of which, only the external is more or less known by anybody who is not Indian him or herself. The reason is simple: the internal way is supposed to have ceased to exist since the arrival of Christians and monarchic people and institutions, in the sixteenth century, and by its transformation in the nineteenth century, when internal colonialism in the hands of the Creole elite of European descent displaced the imperial elite from 34 Gragoata 22.indb 34 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:59 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics Spain and Portugal. In different shapes and shades, England and France took over the leading role left by Spain and Portugal and worked closely with the managerial Creole elite ruling the new “independent” countries. The internal way in the life and survival of Indian Nations became invisible because Indians were supposed to have lost their souls and become Indians with a European-type of spirit. And since histories and descriptions of Indian Nations were written by people of European descent, the internal way constantly escaped them. Indians in other ways were not supposed to have a soul and that was the reason for Christianizing, civilizing and more recently developing them. Patzi Paco offers one of the first written descriptions and arguments that explain the persistence of a communal system that has always been there, but invisible, and that is coming up in full force in Bolivia and Ecuador. The visible part was always there; uprisings were always registered by the ruling elite because they create a problem for them; but official discourse described it as the Indian problem. Nina Pacari, in the previous quotation, offers a synopsis of the historical survival and struggle of Indian Nations, a historical synopsis in which Indian political theory, economy and epistemology are of the essence. Gone are the days in which the beliefs that Indians have cultures and White or Mestizo/as have theories were prevalent and looked like the only game in town. Today, and for the foreseeable future, the struggle is for epistemic rights, the struggle for the principles upon which economy, politics and education will be organized, ruled, enacted. The communal system described by Patzi Paco is a way toward the future, and not for Indigenous people only, but as a blue-print for a global organization, for a world in which many worlds will co-exist, and shall not be ruled out in the name of simplicity and the reproduction of binary opposition. The communal system offers an alternative to both liberal and socialistcommunist systems since these last two are both Western (that is, conceived from the experience of imperial expansion and capital accumulation, and the corresponding political theory and political economy, be it their liberal or Marxist-communist versions). The communal system described by Patzi is instead based on the historical experience of the ayllu, coexisting with Western imperial/colonial institutions since the moment in which the Spaniards invaded the Andes. Similar observations could be made about the altepetl in the Anahuac region. To make a long story short, let’s stress that a communal economic management is not a matter of an all-powerful State (like the communist system) or the invisible hand (like in the liberal free trade economy). Land, cannot be owned, but only used by the community. In the same vein, factories and technologies to facilitate communal-social life, cannot be possessed by one or a Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 35 35 6/11/2007 14:25:59 Gragoatá Walter D. Mignolo few individuals who will exploit other individuals for their own personal benefit and accumulation of wealth. In the communal system, power is not located in the State or in the Individual (or corporate) Proprietor but in the community. When the Zapatistas say “to rule and to obey at the same time” they are enouncing a basic principle of political and economic communal management (PATZI PACO, 2004, p. 172-191). Nina Pacari describes communal political and economic management succinctly. The Indian philosophical concept of Power is sustained in a basic number of vital (in the sense of communal life) elements: a) YACHAY, which means wisdom, the know-how and know-that that allows Indigenous Nations to maintain-intransformation the internal way (that is, in the same way that the West operates maintaining-in-transformation its way of life, forms of knowledge and economic and political management); b) RICSINA, means knowledge, and refers to knowledge of the complex geography of human beings in order to help harmonious co-existence, that is, conviviality (and, I shall say, no Derrida is needed here--for conviviality is not a private property of French intellectuals but a common sense of human existence); c) USHAI, means management or planning and refers to the know-how presupposed in every consistent execution in the management of politics, economy and education; that is, in socio-communal organization; d) PACTA-PACTA, means the exercise of “democracy” not in the bourgeois sense of the word or in its socialist meaning, but in the sense of conviviality, equal to equal relationship, with collective participation and social management as it is inscribed in the memories and experiences of the ayllu (or the altepetl in the case of Mexico) and not in the memories and experiences of the oykos; e) MUSKUI, which could be translated as the ideal horizon of the future, that is, utopia; a necessary concept to be active in the process of social transformation instead of waiting for the liberal economy or the communist State to find a solution for the Indian Nations! I understand the communal system and the Indian philosophical concept of Power as an alternative TO (neo) liberal and Marxists or neo-Marxists models of society. It could, with proper time and space, be considered in relation to Islamic and Chinese, for example, concept of power, of political and economic management and of education (both in the sense of subject formation and individuals trained to fulfill particular roles in the management of politics, education and economy). Although there is no time to go in this direction, it is important to keep in mind that 36 Gragoata 22.indb 36 Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:59 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics This is not the place to go into an analysis of the category “woman” as an invention of Western gender system, based on opposition and power differential, that mutilated and marginalized the complementarit y masculine-feminine in societies and knowledge system that were alien to Christianity and its Greek foundations (see M a r í a Lugon e s a nd Oyewumi, Oyeronke (1997) 19 See also interview of Nina Pacari, by Luis Gomez, dispoble on: <ht t p://w w w.n a rco news.com/Issue26/article543.html>. 20 Universidad Intercultural Amawtay Wasi, disponible on: <http:// i c c i . n at i ve we b.o r g/ bolet i n/65/editor ial. html>. 18 neither Patzi Paco nor Pacari or myself, are thinking in binary terms. It could be that a Western trained reader may see binary opposition for lack of experience in “seeing” the internal ways of many nations and religious communities around the world. A second caveat is also that a modern or postmodern sensible reader could think that the communal system is a totalitarian dream that is intended to re-place the dominant neo-liberal model and the utopian dominant alternative, the communist-socialist system. If that were the case, the communal system will not be a de-colonial proposal, but another modern proposal disguised under de-colonial thinking. De-colonial thinking rejects, from the very beginning, any possibility of new abstract uni-versals that will replace existing ones (liberals and its neos, Marxist and its neos, Christians and its neos or Islamic and its neos). The era of abstract uni-versal is over. The future that will prevent the self-extermination of life on the planet shall be pluri-versality as a uni-versal project. And to that MUSKUI is that the very conception of the communal system and the Indian philosophy of power is pointing. Nina Pacari offers a blue-print to think and act in that direction, that is, a blue-print of de-colonial thinking. Recognizing the actual moment of affirmation of Indian identities, that is, the consolidation of the internal way, she mentions four general principles upon which political empowerment is being enacted and moving forward: a) Proportionality-Solidarity, is the principle that guides the political (e.g., political thinking) toward the benefit of those who have less. The political impinges here in the oyko-nomy (or, to invent a neologism, on ayllu-nomy), that is, in a political economy that administrates scarcity rather than celebrating accumulation; b) Complementarity, refers to production and distribution that contemplate the well- being of the community and not the accumulation and well- being of an elite. It means, in other words, conviviality in the harmonious complementarity of opposing elements. For instance, Sun and Moon (masculine and feminine) are not opposed by power relations, but two halves of a unit; a unit without which the generation of life is not possible;18 c) Reciprocity, it is expressed in the institution called “minga”, which means cooperative work for improvement.19 To give and to receive, the principle of reciprocity is the both rights and obligations of every one; d) Correspondence, simply means the sharing of responsibilities (Pacari, 2006, p. 9-10); Management of the economic and political spheres, as summarized above, goes hand in hand with the management of education Amawtay Wasi.20 Under the leadership of Luis Macas, Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 37 37 6/11/2007 14:25:59 Gragoatá S e e “La proye cc ión mult icult ural del Ecuador, comentarios del Dr. Luis Macas”, disponible on: <http:// w w w. m m r r e e . g o v. ec/mre/documentos/ m i n i s t e r i o/p l a n e x/ comen _ponencias_6. pdf#search=%22luis%20 macas%20amawtay%20 wasi%22>; Catherine Walsh, “Geopolíticas del conocimiento, interculturalidad y descolonización”, disponible on: <http://icci.nativeweb. org/boletin/60/walsh. html>. 22 On the privilege of whiteness see for inst a n ce t he fol low i ng interview, disponible on: <http://www.lipmagazine.org/articles/ featbrasel_145.shtml>. 21 38 Gragoata 22.indb 38 Walter D. Mignolo Amawtay Wasi is a uni-versity that in reality is a pluri-versity organized according to the cosmology and wisdom (epistemology) of the Indigenous people and nations.21 In that regard, it de-links and departs from the Renaissance university and the Kantian-Humboldtian which, directly or indirectly, contributed to the coloniality of knowledge and of being. “Learning to be” is one of the goals of Amawtay Wasi, that is, the de-coloniality of being. The method for such a goal is “learning to unlearn in order to re-learn.” Re-learn what? I offered a highlight through the proposals advanced by Nina Pacari and Patzi Paco. Amaway Wasi complements the management of the economic and political spheres of the communal system, but work on de-colonizing subjectivities (e.g., the affirmation and empowerment of which Nina Pacari refers in her article quoted above). I hope, first, that my argument here was not only a report on de-coloniality, de-colonial projects and de-linking from a neutral and scientific scholarly perspective, but that my own discourse, here, is part of the wide and global de-colonial orientation (versant) in thinking and acting. And, secondly, I hope also to have made clear that the de-colonial option demands to be epistemically disobedient. In that respect, identity in politics and that identity in politics is not a question of affirmative action and multiculturalism in the U.S.—that, affirmative action and multiculturalism is identity politics which has its good and bad sides. The good side is that it contributes to make visible the identity politics hidden under the privileges of Whiteness and the bad side is that it can lead to fundamentalist and essentialist arguments.22 In South America and the Caribbean, we know, the privileges of Whiteness are grounded in the histories and memories of people of European descent that carried with them the weight of certain ways of managing politics, economy and education. That privilege, if it is not over, is being unveiled. The road to the future is and will continue to be, the epistemic line, that is, de-colonial thinking as the option offered by communities that have been deprived of their “souls” that is of their way of thinking and of knowing. What we are witnessing in the Andes today is no longer a “turn to the left” within the Eurocentered ways of knowing, but a de-linking and the opening to de-colonial options. That is, we are witnessing an act of epistemic disobedience that touches on the state and the economy. This is nothing less that the challenge the government of Evo Morales is putting in front of us. Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:25:59 Epistemic disobedience: the de-colonial option and the meaning of identity in politics Abstract Two interrelated theses sustain the argument. First, identity IN politics (rather than identity politics) is a necessary course of thought and action in view of the iron cage of modern (e.g., European from Machiavelli on) political theory. Insofar as modern political theory is—knowingly or not—racist and patriarchal by denying political agency to people classified as inferior (in terms of race, gender, sexuality, etc.), and insofar as they have been denied epistemic agency for the same reason (the second thesis), all de-colonial political moves (non-racist and non-heterosexually patriarchal) must engage in epistemic and political disobedience. “Civil disobedience,” as predicated by Mahatma Ghandi and Martin Luther King, Jr. were great moves indeed. But, civil without epistemic disobedience will remain caught in games ruled by Eurocentric political economy and political theory. Both theses are pillars of the de-colonial option. Thus, the de-colonial option allows us to think in terms of the variegated spectrum of the Marxist left and — on the other hand — of the variegated spectrum of the de-colonial left. Keywords: de-colonial option; epistemic disobedience; political disobedience References AMIN, Samir Delinking: Towards a Polycentric World. Translated from French by Michael Wolfers, New York: Zed Books; 1990; BERGSON, Henri. Creative Evolution, translated by Arthur Mitchell, Ph.D. New York: Henry Holt and Company, 1911. CUGOANO, Quobna Ottobah. [1786] Thougts and Sentiments of the Evil of Slavery. Edited with an introduction and nots by Vicent Carreta. London: Penguin Books, 1999. DUSSEL,Enrique. 20 Tesis de Politica, Mexico: Siglo VXI, 2006 Introduction and notes by Vicent Carreta. London: Penguin Books, 1999. Niterói, n. 22, p. 11-41, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 39 39 6/11/2007 14:26:00 Gragoatá Walter D. Mignolo ESCOBAR, Arturo. Beyond the Third World. Third World Quarterly, London, v. 25, n. 1, p. 207-230, Feb. 2004. Disponível em: <http://www.nd.edu/~druccio/Escobar.pdf#search=%22escobar%20 worlds%20and%20knowledges%20otherwise%22>. FANON, Frantz . Les damnés de la terre. 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Reconstruir seu arquivo não significa procurar sua origem mas escolher, identificar e analisar aqueles momentos preteridos pela autonomia modernista. O efeito barroco, o assim chamado néo-barroco latino-americano dos anos 70, vincula-se diretamente com uma sorte de momento pré-póstero dessa história. Palavras chave: arquivo; autonomia; neo- barroco; diáspora Neste artigo, excepcionalmente, as notas de texto, por serem extensas, aparecem no final. * Gragoatá Gragoata 22.indb 43 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:00 Gragoatá Raúl Antelo Arquivo e memória Uma reflexão sobre arquivo e memória nos obriga a repensar, mais uma vez, a política do tempo e as alianças anacrônicas da crítica cultural1. Tive a ocasião de desenvolver, em um seminário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em dezembro de 2005, a hipótese de que, no tocante à arqueologia, um dos fantasmas que ameaçam a tarefa de leitura é a ilusão tautológica. Ela consiste em julgar, simplesmente, que o texto conservado no arquivo diz o que diz e que nele vemos o que se vê. A ilusão tautológica é uma ilusão de sincronia. Ela poderia ser resumida com a fórmula de Didi-Huberman: o que vemos não nos olha, o que lemos, não nos lê. Nada mais ilusório, portanto, do que a constatação meramente referencial, porque um texto achado num arquivo sempre postula um para além da significação e um maior ou menor anacronismo, de tal forma que sua leitura propõe uma relação indiciária de contigüidade e causalidade entre o signo e seu objeto, isto é, uma relação, simultaneamente, das mais diretas, mas, também, das mais diferidas possíveis, entre essas duas instâncias. Todo enunciado lido no arquivo é, literalmente, uma transposição, uma tradução, o vestígio de um corpo ausente que tocou essa matéria (uma página, a tela). Sua compreensão inscreve-se, portanto, na lógica da literatura mas também fora dela, na da fotografia. Com efeito, a extremamente complexa técnica de leitura de um texto arquivado implica, ao mesmo tempo, a presença de uma tela que sirva de suporte para a inscrição (o documento, o recorte de jornal), assim como a projeção (que poderíamos assimilar ao punctum, pelo deslocamento anamnésico), uma projeção originada (a memória como técnica mas também como matéria e, ainda, como foco de uma operação de atribuição de sentido), projeção essa de uma matéria (a linguagem), que, simultaneamente, inscreve, fixa e oblitera um sentido. O resultado parece ser, então, uma sombra conduzida, uma fantasmagoria em negativo, um volume oco, esvaziado, uma materialidade não construída, mas obtida por subtração, por preservação de um espaço virgem, que corresponde a uma zona muito indeterminada, até então recoberta, de maneira asfixiante, pela onipresença do referente. Essa definição da arte, ou da leitura do documento no arquivo, que o avalia como traço, como transposição, ou como vestígio de algo desaparecido que esteve ali é, em suma, uma forma de apoiar o sentido em um Eterno Retorno da verdade, gesto que tem uma clara conotação dissidente com relação ao presente e à própria presença do sentido materializado nas coisas. O fundamento do sentido não passa, portanto, de non-sense. Essa análise nos leva à segunda ilusão implicada no arquivo: a ilusão na crença. Ela consiste em encontrar modos de contornar a angústia que provoca o vazio de significação, ultra44 Gragoata 22.indb 44 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:00 O arquivo e o presente passar a questão, colocar-se para além da cisão aberta por aquilo que, enquanto o lemos, devassa-nos. Chamamos esta ilusão de ilusão na crença porque, tal como a outra, ela é uma manifestação de horror vacui, porém, ali onde a primeira satura o sentido com referencialidade significante, esta segunda postula a transcendência como um para além da verificação documental. Admitindo, portanto, que, em toda operação de leitura, nos arquivos e acervos de escritores, há metamorfose e há transformação, somos levados a concluir que essa transformação deriva do próprio material que ali se acumula. No caso da pintura, ela deriva dos pigmentos (isto é, da terra) que, transfigurada, se aplica à tela, às madeiras ou aos papéis, para figurar o objeto perdido. No caso da literatura, ela provém da linguagem, sua disseminação como poeira da vida, com a qual se armam as ficções axiológicas do presente. Ora, assim raciocinando, a modernidade dos arquivos não estaria pois na memória (na matéria) por eles acumulada mas residiria, entretanto, nesse esquecimento do sentido simbólico dos materiais, trate-se dos pigmentos ou da linguagem, através dos quais conseguimos, finalmente, ter acesso à decadência e à diferença. A partir de um conceito de Reinaldo Marques, propus, então, naquela ocasião, denominar o trabalho de leitura dos documentos de um arquivo como uma operação an-arquivista. E, a partir dessa definição, foi possível compreender, mais claramente, o paradoxo apontado por Jean Clair, em seu diagnóstico de arquivos e museus. Esses espaços, longe de serem repositórios de humanismo, representam o que, na cultura ocidental, há de mais inumano, o que ela não cessa de esquecer: a singularidade2. O arquivista ou o curador, geralmente funcionários do clero secular com que o Estado celebra o culto de sua própria imagem, de tudo entendem, porque nada discriminam, de modo tal que tudo, absolutamente tudo, vai parar no arquivo. Tudo aquilo que em vida pertencera ao escritor arquivado, torna-se assim sua mais-vida. A memória do arquivo não passa, pois, de ser a mais-vida da linguagem, seu gozo. Por isso, por tudo acolherem, esses funcionários ressalvam a lei patrimonial pública, mas é a partir dos seus paradoxos (e não de suas coerências, meramente imaginárias) que a economia do arquivo se constitui e deve ser analisada. O barroco e as escrituras do presente Isto posto, caberia resumir, ainda que muito brevemente, a proposta de pesquisa em que me encontro trabalhando no momento. Ela parte, a rigor, de um estado do debate sobre a ficção contemporânea na América Latina. Com efeito, tenho verificado, em vários colegas, a tentativa de dar conta de uma estética do presente — e da presença — em termos bastante diferentes daqueles que nos eram familiares nos anos 80. Em artigo recente, Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 45 45 6/11/2007 14:26:01 Gragoatá Raúl Antelo “Sujetos y tecnologia. La novela después de la historia”, Beatriz Sarlo argumentava, por exemplo, que, se a história iminente, obliterada pelos arquivos, era a obsessão crítica dos anos oitenta, o presente é, tautologicamente, o tempo da literatura que se está escrevendo precisamente hoje. Porém, esse presente não é mais um enigma modernista mas um cenário a ser representado: “si la novela de los 80 fue interpretativa, una línea visible de la novela actual es etnográfica” (SARLO, 2006, p. 2)3. Embora Sarlo tente não absolutizar os dois extremos e irrite-se só de pensar em listas de duas colunas, com textos interpretativos ou etnográficos enfrentados entre si, ela também considera que as interpretações do passado já não são mais relevantes para a nova escritura, por apostarem a um todo, a um conjunto comunitário e que, pelo contrário, na atual posição etnográfica, prevalece a singularidade ou a particularidade absoluta. O exemplo, como é óbvio, são alguns textos de César Aira, figura até então, sintomaticamente, ausente em sua reflexão. São textos em que a imaginação etnográfica opera uma reconstrução mais conjuntural do presente, embora, a bem da verdade, assim raciocinando, Sarlo leve água ao moinho Aira = dândi = moderno, tese que, em poucas palavras, contesta o valor contingente do presente para hipostasiar a eterna presença do moderno. Seja como for, essa estética do abandono opõe-se à clássica narrativa moderna, em suas duas principais variantes, tanto “la cerrada, que implica una representación de totalidad y un mundo social de personajes”, quanto “la abierta, que debilita la trama como señal de la dilución de las historias y de los caracteres” e em que “el personaje se convierte en una fluctuante duración de notas subjetivas y verbales”. E define, então: El abandono de la trama, en cambio, refuta la pericia formal, una vez que se ha mostrado que puede ejercérsela; y también refuta el verosímil sostenido por cualquier paradigma de historia. La trama, simplemente, describe una elipsis que la aleja cada vez más de los desenlaces posibles al principio, y cae, invalidando la idea misma de un desenlace acordado con el comienzo de la ficción. Al caer, la trama señala la ilusión de cualquier verosimilitud que podría haberse construido en el comienzo; desautoriza, de atrás hacia delante, lo que se ha venido leyendo. Como si se dijera: donde todo puede pasar, se pone en duda lo que pasó antes de que la trama cayera. La novela muestra una especie de cansancio del narrador con su propia trama, que es un cansancio (contemporáneo) de la ficción. Aun en sus obras más “etnográficas”, Puig no abandonó la trama, porque ella era una dimensión central de lo que prometía a sus lectores, pero también de la forma en que se planteaba para sí mismo la novela. Disuelta por abandono, la trama fuerza a la ficción dentro de una lógica donde todo puede ser posible, que se distancia de una historia “interpretable” y cuestiona la idea de que exista un orden de los “hechos” de la ficción, así como la de un personaje que se mantenga de principio a 46 Gragoata 22.indb 46 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:01 O arquivo e o presente fin, cambiando sólo dentro de las posibilidades que quedan marcadas en el comienzo (como sucede con los personajes modernos). Probablemente no haya una impugnación más severa de la ilusión representativa que el abandono de la trama en el desenlace (SARLO, 2006, p.3-4). Trata-se, a seu ver, de relatos que giram em torno de algumas idéias antecipadas pelo alto modernismo. Em primeiro lugar, a de que a originalidade não é, a rigor, um valor. A seguir, a noção de que a subjetividade não é mesmo expressão, ela é, fundamentalmente, construção e, por último, a de que, nesses relatos, o narrador, consciente de que o real nunca é suficientemente real, nem no plano da ação nem mesmo no fluxo da história, chega, enfim, à conclusão de que a arte também não se sente suficientemente artística no plano da dicção e, assim, essa literatura do presente acaba por revelar uma incontida paixão do real4, (BADIOU, 2005, p. 75-76) através de um desdobramento, sem fundador nem origem, que, legitimamente, pretende aspirar à condição de catástrofe discursiva, sem dentro, nem fora, colocando-se como um estranho a ambas as esferas, simultaneamente. É, portanto, a partir do vazio, em que o presente pode ser, precariamente, figurado, que poderíamos falar dessa estética como uma estética do vazio. Nela a obra de arte já não é a portadora ou produtora de uma verdade enigmática mas a organização significante de uma alteridade radical extra- ou hiper-significante (RECALCATI, 2006, p.12). Trata-se de uma estética em que o modelo teórico também não é mais aplicado à arte, como, ingenuamente, ouvíamos nos anos 60, mas uma estética em que a teoria está implicada na arte e dela, justamente, a derivamos. De maneira menos melancólica do que Sarlo, Josefina Ludmer também nos propôs, recentemente, um outro modo de pensar essas escrituras do presente. Ludmer prefere vê-las como “literaturas pós-autonômicas”. A seu ver, tais escrituras no admiten lecturas literarias; esto quiere decir que no se sabe o no importa si son buenas o malas, o si son o no son literatura. Y tampoco se sabe o no importa si son realidad o ficción. Se instalan en un régimen de significación ambivalente y ese es precisamente su sentido.(...) Muchas escrituras del presente atraviesan la frontera de la literatura y quedan afuera y adentro, como en posición diaspórica: afuera pero atrapadas en su interior. Como si estuvieran ‘en éxodo’. Siguen apareciendo como literatura y tienen el formato libro (...) conservan el nombre del autor (......) y se incluyen en algún género literario como ‘novela’, por ejemplo. Siguen apareciendo de ese modo pero se sitúan en la era del fin de la autonomía del arte y por lo tanto no se dejan leer estéticamente. Aparecen como literatura pero no se las puede leer con criterios o con categorías literarias (específicas de la literatura) como autor, obra, estilo, escritura, texto, y sentido. Y por lo tanto es imposible darles un ‘valor literario’: ya no habría para esas escrituras buena o Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 47 47 6/11/2007 14:26:01 Gragoatá Raúl Antelo mala literatura. Estas escrituras aplican a ‘la literatura’ una drástica operación de vaciamiento: el sentido queda sin densidad, sin paradoja, sin indecidibilidad, y es ocupado totalmente por la ambivalencia: son y no son literatura al mismo tiempo, son buenas y malas, son ficción y realidad. Quedaría el ejercicio del puro poder de juzgar [o decidir] qué son, o también suspender el juicio, o dejar operar la ambivalencia (...). Estas escrituras, entonces, pedirían, y a la vez suspenderían, el poder de juzgarlas como ‘literatura’. Podríamos llamarlas escrituras o literaturas postautónomas; son constituyentes de presente (LUDMER, 2006) Para Ludmer, essas escrituras abandonam a literatura e penetram na realidade tomando a forma de escrituras do real, de tal forma, diríamos, que ativam aqueles mesmos mecanismos apontados acima em relação ao arquivo. Poderíamos também pensar a questão da seguinte forma: enquanto houve autonomia literária, o modelo da acumulação foi bibliotecário (organizado, hierárquico). Sob a pós-autonomia, porém, a acumulação obedece à lógica do arquivo e o conjunto é, fatalmente, arbitrário e anárquico. Ahora, en las literaturas posautónomas [‘ante’ la imagen como ley] todo es “realidad” y esa es una de sus políticas. Pero no la realidad referencial y verosímil del pensamiento realista y de su historia desarrollista [la realidad separada de la ficción], sino la realidadficción producida y construida por los medios, las tecnologías y las ciencias. Una realidad que es un tejido de palabras e imágenes de diferentes velocidades y densidades, interiores-exteriores al sujeto (que es privadopúblico). Esa realidadficción tiene grados diferentes e incluye el acontecimiento pero también lo virtual, lo potencial, lo mágico y lo fantasmático; es una realidad que no quiere ser representada o a la que corresponde otra categoría de representación (LUDMER, 2006) Nesse sentido, ao perder, voluntariamente, especificidade e atributos literários, ao perder o valor literário, enfim, a literatura pós-autonômica perderia também o antigo poder crítico, a potência emancipatória e até mesmo a revolta subversiva, que a autonomia lhe atribuíra à literatura, como sua política mais própria e específica. Las literaturas postautónomas del presente saldrían de ‘la literatura’, atravesarían la frontera, y entrarían en un medio [en una materia] real-virtual, sin afueras, la imaginación pública: en todo lo que se produce y circula y nos penetra y es social y privado y público y ‘real’. Es decir, entrarían en un tipo de materia donde no hay ‘índice de realidad’ o ‘de ficción’ y que construye presente y realidadficción. Y por lo tanto se regirían por otra episteme. Y lo que contarían en la imaginación pública sería una pura experiencia verbal [de la lengua: la lengua se hace en ellas recurso natural e industria] subjetivapública de la realidadficción del presente en una isla urbana latinoamericana (LUDMER, 2006) 48 Gragoata 22.indb 48 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:01 O arquivo e o presente Em função de diagnósticos como esses, para os quais toda linguagem opera, afinal, como um arquivo, cujo sentido, em última análise, deriva da própria ausência de sentido, uma das vertentes que me parece colaborar na formulação de uma memória do modernismo latino-americano5 consiste na revisitação do arquivo para dele extrair linguagens até agora obliteradas. É, dentre outros, a alternativa de Roberto González Echevarria (2000). A minha hipótese, bem mais modesta, é relativamente simples. A hegemonia da literatura autonomizada, através do formalismo e do funcionalismo, consolidados depois de 1930, ocultou de nossa apreciação as experiências de fusão barroca, néo-colonial ou primitivo-vanguardistas, já muito sólidas nos anos 20, porém expulsas, daí em diante, do campo artístico, como sinônimas do feio, kitsch, abjeto, não-emancipatório... Só bem recentemente, com a dissolução da autonomia, é que tería mos podido compreender a singularidade de muitas dessas experiências, ora chamadas de néo-barrocas, mas que, no entanto, sempre estiveram aí. Nós é que não tínhamos categorias para analisá-las e conseqüentemente, avaliá-las. A imagem como resto da autonomia Interessam-me, particularmente, as opções de alguns intelectuais derrotados pela história funcionalista do modernismo, movimento que tortura e reprime essa experiência melancólica (vingativa, restauradora) de comparação entre o pré-moderno e o moderno, experiência essa muito presente entre os pré-pósteros (ou hiper-modernos), e que o modernismo autonomizado exclui, peremptoriamente, da sua agenda. E dentre eles, os arquitetos. Penso, por exemplo, em gente como Martín Noel, o autor de Teoria estética de la arquitectura virreinal (1932). Noel é uma figura decisiva nos desdobramentos da vanguarda no Prata. Sabemos que os artistas agrupados pela revista Martín Fierro praticavam um paradoxal criollismo urbano de vanguardia (Sarlo) que, de fato, esfacela-se pouco antes da reeleição do presidente Yrigoyen e do golpe militar de 1930. Noel empenhou-se, ativamente, em agregar as forças sincréticas e vanguardistas numa nova revista de sintomático título, Síntesis, e nela entregou as resenhas bibliográficas a um jovem yrigoyenista, Borges. Nessas resenhas, o autor de El tamaño de mi esperanza publica quase a mesma quantidade de textos, dezenove ao todo, que, anteriormente o destacaram dentre os colaboradores da Martín Fierro. Porém, os textos de Síntesis têm merecido menor atenção da crítica. São, de fato, textos fusionais ou diaspóricos6. São uma ampla “Indagación de la palabra”, ou notas sobre Cansinos, Pirandello ou Saenz Hayes. Incluem resenhas de Reloj de sal de Alfonso Reyes, do livro de Carlos Octavio Bunge sobre Sarmiento, ou da antologia da nova poesia de Pedro J. Vignale e César Tiempo, sem esquecer dos livros de poetas amigos, como Alberto Hidalgo, González Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 49 49 6/11/2007 14:26:02 Gragoatá Raúl Antelo Lanuza ou Norah Lange, ou ainda jovens poetas uruguaios, igualmente próximos, como Welker ou Alfredo Mario Ferreiro. São textos sobre o Idioma nacional rioplatense de Vicente Rossi ou até mesmo “Séneca en las orillas”, sua abertura à poética formalista-regional, simultaneamente publicada também pela revista Sur, que se complementa, ainda, com o emblemático “La duración del infierno”, em que Borges aborda a contingência do eterno, a política do anacronismo. Outro dos arquitetos que merecem exame é Mario José Buschiazzo, autor da Historia del Arte Hispanoamericano (19451956), editada pela Salvat de Barcelona. Em obras como os Estudios de arquitectura colonial hispanoamericana (1944), De la cabaña al rascacielos (1945), ou na Historia de la Arquitectura colonial en Iberoamérica (1961), Buschiazzo, a partir desse confronto entre o modernismo e o pré-modernismo, reivindica a figura soterológica do artista diaspórico, o Aleijadinho, que, sem ter saído de Minas, conseguiu incorporar influências orientais7. O dado, não menor, também nos alerta para a dimensão supra-nacional dessas abordagens. Mas, provavelmente, a figura mais interessante dos arquitetos néo-coloniais, seja Ángel Guido. Sob o olhar de Martín Noel, e antes dele, de Ricardo Rojas, Guido defendera a Fusión hispano-indígena en la arquitectura colonial (1925), aprofundando, a seguir, algumas de suas premissas metodológicas em Arquitectura hispanoamericana a través de Wölfflin (1927). Em 1931, Guido analisa, de maneira muito pioneira, antes mesmo do que Mário de Andrade, a obra de Aleijadinho, chamando o barroco baiano de tropicalismo, e nele destacando a potência criadora da Euríndia (GUIDO, 1930)8. Para Guido, o Aleijadinho era o símbolo do artista pautado pelo desejo de salvação, que assim se transformava em fundador de uma tradição. Um ano mais tarde, em 1932, o arquiteto Guido desenvolvia um curso sobre Arqueologia y estética de la arquitectura criolla (no mesmo local, aliás, em que o financiador da Escola de Frankfurt, Felix Weil, divulgava as premissas de ocidentalização da economia, e para o mesmo público, seja dito de passagem, que, em 1952, ouviria de Borges a mesma tese antropofágica, a de “El escritor argentino y la tradición universal”). Defendendo a teoria do háptico-óptico de Riegl, aclimatada por Wölfflin, Guido pretendia, tanto quanto os surrealistas, seus contemporâneos, captar uma nova idade de ouro, uma reunião da vanguarda com a história e o mito, “enderezándose hacia la reconquista del hombre auténticamente americano y a la reconquista de la tierra”. Admite, então, que “una de sus más certeras imágenes tutelares” (GUIDO, 1937, p. 504) não era senão o Aleijadinho. Para precipitar essa “dramática cruzada” da arte americana, o arquiteto de Rosario publica, a seguir, em 1940, Redescubrimiento de América en el arte (GUIDO, 1940), ensaio definitivo, a partir do qual, precisamente, Lezama Lima tomaria não só as análises da obra diaspórica do 50 Gragoata 22.indb 50 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:02 O arquivo e o presente Aleijadinho, mas também um conceito chave para sua teoria acerca de La expresión americana: o conceito de contraconquista, que, com os correlatos de reconquista e cruzada, vinha sendo elaborado por Guido desde 1931. (Cabe, ainda, assinalar que as análises contrastivas entre o Aleijadinho e Kondori, antes de serem de Lezama, são também de Guido, nesse Redescubrimiento de 1940, e que a primeira descrição da igreja de San Lorenzo de Potosí foi feita pelo já citado Pedro Juan Vignale, a partir de uma expedição organizada por Martín Noel. Ambos os autores, Noel e Guido, reuniriam esses esforços nos dois grossos volumes de La arquitectura mestiza en las riberas del Titikaca, publicação da Academia Nacional de Bellas Artes, na série Documentos de arte colonial sudamericano, em 1952-1956). Isto posto, de que modo resgatar essa estética, violenta e torturada, no arquivo ficcional latino-americano para além do historicismo? Dou um mínimo exemplo. Em 1956, Beatriz Guido publica e, logo em seguida, roteiriza La casa del ángel, um filme de Leopoldo Torre Nilsson, que, por sinal, já abordara a vingança feminina em Dias de ódio (1954), uma versão de “Emma Zunz”, o conto de Borges. Gonzalo Aguilar afirma que essa é a obra de Nilsson em que a temporalidade está mais cindida entre o presente do relato da protagonista e o passado do flash-back narrativo, “tal vez porque es la más cercana a la caída del peronismo, tal vez porque la modernidad no se anunció todavía en el horizonte”. Nesse sentido, diz o crítico, “el presente es el momento no-narrativo, aprisionado por la repetición y el rito vacío (...); y el pasado es la genealogía de ese presente inmóvil. Mientras lo pre-moderno se desarrolla con dramaticidad y cierta progresión narrativa, el presente se encuentra estancado en la repetición”. Uma das questões técnicas mais relevantes no filme, no entanto, é o abandono, no plano musical, da síncrese, em benefício do que poderíamos chamar de anácrise ou anacruse, graças à partitura de Juan Carlos Paz, divulgador das idéias de John Cage9. Dois anos depois desse filme, Beatriz Guido empreeende uma alegoria narrativa do país que acaba, justamente, em 1945, com o peronismo: Fin de fiesta. O texto abre-se, ilustrativamente, com duas epígrafes. Na primeira, Borges traça uma ambivalente cena de zoé. É a estrofe final de um poema de Luna de enfrente, “El general Quiroga va en coche al muere”, e diz: “Ya muerto, ya de pie, ya inmortal, ya fantasma, / se presentó al infierno que Dios le había marcado, / y a sus órdenes iban, rotas y desangradas, / las ánimas en pena de hombres y caballos”. Na segunda, Angel Guido, pai da autora, fixa uma premissa da estética violenta da América Latina, chamando o continente — com uma fórmula digna de Alejo Carpentier — “novela de novelistas”. Ambas as apropriações do arquivo latino-americano colocam Beatriz Guido nesse limiar tão ambivalente em que encontramos gente como o próprio Carpentier ou Glauber Rocha10. Em poucas paNiterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 51 51 6/11/2007 14:26:02 Gragoatá Raúl Antelo lavras, esses exemplos nos mostram que, contra a autonomia, valor supremo para o grupo Sur, os diaspóricos da fusão contrareformista tendem a pensar a cultura, a partir da imagem, como pathos. É dessa vertente que se obtêm alguns filmes de Glauber, como o projetado América Nuestra (que forneceria subsídios para Terra em transe, também de 1967, e A Idade da Terrra, de 1979) ou o posterior e censurado História do Brasil (1971-4), filmado de fato a partir de arquivos cinematográficos, em Roma e Havana11. (Não é ocioso sublinhar que Nilsson, esteticamente um bastardo, um in-fans, constrói La casa del ángel a partir do relato de sua mulher. Ela, por sua vez, que dedica a obra “a mi padre”, denuncia, no romance, a opressão da protagonista no interior da casa paterna, a casa de um político conservador. La casa del ángel é também la casa de Ángel (Guido). Essa será, de algum modo, a casa do casal: a produtora dos filmes de ambos chamar-se-á, sintomaticamente, Producciones Ángel. Mais recentemente, em 1998, o filho de Nilsson, o cineasta Pablo Torre, filmou uma outra história, quase homônima, La cara del ángel, em que a casa é um local de torturas e el ángel alude ao angélico rosto do repressor da ditadura, o capitão Astiz, loiro como a protagonista do filme de Nilsson, cuja beleza perversa foi decisiva para a escolha da atriz, em tudo destoante com relação às ingênuas do cinema argentino de gênero, nos anos 50. O anacronismo, mais uma vez, nos obriga a ler em rede. Lemos a ficção de uma arte nacional mas também uma ficção familiar narrada como matéria pública e política). Corpo e arquivo Voltemos, porém, ao pathos. Jacques Lacan nos oferece uma reflexão substancial acerca do pathos barroco, em seu seminário Ainda, sobre a Ética na psicanálise. Argumenta que, sendo o corpo um misto de palavra e gozo12, a realidade do parlêtre conjugase com a impossibilidade de escritura da relação sexual. Por isso Lacan mostra-se interessado em explorar o que se disse, ou se pensou, ao longo da história, acerca do corpo. Quer saber quais, dentre esses enunciados, se ajustam à verdade da estrutura, i.e. quais são aqueles que atribuem uma dit-mension, uma residência simbólica, em que o sujeito possa habitar, adquirir um modo de ser e se satisfazer com ele. Combina, nesse novo conceito, a dimension (o espaço físico) e a dit-mension (a residência do dito). Cabe aqui relembrar que muitos, dentre os vanguardistas (Borges ou Duchamp são alguns dos mais marcantes) empenharam-se na busca da quarta-dimensão (o tempo) e Duchamp, em particular, chega, no final da vida, a intuir que a quarta dimensão está relacionada com uma atividade em que a linguagem articulada é desnecessária: o erotismo. Dele, Georges Bataille fará um sinônimo de obsceno13, ou como preferia Lacan, de eaubscène, um deslocamento fora de cena, sem lugar cativo, cuja transparência 52 Gragoata 22.indb 52 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:02 O arquivo e o presente aquática (eau) é meramente ilusória porque a sua verdade reside no anagrama (eaub, mera desconstrução de beau) No caso de Lacan, a preocupação com a dit-mension busca, de fato, reconhecer uma primeira articulação de palavra e gozo no comportamentalismo e sua associação à ciência tradicional de extração aristotélica, à qual ele denomina dit-manche, o discurso do cabo, mas também o que diz o ócio, o domingo, o dia do Senhor. Reúnem-se aí todas as versões sobre o Uno, tanto as idéias acerca do pensamento como Amo, quanto a noção de que o pensamento pode segurar “la sartén por el mango”, na relação com o corpo14. A segunda posição é a da ciência moderna, interessada, basicamente, em medir, quantificar, a energia. A partir do principio de homeostase, deduzido da própria inércia da linguagem, tenta-se reduzir os afetos a valores constantes, ainda que arbitrários, de transmissão de energia. Essa tendência torna-se, entretanto, um modo de submissão da vida à biologização da conduta, ameaçando assim o conceito de singularidade irredutível15. A seguir, Lacan incorpora os elementos das sabedorias orientais, entendidas como autênticas doutrinas de salvação. Nesse sentido, tanto o taoísmo quanto o budismo, solicitam ambos uma renúncia (uma castração) para reunirem o pensamento e o gozo: o tao abdica do sexual, ao passo que o budismo abdica do pensamento. Modernistas periféricos como Borges ou Octavio Paz nos ilustram, novamente, essa busca. A partir dessa constatação, Lacan traça uma sutil diferenciação entre duas dit-mensions quase paralelas, a da religião e a do discurso analítico. É nesse contexto, especificamente, que Lacan desenvolve sua teoria do barroco, que seria a dit-mension do obsceno, um habitat de “formas torturadas”. Por isso Lacan define o barroco como a vitrine da Contra Reforma, acertada, em 1563, pelo Concílio de Trento, para a expansão do Ocidente. Por essa via, a Igreja teria assumido a reconquista destinada à recuperação das almas perdidas, interiorizando o sentimento religioso, com o apoio de um arrojado programa iconográfico. A imagem dele resultante articularia arte e vida ( tal como se tornará a ouvir das vanguardas históricas) de forma tal que toda obra humana pudesse contribuir, daí em diante, ad maiorem dei gloriam. A arquitetura dos templos, o traçado urbanístico das cidades, a pintura maneirista ou a escultura contorcida pelo pathos pautar-se-iam, então, pelo princípio de delectare et movere. Se a Contra Reforma busca assim recuperar as fontes do cristianismo, seu sentido pregresso, isso significa que o barroco — seu luxo, seu lixo; sua literatura, sua lituraterre — tem o objetivo de manifestar, através das imagens, os dogmas e as verdades da fé, com o intuito de persuadir os inocentes. Nesse sentido, a arquitetura, em particular, estava voltada à encenação da liturgia, favorecendo a comoção dos sentidos, mediante a repetição dos Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 53 53 6/11/2007 14:26:02 Gragoatá Raúl Antelo rituais (COCCOZ, 2006, p.120). Há portanto uma sutil pedagogia jesuítica na linha que, a partir de Ricardo Rojas, chega a Lezama Lima, através de Ángel Guido ou mesmo Vignale. Ou, em outras palavras, ainda: boa parte da cultura visual nacional-popular sessentista, de Eva Perón a Hélio Oiticica, de Nestor Perlongher a Glauber Rocha, nada mais faz do que renovar essa dit-mension estrutural do gozo explorada pelos vanguardistas-primitivistas de 1920. Segue daí um peculiar paradoxo. Embora as representações do corpo, na arte barroca, constituam uma exibição dos corpos que evocam o gozo, a cópula (ou, como diria Borges, o espelho) delas está excluída, daí que seu sentido não seja mais definido pelos símbolos presentes mas pelo significante ausente, a partir do qual os outros significantes adquirem seu valor simbólico16. A leitura, portanto, dessas escrituras do presente não é mais hermenêutica, mas pura encenação do non-sense. Ou, por outra, a realidade é o fantasma, ao passo que a estrutura religiosa da realidade é que é fantasmática, porque ela suplementa a relação sexual, que aliás não existe, daí retirando seu efeito de verdade. Como a partir do cristianismo, o gozo é então lançado à abjeção, nesse sentido, sob a Contra Reforma, a religião monoteísta ocidental teria renovado o poder da palavra, graças às imagens barrocas. Ela fabrica assim uma nova dit-mension, a da imagem, por meio da qual inunda tudo aquilo que antes chamávamos de mundo e que, daí para frente, fica restituído, enfim, à sua verdade de imundicia, de poeira, de desagregação e de resto (COCCOZ, 2006, p.124-125). Jean-Luc Nancy, aliás, vai nos dizer que o peso restritivo que, a partir do Iluminismo, paira sobre as imagens, obedece, de fato, a uma interpretação, obviamente letrada, que delas se faz. É preciso, para tanto, que a imagem seja pensada como “presencia cerrada acabada en su orden”, não aberta absolutamente a nada e enclaustrada, enfim, numa “estupidez de ídolo”. Daí que não haja, na filosofia e na arte ocidentais, nada mais comum do que o tópico da imagem rebaixada pelo seu caráter secundário, imitativo e inessencial, derivado e inanimado, inconsistente ou enganoso. Ele seria o fruto de uma aliança hegemônica, acertada, no Ocidente, entre o preceito monoteísta e o tema platônico da cópia e da simulação, do artifício e da ausência de original. De esta alianza proceden, con seguridad, una desconfianza ininterrumpida hacia las imágenes que llega hasta nuestros días, en el seno mismo de la cultura que las produce en abundancia; la sospecha recaída en las “apariencias” o el “espetáculo”, y cierta crítica complaciente de la “civilización de las imágenes”, tanto más, por otra parte, cuanto que de ella provienen, a contrario, todas las iniciativas de defensa e ilustración de las artes, y todas las fenomenologías (NANCY, 2006, p. 26-27). 54 Gragoata 22.indb 54 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:03 O arquivo e o presente Anacronismo e sintoma Se, chegados neste ponto, voltamos o olhar para as atuais teorias sobre uma estética do presente como estética do vazio e, mais ainda, se levamos em consideração que essas posições revelam uma peculiar teoria do arquivo cultural latino-americano, talvez se entenda melhor a restrição de Sarlo, com relação às estéticas da imagem, que exploram a abjeção e por que motivo ela prefere chamá-las de etnográficas. Essas novas estratégias já não interpretam a escritura, mas operam, como a arquitetura barroca, encenando uma nova liturgia, o que, como vimos, estimula a comoção dos sentidos. Da mesma forma, a desagregação da dit-mension autônoma, no caso de Ludmer, nos ilustra que a atitude dos artistas rigorosamente contemporâneos afasta-se de um trabalho com o corpo e prefere, no entanto, investigar a potencialidade criadora dos suportes tecnológicos (o arquivo imaterial) enquanto movimentos e percepções areais (Nancy), situados para além das limitações corporais. Algumas dessas obras já não são só objetos culturais (páginas web) mas, fundamentalmente, processos simbólicos (ações na rede), em que o tempo é anacrônico com a leitura: é o tempo da ação17. De simples objeto passivo, sobre o qual operava, ativamente, uma tecnologia discursiva, o corpo torna-se, com Nancy, tela; com Agamben, suporte para o poder e a glória, isto é, passividade aberta e imanente, não exatamente para uma economia mas para uma oikonomia e, enfim, com Lacan, sintoma. Mediante o sintoma, o ser falante pode, finalmente, habitar uma dimensão do corpo na qual viver e gozar, não só não se repelem mutuamente, mas lhe atribuem ao sujeito um partenaire para sua condição, simultaneamente, finita (conforme o tempo) e infinita (conforme o gender)18. Essa dimensão não se pauta mais pelo tempo lógico mas pelo instante do regard, dirá Lacan em um célebre ensaio que lhe fora solicitado, aliás, pelo pessoal da revista Cahiers d´Art. Um desses artistas, Duchamp, traduzia o instante do regard como diferimento do retard, ao que o travestimento, obviamente, não era alheio, de tal forma que o gregário ou comunitário se dissolvia em uma singularidade irredutível, a do anacronismo. Outro dos artistas que vem construindo sua estética a partir desses preceitos, ainda que seus pressupostos sejam, aparentemente, mais tradicionalistas, é Alexander Sokurov. Fredric Jameson vê, em seus filmes, uma peculiar assincronia que ele interpreta como redimensionamento da autonomia, de tal modo que Sokurov pouco teria a ver com uma pretensa pós-modernidade pós-soviética e muito mais com uma reconfiguração (ainda modernista) das relações entre arte e história (JAMESON, 2006, p. 1-12). Ao analisar essa obra, entretanto, Giorgio Agamben tem chamado a atenção para a grande lição, Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 55 55 6/11/2007 14:26:03 Gragoatá Raúl Antelo a seu ver, dos filmes de Sokurov: a contemplação do poder, enquanto contemplação de um vazio, só pode ser elegíaca. E, nesse ponto, as elegias de Sokurov são muito próximas das de Guy Debord. Porém, nesse mesmo instante em que elas mostram-se iguais, essas elegias exibem também sua diferença. A arché, essa origem, porém, ainda, esse seu mistério ou arcano conservado pelo arquivo, revela, então, sua verdade quase banal: si el arca del poder está vacía, si justamente este vacío es el verdadero y último arcanum imperii, entonces la elegía debe romper su forma. Ella no tiene literalmente nada que lamentar. Acaso por este motivo, evocando el “Arca” de Rusia, Sokurov ha debido introducir en la elegía la figura irónica de un extranjero, en cuyos labios el lamento se rompe incesantemente en balbuceo y sonrisas. Y el ruso, a cuya mirada debemos todo lo que vemos, es el signo de un presente que debe permanecer invisible, y al cual la posibilidad del lamento le ha sido vedada para siempre (AGAMBEN, 2006, p.81) Poderíamos dizer, em resumo, que uma política do anacronismo, como é a que se ativa toda vez que arquivo e memória se justapõem, implica, ao mesmo tempo, a inequívoca singularidade do evento mas também a ambivalente pluralidade da rede. A primeira impõe-se através da experiência; a segunda, através do arquivo. Este parti pris redefine o tempo em foco como tempo-com (como diferença ou diferimento, como con-temporização ou temporalização). Significa, em última análise, que a essência do tempo é uma co-essência que atua, que se ativa, no presente de uma leitura, de modo tal que uma temporalização não pode ser definida, tão somente, como um conjunto aleatório de tempos quaisquer, em que o tempo do corte — da crise e da crítica — ficaria sempre aberto e indefinido. A temporalização do anacronismo significa, pelo contrário, uma participação temporal na temporalidade, ou, em outras palavras, uma hiper-temporalização, infinita e potencializada, do evento, através do recurso anagramático da leitura. Se o que define o anacronismo é, portanto, a con-temporização, então, não é o tempo per se o que define a história cultural. Aquilo que define a temporalidade é, pelo contrário, o com, é a sua sintaxe ou composição, seu uso, sua política, e não uma hipotética matéria livre ou indeterminada, comunitária ou compartilhada. Essa é a que, no presente, virou etnográfica. 56 Gragoata 22.indb 56 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:03 O arquivo e o presente Abstract Latin-American modernism is a cultural stream with moments of intensity, lapses, periods of fervish agitation, and dissident rupture. Rebuilding its archive doesn’t mean searching for origins but choosing to identify and analyze those moments overlapped with modernist autonomy. The Baroque effect, the so-called LatinAmerican neo-Baroque style of the 70s links directly with a preposterous moment of that history. Keywords: archive; autonomy; neoBaroque; diaspora. Referências AGAMBEN, Giorgio – “La elegia de Sokurov” in Las ranas, nº 2, Buenos Aires, abril 2006. p.57-92. 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A polêmica suscitada, na Argentina, em janeiro de 2007, com a renúncia de Horácio Tarcus à vice-direção da Biblioteca Nacional, insere-se, diretamente, nesta lógica. 3 Para uma discussão sobre a questão da arte contemporânea e a etnografia, ver também Foster (1996, p. 171-204). 4 Para uma discussão do problema no campo das imagens, ver Bozal (2004) e Didi-Huberman (2004). 5 Penso, evidentemente, na contribuição de Huyssen (1997, 2002). 6 Tomo o conceito de diáspora (utilizado, aliás, por Ludmer) de Stuart Hall (2003). 7 “Bastó un siglo de euforia y riqueza para producir la manifestación más representativa del arte brasileño, última y brillante expresión de ese barroco portugués que abarcó desde Macao, en la China, y Goa, en la India, hasta las entrañas de la América meridional” (BUSCHIAZZO, 1961, p. 161). 8 Em 1950, como reitor-interventor na Universidade do Litoral, durante o governo peronista, Guido faz uma palestra em francês, na Maison de l’Amérique Latine, com o título de Latindía. Renacimiento latino en Iberoamérica (Santa Fe, Imprenta de la Universidad, 1950). A vinheta é uma águia imperial preta com bandeiras espanholas e argentinas. 9 “Como a Torre Nilsson y a Beatriz Guido no les interesaban los sentimientos femeninos sino la mirada femenina, no es casual que hayan buscado una música que acentuara el distanciamiento y la no identificación entre música e imagen y ya solo este motivo explica que hayan recurrido a uno de los músicos argentinos de vanguardia más importante de ese entonces: Juan Carlos Paz. Músico erudito y conocedor de las corrientes más actuales de la música contemporánea (en los años en los que componía para Nilsson, estaba escribiendo Arnold Schoenberg o el fin de la era tonal), Paz había polemizado con el nacionalismo musical y se reconocía en los aportes de la escuela vienesa y en la innovación norteamericana (fue el primero en hablar extensamente sobre Yves y Cage en nuestro país con su libro Introducción a la música de nuestro tiempo de 1955). La elección de Paz venía a resolver de un solo golpe varios de los inconvenientes que le interesaba despejar a Torre Nilsson. Desde el punto de vista de la musicalización propiamente dicha, la orquestación (hecha, en contra de lo que se estilaba en el cine nacional, con pocos instrumentos) corrompía lo que Michel Chion llamó “síncresis” (una suerte de diégesis audiovisiva) [...]. Pero en función de lo que sucede en términos de estética del cine, la estrategia básica de Torre Nilsson consistió en trasladar propiedades de otros campos (música, literatura) al campo del cine”. Cf. Aguilar (manuscrito inédito). 10 Glauber Rocha era um evidente admirador do estilo, como disse Sadoul, simultaneamente, poético e realista, de Torre Nilson. Fornece uma resenha do que vira em Cannes 1967 ao amigo Alfredo Guevara. “O Torre Nilsaon de La Muchacha del Lunes surpreende a todos, menos aqueles que já tinham visto no anterior El ojo en la cerradura um desvio do autor dos temas intimistas para uma realidade social. Mudou Torre Nilsson? Tudo leva a crer que sim. El ojo en la cerradura, apresentado no Festival do Rio em 1965, já fazia críticas ao fascismo. O que limitava o filme era sua linguagem fechada, que diluía o tema político numa reflexão quase metafísica. A crescente onda de agitação política pela qual passa a AL tem provocado crises e manifestações até mesmo no cinema argentino, dentre todos os cinemas latinos, o mais estetizante. Esta modificação viemos a sentir, com definição precisa, em La muchacha 1 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 59 59 6/11/2007 14:26:04 Gragoatá Raúl Antelo del lunes, produção americana, embora o financiador, De Rona, seja um porto-riquenho. TN explicou em sua conferência de prensa que De Rona viveu um drama parecido e, tendo a idéia inicial, o convidou para fazer um filme que ele, De Rona, produziria. Trabalhando a idéia inicial com sua esposa, B. Guido, TN realizou o filme em Porto Rico, com atores americanos, Arthur Kennedy e Geraldine Page. Um furacão ataca Porto Rico e leva ao desabrigo centenas de famílias pobres. Uma empresa americana constrói edifícios em Porto Rico. Os americanos estão na sua ‘fazenda’. O povo morre de fome nas ruas. O americano trata o porto-riquenho como um escravo e, quando o trata com simpatia, o trata com um paternalismo cristão típico do senhor pelo escravo. Com tintas claras e diretas, TN pinta este quadro e não hesita um só segundo em revelar esta relação colonial nos gestos, detalhes e significações. Ataca de frente a inconsciência e o egoísmo dos americanos, embora não os pinte como monstros devoradores de criancinhas, isto é, os coloca como seres humanos, também produtos de uma conjuntura social e econômica. Arthur Kennedy é o americano, pai de família, funcionário da grande empresa, que, dominado pela mulher, vai ao fundo de uma experiência pessoal: sua filha, voluntariosa e deformada, exige que ele vá a um bairro pobre de Porto Rico em busca de uma boneca velha que sua mãe, dia antes, dera como donativo às crianças pobres vítimas do furacão. A mãe dera vários objetos usados, e uma boneca, distraidamente. Pois é em torno desta boneca (solução talvez um pouco prosaica) que o filme se conduz. Seguindo os caminhos da boneca, acompanhado pela família, o americano descobre a falta de sentido daquela sua ação e percebe, entre os nativos esmagados, os traços de seres humanos. Moralismo? O filme é ambíguo no final. O americano estaria redimido pela experiência? A estrutura psicológica dos personagens para uma forma acabada de melodrama limita La muchacha del lunes como filme político. Os dados políticos sobram dos detalhes. Torre Nilsson, mudando de tema, não perdeu o seu toque de cinema de atmosfera e sua linguagem, por isto, continua carregada de símbolos abstratos que, sem apoio em realidades, se diluem arbitrariamente. Mas, mesmo assim, este filme já possui uma flexibilidade maior do que os outros: é mais aberto, mais dinâmico e agressivo. Em alguns momentos, de grande violência. Mas até que ponto foi esta violência ou até que ponto a acusação se mantém? O filme não dá resposta, embora o final possa parecer também violento” (ROCHA, 1997, p. 272-273). Nesse mesmo ano Glauber publica uma matéria nos Cahiers du cinéma em que observa que “se a literatura de Borges/Cortázar precede muitas experiências do nouveau roman, nem por isto o tempo conseguiu se articular (ou não) nos filmes pré-resnaisianos. Solitário, o cinema argentino descobriu o Estilo antes da História” e por isso pensava que qualquer personagem de Torre Nilsson, “disciplinado num universo difuso em Bergman”, nada consegue além da disciplina (ROCHA, 2004, p. 105). Por esse mesmo motivo, Glauber defendia, contra toda corrente de esquerda iluminista, os filmes épicos de Nilsson, como Martín Fierro e até mesmo o pedagógico El Santo de la Espada, a biografia de San Martín, da autoria aliás de Ricardo Rojas, longínquo promotor dessa restauração nacionalista. 11 Em outra carta a Alfredo Guevara, datada de agosto de 1967, em Roma, Glauber Rocha sintetiza a sua posição: “Creio que um filme POLÍTICO deve ser também um ESTÍMULO CULTURAL E ARTÍSTICO. E para nós, latinos, que somos colonizados cultural e economicamente, o nosso cine deve ser revolucionário do ponto de vista político e poético, isto é, temos de apresentar IDÉIAS NOVAS COM NOVA LINGUAGEM. America nuestra não pretende ser um filme DIDÁTICO mas um COMÍCIO, UM FILME DE AGITAÇÃO, UM DISCURSO VIOLENTO e também uma prova de que, no terreno da cultura, o homem latino, liberado da opressão colonizadora, pode CRIAR. Tenho muita fé neste filme, é a única coisa que QUERO E POSSO FAZER, acho que será uma contribuição para a Guerra geral das Américas e estou disposto a assumir todos os riscos e conseqüências para fazê-lo. Procurarei Carpentier em Paris” (ROCHA, 1997, p. 293). 12 “El inconsciente no es que el ser piense […] es que el ser, hablando, goce y no quiera saber nada más.” (LACAN, 1981, p. 128). 13 Para a discussão sobre obsceno, abjeto e traumático, ver Foster (1996, em especial, p. 127-68). Cf. ainda Maier (2005). Para uma discussão histórica da questão, ver Lahuerta (2004). 14 Josefina Ludmer (1985, p.47-54) analisou, pioneiramente, “Las tretas del débil”, ao ler a carta de Soror Juana ao padre Vieira. 15 Para uma discussão literária do conceito ver Attridge (2004). 16 Diz Lacan, no seminário já citado, que a cópula “tan ausente está de la representación como de la realidad a la que sin embargo sustenta con los fantasmas de los que está constituida” (LACAN, 1981, p.138). 17 “Las obras no son sólo objetos (páginas web) sino también procesos (acciones en la red). Como en las performances tradicionales, el tiempo es el tiempo de la acción. Luego quedan registros en el gran archivo de Internet. Una serie de estas Ephemeral matches online se organizó en México en 2002, un combate entre artistas mediáticos usando como arena el espacio en red, sin reglas y en tiempo real. Algunos exploran las relaciones entre el cuerpo y las nuevas tecnologías a través de diferentes interfaces cuerpo-máquina. El australiano Sterlac invierte el proceso habitual de transmisión, el actor está conectado a sensores y sujeto a los avatares del mecanismo sujeto a su cuerpo. Recientemente ha presentado una escultura llamada Stomach que sólo puede verse a través de endoscopia” (COCCOZ, 2006, p. 132). No campo do que ainda consideramos como literatura, relembremos que, em novembro de 2006, o Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (MALBA) organizou um debate, "¿Qué hay de nuevo, viejo?", do qual participaram Rodolfo Fogwill, Martín Kohan, Daniel Link, Damián Tabarovsky e Sebastián Hernaiz; recentemente, Washington Cucurto inaugurou um blog (elcuranderodelamor.blogspot.com) concebido como forma de lançar seu último 60 Gragoata 22.indb 60 Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:04 O arquivo e o presente livro, El Curandero del Amor, editado pela Emecé. Muitos blogs são pessoais (Daniel Link, Santiago Llach, Guillermo Piro) mas um dos espaços mais enigmáticos (acerca da idade, condição e gender dos que nele escrevem) é o site El interpretador (elinterpretador.net). 18 Como avaliar — pergunta-se ainda Vilma Coccoz — essas tentativas de atravessamento da lógica da representação, para mostrar aquilo que vela o fantasma? “¿Podemos conferir a esta búsqueda desesperada el valor de la denuncia, del clamor de los cuerpos abandonados al desvarío, característico de la post-modernidad, según la tesis de que lo corporal es político? ¿O estamos asistiendo, también, a un movimiento de histerización de los significantes de la ciencia para ponerlos al servicio del arte, de lo que, por tener como fin el goce, muestra que no sirve para nada? Frente a los nuevos imperativos de eficiencia, a las nuevas normas de salud y a la oferta infinita de objetos plus goce, el sujeto postmoderno, a la deriva de los acontecimientos que sacuden cada día su precaria subsistencia, no puede orientarse en su relación a la verdad. Horadada la verdad religiosa, sólo pervive la verdad científica, por definición asubjetiva. Se siente culpable entonces de su cuerpo, que se manifiesta insurrecto a la deseable armonía, inhibido ante las satisfacciones múltiples que el mercado publicita. Razón por la cual el cuerpo puede volverse también persecutorio, por no inclinarse ante la promesa de felicidad que ofrecen las pantallas publicitarias. El sujeto hipermoderno, condenado a la soledad, sin conseguir alojarse en un discurso que le suministre un orden verdadero con el que nombrar lo real, carga sobre sus espaldas con el sentimiento de culpabilidad por su impotencia, sus incapacidades, su fracaso en dominarlo con el mango, con el pensamiento. El cuerpo no se pliega fácilmente al equilibrio de las cantidades, a las cifras de las tecnociencias. Los afectos que lo conmueven y deleitan no se dejan atrapar en grillas psicológicas ni con las fórmulas de los psicofármacos. En este difícil panorama que ofrece el estado actual de los discursos, el arte y el psicoanálisis se perfilan como dos vías posibles para tratar lo real. También como dos maneras de responder al discurso del amo actual y a sus efectos mortificantes” (COCCOZ, 2006, p. 133-134). Niterói, n. 22, p. 43-61, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 61 61 6/11/2007 14:26:05 Gragoata 22.indb 62 6/11/2007 14:26:05 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações. Eurídice Figueiredo Recebido 10, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007 Resumo Este texto propõe uma leitura cruzada dos discursos da mestiçagem em relação aos discursos da transculturação, do hibridismo e da crioulização, mapeando como foram conceitualizados ao longo do século XX por alguns pensadores significativos da América Latina — continente emblemático da mestiçagem. Demonstra, em seguida, como eles acabaram extrapolando o âmbito deste continente para um uso mais generalizado tanto na América do Norte quanto na Europa, tendo em vista o fluxo de imigrantes, que cresce de maneira exponencial, numa diáspora que muda a feição de países até então considerados homogêneos, tanto étnica quanto culturalmente, como a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos e o Canadá. Estudiosos de várias regiões passaram então a usar de maneira indiscriminada estes quatro termos, geralmente como sinônimos. Interessa refletir sobre o caminho percorrido para restabelecer uma certa historicidade e detectar como se deram estas ressignificações. Palavras-chave: mestiçagem; hibridismo, crioulização; transculturação. Gragoatá Gragoata 22.indb 63 Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:05 Gragoatá Eurídice Figueiredo Introdução A tradução é minha sempre que se tratar de citações retiradas de livros que constam das referências bibliográficas em edição estrangeira. 2 Expressão que significa que uma gota de sangue negro torna a pessoa um negro (ou afro-descendente). 3 Além do fenótipo, contam também para o branqueamento outros elementos tais como: classe social, escolaridade. 1 64 Gragoata 22.indb 64 Os discursos da mestiçagem se cruzam e às vezes se confundem com os discursos da transculturação, do hibridismo e da crioulização em diferentes regiões. Pode-se detectar um processo muito complexo, em que se desliza do biológico para o cultural, e deste, para processos mais especificamente literários e lingüísticos. Pode-se também perceber que as palavras não são inocentes, que certos termos se constituíram ao longo da história, ora tornando-se tabu, ora sendo incorporados ao discurso da nação, ora se banalizando por um emprego indiscriminado. Trata-se de um tema complexo, cujas implicações políticas e ideológicas, associadas também aos afetos que estão em jogo, penetram e intervêm na reflexão teórica. A mestiçagem e o hibridismo sofreram enorme preconceito ao longo da história, tendo chegado ao século XXI já ressemantizados de maneira muito mais positiva e mais genérica. Já a transculturação e a crioulização, neologismos de uso mais recente, foram criados e divulgados no século XX. A rejeição à mestiçagem e, portanto, ao surgimento do híbrido, vinha da interdição do intercurso sexual barrado entre o homem branco e a mulher subalterna (indígena ou negra), com o nascimento do mestiço, fruto do pecado, filho bastardo, ilegítimo, renegado por ambas as comunidades étnicas que o originaram. Sylviane Albertan-Coppola, ao estudar a evolução do conceito de mestiçagem através da análise dos dicionários franceses do século XVIII, mostra que o dicionário funciona como uma corrente de transmissão entre os escritos especializados e o grande público ao veicular os preconceitos existentes, aparecendo assim como um espelho ideológico de seu tempo que reflete a representação da sociedade. Ela demonstra que os termos mestiço e mulato, por conta de sua origem, são empregados e dicionarizados de modo a realçar sua anormalidade, ou até mesmo sua monstruosidade, associando-os a animais, frutas e monstros, ou seja, considerando-os como anomalias da natureza por serem a resultante de cruzamento de raças diferentes (ALBERTAN-COPPOLA, 1992, p. 42)1. Peter Fry afirma que “raça” e “relações de raça” não têm nada de natural. Tanto a “democracia racial” brasileira, fruto da mestiçagem assimiladora, quanto a one drop rule2 norte-americana, são conceitos surgidos no bojo de um pensamento global que moldou as duas sociedades (FRY, 2005, p. 178) e criou (ou não) um entre-lugar para o mestiço: enquanto no Brasil um mestiço pode tornar-se branco, dependendo de seu fenótipo3, nos Estados Unidos prevalece a regra da hipodescendência, ou seja, não se pressupõe a existência do mestiço porque quem tem sangue negro ou indígena pertence às comunidades negras ou indígenas, sendo recusada sua admissão no universo dos brancos. Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:05 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações Este texto propõe, inicialmente, uma leitura cruzada dos discursos da mestiçagem em relação aos discursos da transculturação, do hibridismo e da crioulização, mapeando como foram conceitualizados ao longo do século XX por alguns pensadores significativos da América Latina — continente emblemático da mestiçagem. Demonstra, em seguida, como eles acabaram extrapolando o âmbito deste continente para um uso mais generalizado tanto na América do Norte quanto na Europa, tendo em vista o fluxo de imigrantes, que cresce de maneira exponencial, numa diáspora que muda a feição de países até então considerados homogêneos, tanto étnica quanto culturalmente, como a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos e o Canadá. A intensificação do processo de globalização nos finais do século XX acarretou o trânsito e a mobilidade de pessoas, intensificando o nível das comunicações sobretudo através da internet, provocando novas mestiçagens, novos hibridismos, novas transculturações, novas crioulizações. Estudiosos de várias regiões passaram então a usar de maneira indiscriminada estes quatro termos, geralmente como sinônimos. Interessa refletir sobre o caminho percorrido para restabelecer uma certa historicidade e detectar como se deram estas ressignificações. José Marti: a mestiçagem como ideologema Como mostra Eve-Marie Fell (1994), ao longo do século XIX a América Latina é vista por pensadores europeus, sobretudo franceses, como um continente condenado à anarquia: Gobineau, Spencer, Le Bon, Darwin, todos creditam à mestiçagem a situação de desestabilidade política e econômica da região. A influência desta concepção nas elites locais se faz sentir imediatamente e vários escritores refletem este desprezo pelo mestiço: Carlos Octavio Bunge, Alcides Arguedas, Francisco García Calderón, Nina Rodrigues, são alguns dos autores de livros que afirmam a degeneração da pátria por causa de patologias advindas dos problemas raciais das populações mestiças. Assim, quando José Martí (1853-1895), no clássico texto “Nuestra América”, uma conferência proferida em Nova York em 1891, define a América Latina como sendo mestiça em oposição à América anglo-saxônica, pode-se dizer que ele tem o projeto de transformar a mestiçagem em um ideologema que busca dar valor positivo àquilo que parecia fonte de conflito e de incômodo para suas elites letradas. Segundo Martí, a diferença entre os Estados Unidos e a América Latina residiria na maneira como cada sub-continente tratou o seu Outro: os norte-americanos praticaram o genocídio contra os índios e isolaram seus negros em guetos enquanto os latino-americanos absorveram em seu sangue este Outro. Segundo Amaryll Chanady, Martí vê a América mestiça como um exemplo de heterogeneidade integrada e harmoniosa, enquanto ele considera a América do Norte como Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 65 65 6/11/2007 14:26:05 Gragoatá As elites brancas na América Latina se definem como socialmente brancas e não necessariamente brancas do ponto de vista étnico, na distinção de Costa Pinto (1998, p. 59). Assim, pode-se afirmar que nem todos os brancos latino-americanos seriam con siderados brancos (caucasianos) nos Estados Unidos. 4 66 Gragoata 22.indb 66 Eurídice Figueiredo uma sociedade que se caracteriza pela marginalização e por estruturas de poder hierarquizadas (CHANADY, 2000, p. 24). José Martí não enfoca a mestiçagem por seu lado racial, opondo-se assim, implicitamente, às correntes positivistas e darwinistas que afirmavam a inviabilidade de raças mestiças que viviam em zona tropical. Ele nega a existência de raças e de ódio racial; para ele, a América Latina se caracteriza antes pela defasagem existente entre as elites letradas e o povo, entre o campo e a cidade, entre pobres e ricos, entre os que andam “de perna nua” e os que vestem “casaca de Paris” (MARTI, 2005, p. 18): as elites estão voltadas para a Europa, enquanto o povo está mais perto da natureza, com valores e concepções próprias. Não há dúvida de que esta dicotomia passa também pelo recorte étnico ou racial porque as elites crioulas são constituídas de brancos4 enquanto os marginalizados de pernas nuas seriam os índios, negros e mestiços. Martí se refere ao hibridismo e à heterogeneidade que caracterizavam (e continuam caracterizando) a América Latina, no sentido da coexistência de grupos socialmente e racialmente diferentes. Sua visão utópica tende a ver a realização deste continente harmonioso em um devir, pois ele não pode ignorar os problemas então existentes. Seu pensamento é precursor e profético, o que explica sua importância estratégica na forma de percepção da mestiçagem na América Latina e o fato de Martí ser hoje uma unanimidade continental. Eve-Marie Fell assinala que o legado positivista e darwinista começa a perder sua força nos anos 20 e 30 do século XX, quando começa a surgir um novo tipo de definição nacionalista na América Latina, baseado no aparecimento de mudanças básicas: 1. uma perspectiva pragmática e empreendedora substitui a visão pessimista, que se acompanhava de lamentações sobre a “degeneração” do continente; 2. um novo credo, que fundamenta no povo, a despeito de sua origem étnica ou de seu preparo cultural, a coesão nacional, substitui a visão elitista, que identificava o poder com a “aptidão” para o poder; 3. uma valorização da região (correspondente ao interior ou às montanhas), na qual vivia a massa da população negra, indígena ou mestiça, no suposto arcaísmo de suas tradições, em detrimento da capital, até então hegemônica, com suas elites brancas e letradas. Neste caso, Fell considera que se pode falar de um “nacional-regionalismo” novo, decididamente anti-oligárquico (FELL, 1994, p. 589). Os anos 20, 30 e 40 foram decisivos na formulação de análises científicas ancoradas em perspectivas transformadoras, no campo da história, da antropologia e da sociologia, em que se pode perceber uma preocupação em traçar a “formação” histórica, econômica, cultural e literária dos diferentes países da América Latina. Alguns deles são diretamente influenciados pelo marxismo, enquanto outros, sem ser marxistas, admitem ter sofrido influência do materialismo histórico. Como traço Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:06 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações comum na maioria dos intelectuais latino-americanos da época, a estada na Europa ou nos Estados Unidos, a influência das vanguardas, que privilegiavam a arte primitiva, o elemento popular. Uma transformação de mentalidade permite mudar a percepção da questão racial, que vai ser deixada de lado em favor de uma visada mais cultural da contribuição dos povos até então considerados inferiores. José Vasconcelos e a raça cósmica Para não alongar demais e, por outro lado, para não simplificar as análises, este artigo se concentra nas discussões sobre a mestiçagem no contexto da AfroAmérica, não tratando da questão indígena. A entrada de José Vasconcelos se explica porque a área de criação da raça cósmica engloba o Brasil e outros países da América do Sul. 5 A mestiçagem foi concebida de um ponto de vista racialista por José Vasconcelos5 (1882-1959), autor de La raza cósmica [1925], livro construído em torno do eixo que opõe a América Latina aos Estados Unidos, tentando justificar uma superioridade da América Latina em termos espirituais ou éticos para contrapor à evidente supremacia econômica do país do norte. Como Martí, ele condena os norte-americanos que destruíram e/ou recusaram a miscigenação com os indígenas e os negros: eles “cometeram o pecado de destruir essas raças, enquanto nós as assimilamos, e isto nos dá direitos novos e esperanças de uma missão sem precedentes na História” (VASCONCELOS, 1992, p. 96). “A colonização espanhola criou mestiçagem; isto assinala seu caráter, fixa sua responsabilidade e define seu porvir” ao passo que a destruição dos indígenas, encetada pela colonização inglesa, é o “indício de sua decadência” (VASCONCELOS, 1992, p. 96). Assim, se definiram ao longo da História os sistemas que colocam em campos sociológicos opostos as duas civilizações: “a que quer o predomínio exclusivo do branco, e a que está formando uma raça nova, raça de síntese, que aspira englobar e expressar todo o humano em maneiras de constante superação” (VASCONCELOS, 1992, p. 97). Deste ponto de vista, ele se aproxima também do ensaísta uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917), autor de Ariel [1900], que vê nos latinos uma superioridade espiritual; Rodó “dá a Vasconcelos a perspectiva racial e continental que acabaria por dar forma à mais ambiciosa de suas teorias: a raça cósmica” (DOMINGUEZ MICHAEL, 1992, p.XXI). Numa visão messiânica e utópica, Vasconcelos acredita que a vocação do continente americano é de renovar o mundo. Contrapondo-se à América do Norte, cuja missão foi realizada muito rápida e eficientemente porque sua obra constitui uma mera continuação da Europa, a América Latina ainda busca sua realização por fazer uma obra muito mais ampla. Assim, além das quatro raças existentes (branca, negra, vermelha e amarela), ele profetiza o surgimento da “raça cósmica” como uma quinta raça, ecumênica e superior às outras (VASCONCELOS, 1992, p. 96). Para Vasconcelos, esta seria “a raça definitiva, a raça síntese ou raça integral, feita com o gênio e com o sangue de todos os povos e, por isto mesmo, mais capaz de verdadeira fraternidade Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 67 67 6/11/2007 14:26:06 Gragoatá Eurídice Figueiredo e de visão universal” (VASCONCELOS, 1992, p. 99). Combatendo o positivismo e o darwinismo, que haviam imperado no pensamento europeu do século XIX até o início do XX, e que preconizavam um aperfeiçoamento das espécies pela luta do mais forte para sobreviver, Vasconcelos imagina o aparecimento da raça cósmica como conseqüência do amor e da confraternização universal. Em relação à teoria dos climas, que considera os trópicos como inadequados para o desenvolvimento da civilização, ele afirma justamente o contrário, afirmando que as grandes civilizações surgiram entre os trópicos e que, ademais, o desenvolvimento tecnológico tratará de resolver os prejuízos causados pelo calor, permitindo que os aspectos benéficos sejam reforçados. O local que ele vislumbra como a terra de promissão compreenderia o Brasil, a Colômbia, a Venezuela, o Equador, parte do Peru e parte da Bolívia e a região norte da Argentina (VASCONCELOS, 1992, p. 102). No entanto, como ele não pode se desvencilhar da idéia de que a raça branca é superior, ele supõe a predominância de suas características na raça cósmica, que neste processo de síntese eliminaria todo o que é feio, tanto no sentido físico quanto no moral e espiritual. Ele afirma que na América Latina há poucos negros, já que eles estão sendo embranquecidos pelo processo de miscigenação; por outro lado, os indígenas são uma viga mestra para a mestiçagem. Ao colocar ênfase neste processo de eugenia pela seleção e pelo embelezamento (1992, p. 102), considero que Vasconcelos escorrega por um perigoso terreno, ao conceber um processo de seleção de base darwinista, embora sem violência e sem conflito, como se tudo pudesse se realizar livre e espontaneamente. Os tipos baixos da espécie serão absorvidos pelo tipo superior. Desta maneira poderia se redimir, por exemplo, o negro, e pouco a pouco, por extinção voluntária, as estirpes mais feias irão cedendo terreno para as mais belas. As raças inferiores, ao educar-se, se tornariam menos prolíficas, e os melhores espécimes irão ascendendo em uma escala de melhoramento étnico, cujo tipo máximo não é precisamente o branco, mas esta nova raça, aquela que o próprio branco terá que aspirar com o objetivo de conquistar a síntese. O índio, por meio do enxerto da raça afim, daria um salto de milhares de anos que separam a Atlântida e nossa época, e em umas quantas décadas de eugenia estética poderia desaparecer o negro junto com os tipos que o livre instinto de formosura vá assinalando como fundamentalmente recessivos e indignos, por isto mesmo, de perpetuação (VASCONCELOS, 1992, p. 102). Pode-se depreender desta proposta um desejo de eliminação dos tipos considerados inferiores por um lento e consentido processo de embranquecimento e depuração de traços belos. Ao enaltecer o mestiço, Vasconcelos rechaça implicitamente o negro e o índio no estado atual em que se encontram, embora reconheça 68 Gragoata 22.indb 68 Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:06 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações neles qualidades tanto físicas quanto espirituais. Uma contradição aparece no pensamento de Vasconcelos: despreza o indígena mas considera positiva a mestiçagem iniciada pelos espanhóis. Na avaliação de Dominguez Michael (1992), sem entender as antigas culturas mesoamericanas, afastando-se dos indígenas, que constituíam parte simbólica fundamental da nação mexicana pós-revolução, sua concepção da raça cósmica é inspirada muito mais no pensamento e na realidade da América do sul do que na história do México. Vasconcelos vislumbra no sonho de Bolívar de unir os países sul americanos um “desejo de fundir o humano em um tipo universal e sintético” (VASCONCELOS, 1992, p. 97). Gilberto Freyre e o elogio da mestiçagem O conceito de mestiçagem no Brasil está indelevelmente ligado à obra de Gilberto Freyre, sobretudo a partir de Casagrande & senzala [1933], que não foge ao esquema contrastivo entre os processos formadores da nação na América Latina e nos Estados Unidos. O autor parte de uma premissa fundamental: a distinção entre raça e cultura, aprendida com seu professor Franz Boas, na Universidade de Columbia (Estados Unidos), conforme ele afirma no prefácio à primeira edição. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Nesse critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio. Também no da diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família (FREYRE, 1980, p. lviii). Freyre, baseado em Spengler, destaca a influência do meio físico na transformação dos imigrantes e afirma que o português, ao se adaptar ao novo meio, tornava-se quase uma nova raça: “Distanciado o brasileiro do reinol por um século apenas de vida patriarcal e de atividade agrária nos trópicos já é quase outra raça, exprimindo-se noutro tipo de casa” (FREYRE, p. lxiii). Assim, apesar da hegemonia do elemento europeu na formação do país, Freyre demonstra que todos os povos colocados em contato começam a se modificar. Ao analisar a contribuição das três “raças” (a portuguesa, a africana e a indígena) para a formação do povo brasileiro, evoca sobretudo o papel desempenhado na vida material assim como os elementos culturais de cada uma delas. Apesar de uma certa imprecisão, porque os aspectos biológicos insistem em aparecer, Benzaquen Araújo afirma que ele não sucumbe nem às teorias francesas da época (Gobineau) bem disseminadas no Brasil, segundo as quais a miscigenação terminava na esterilidade (biológica e cultural), nem às teorias positivistas brasileiras que viam no embranquecimento progressivo da população a redenção de Cam (título de um quadro Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 69 69 6/11/2007 14:26:06 Gragoatá Eurídice Figueiredo de Modesto Brocos y Gomez de 1895). Todas as duas visões partiam da assunção de que a herança negra era um fardo que o país carregava. Portanto, em lugar de partir de uma idéia de carência, de inacabamento, Freyre reconhece o caráter híbrido da formação do povo brasileiro e concede tanta importância à contribuição negra (e em medida menor, indígena) quanto à contribuição portuguesa para a constituição de uma identidade nacional. A mestiçagem para Freyre não é nem uma unicidade nem uma síntese; ao contrário, ele deixa aberto o processo de mutação tanto biológico quanto cultural (ARAÚJO, 1994). Ao contrário da visão racialista de Vasconcelos, Freyre, consciente da influência da economia na vida social, assinala que não basta se pensar em eugenia biológica pois as questões de saúde e de beleza corporal não são fruto da hereditariedade só, elas estão também associadas à alimentação, às condições de moradia, ou seja, às condições de vida. A partir da obra de Gilberto Freyre, a imagem do mestiço começa a passar por um processo de valoração, abrandando o estigma que lhe era anteriormente atribuído. Segundo Freyre, os filhos mulatos do senhor eram alforriados pelo pai à beira da morte (FREYRE, 1980, p. 436), eram criados e educados na casa-grande com e como os filhos legítimos (Freyre, 1980, p. 443), e, apesar da bastardia, eles muitas vezes chegavam a ter uma educação superior, o que não era o caso dos filhos legítimos (FREYRE, 1980, p. 448). Assim, quando a aristocracia rural começa a perder poder para as novas forças das cidades, as posições de mando são ocupadas por bacharéis e militares, muitas vezes mulatos (FREYRE, 2003, p. 725). Ele fala do prestígio e da beleza do mulato, seu sucesso junto às mulheres brancas, a despeito de preconceitos de branquidade nas famílias de elite (FREYRE, 2003, p. 733). Os séculos XIX e XX tiveram inúmeros mulatos em posição de destaque, independentemente de sua cor ou origem. A partir dos anos 1950, tanto no Brasil quanto na América Hispânica, “dá-se o reconhecimento da mestiçagem como o nosso signo cultural”, segundo Irlemar Chiampi; com este ideologema, o discurso americanista assumia a “heterogeneidade de sua formação racial, sem renunciar ao ambicionado universalismo”. Ele supunha também a existência de “uma diferença que permitia contrastar a complexidade da nossa formação com a homogeneidade dos Estados Unidos e os particularismos etnocentristas dos europeus” (CHIAMPI, 1988, p. 18). A crítica da mestiçagem no Brasil Desde os festejos do centenário da abolição da escravidão (1988), percebe-se uma crescente crítica ao discurso da mestiçagem e da democracia racial no Brasil, feita por parte de acadêmicos e ativistas ligados a movimentos negros, que substituíram o 70 Gragoata 22.indb 70 Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:07 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações anti-racismo “universalista” pelo anti-racismo “diferencialista”, por influência dos movimentos negros norte-americanos (MUNANGA, 2006, p. 137). Assim, o discurso da mestiçagem passa por um movimento que vai de mito de fundação nacional para ser encarado como um discurso ideológico que enaltece a fusão, em benefício do embranquecimento e da homogeneização, e que tem servido como política de exclusão social dos negros na sociedade brasileira. Gislene Aparecida dos Santos (2005, p. 160) considera que Gilberto Freyre “inventa uma cultura da mestiçagem, uma apologia da mestiçagem, que pode ser valorizada ao se opor àquilo que é legitimamente negro”, ou seja, o negro continuaria a desempenhar um papel subalterno. Já Kabengele Munanga (2006, p. 88), apesar de reconhecer a importância de Freyre por “ter mostrado que negros, índios e mestiços tiveram contribuições positivas na cultura brasileira”, conclui que o mito da democracia racial “encobre os conflitos raciais”, impedindo que os membros das comunidades não-brancas tomem consciência dos “sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade” (MUNANGA, 2006, p. 89). Segundo ele, o discurso da “mestiçagem como etapa transitória no processo de branqueamento constitui peça central da ideologia racial brasileira” e acrescenta que a população negra no Brasil representa, “do ponto de vista da elite ‘pensante’, uma ameaça ao futuro da raça e da civilização brancas no país”. Para ele, o discurso da mestiçagem contém um “ideal implícito de homogeneidade” que não contempla a existência da população negra, o que o leva a falar de “etnocídio” (MUNANGA, 2006, p. 121). Para alguns, a categoria do mulato atrapalha a luta política. Eduardo de Oliveira e Oliveira tem um artigo com o sugestivo título de “O mulato, um obstáculo epistemológico” (apud MUNANGA, 2006, p. 16). O norte-americano Michael Hanchard, em seu livro Orfeu e o poder (edição em inglês 1994, tradução brasileira de 2001), afirma que “isto [a existência do mulato] poderia explicar parcialmente as dificuldades da mobilização política e social conjunta dos negros e pardos” (HANCHARD, 2001, p. 55. Ênfase do autor), ou seja, o pardo não se junta à luta política dos negros porque se sente diferente. Esta posição política racializada tem recebido muitas críticas. O cantor e compositor Caetano Veloso, em artigo publicado no New York Times (2000), afirma que a visão de Hanchard é uma simplificação da realidade brasileira que pode levar à “intolerância racial”. Os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant (1999) também atacaram o livro de Hanchard, criticando a influência imperialista norte-americana tanto nos estudos sobre questões etnoraciais do Brasil, levados a cabo por norte-americanos ou por intelectuais treinados nos Estados Unidos, quanto nos movimentos negros, o que estaria afetando a auto-imagem do Brasil. Em publicação recente, Yvonne Maggie, Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 71 71 6/11/2007 14:26:07 Gragoatá Eurídice Figueiredo Peter Fry e outros (2007) se insurgiram contra a implantação de políticas públicas baseadas na raça.6 O escritor João Ubaldo Ribeiro reforça esta posição contrária à importação de concepções dos Estados Unidos que põem em evidência o conflito e a separação entre raças, alertando para o fato de que esta política pode modificar a maneira como os brasileiros imaginam o país: de nação mestiça, que se orgulha disto, para nação de raças estanques, compartimentadas, segregadas. Apesar de ninguém negar a existência do racismo e a necessidade de combatê-lo, os opositores desta visão racializada defendem o fato de que o Brasil constitui exemplo único no mundo de uma mestiçagem plenamente realizada (RIBEIRO, 2005, p. D3). Vejo uma grande ironia na reivindicação racial da parte dos negros porque a diferença humana baseada na “raça” foi inventada pelos europeus como forma de dominação. Mas acompanho o raciocínio de Kwame A. Appiah, segundo o qual as identidades, complexas e múltiplas, nascem de uma oposição a outras identidades, baseando-se em formações discursivas imaginárias e não na razão (APPIAH, 1997, p. 245). No momento, parece oportuno para alguns adotar posições racializadas para lutar contra o racismo, mas este pode não ser o melhor caminho porque pode induzir a visões de gueto. Os discursos da transculturação Não pretendo discutir, no âmbito deste artigo, questões de políticas públicas como a implantação de cotas nas universidades. 6 72 Gragoata 22.indb 72 Enquanto Gilberto Freyre destacava a importância da mestiçagem na formação do povo brasileiro, passando do biológicoracial para o cultural, em outros países da América Latina outras construções identitárias se constituíam de modo a dar conta da heterogeneidade da região. O antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969) privilegiava o cultural no próprio termo empregado ao cunhar um neologismo para criar um novo conceito — o de transculturação — a fim de designar o processo de transformação por que passam as sociedades devido ao contato de povos diferentes. Em Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar [1940], ele explica que o neologismo —transculturação — vem substituir os conceitos que vigoravam até então (desculturação e aculturação), rígidos e unívocos, inadequados para exprimir a complexidade das transmutações ocorridas em todos os níveis: econômico, institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, psicológico, sexual e demais aspectos da vida (ORTIZ, 1963, p. 99). Ele destaca que os espanhóis, que provinham de diferentes regiões e culturas, já desgarrados, entraram em contato com uma natureza diferente e tiveram de se adaptar às novas realidades, o mesmo acontecendo com os africanos, originários de várias áreas e etnias, que tiveram de aprender nova língua e nova religião, numa situação de sincretismo. Além dos indígenas que aqui estavam, outros povos vieram para Cuba (pode-se ampliar Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:07 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações para toda a América), anglo-saxões, judeus, asiáticos, cada um deles aportando seus hábitos culturais. Através deste novo conceito de transculturação, Ortiz pretendia demonstrar que todas as culturas assim colocadas em contato se transformaram, ou seja, os europeus que vieram para a América mudaram tanto quanto os africanos e os indígenas, gerando novas formas culturais, novos sujeitos. Ele destaca que o que levou 4 milênios na Europa, em Cuba levou 4 séculos, ou seja, foi uma transformação extremamente rápida e violenta. Como se pode perceber, apesar de um eurocentrismo inevitável naquele momento histórico, que privilegiava a hegemonia da cultura européia implantada nos novos territórios, tanto Ortiz quanto Freyre insistem na idéia de mistura e de hibridismo de todos os povos envolvidos no projeto de criação das novas nações, sem desprezar nenhuma raça, sem deixar de levar em conta nenhum aporte, por mais “primitivo” que ele fosse. A transculturação evoluiu ao longo dos anos, dando origem a novas ressematizações, novas formulações e desdobramentos, dentre os quais se destacam pelo menos dois: o de transculturação narrativa, criada pelo crítico uruguaio Ángel Rama (19261983) e, mais recentemente, aquele introduzido no Quebec por escritores de origem italiana na revista Vice Versa, publicada a partir de 1983. Para Fulvio Caccia, a transculturação ou transcultura seria “como uma via de passagem que une os fenômenos de exílio e de imigração pela realização de um choque cultural” (apud HAREL, 2005, p. 78), ou seja, ela coloca em relação a condição do sujeito sedentário e a do migrante. Segundo Harel, os escritores ítalo-quebequenses foram os primeiros a fazer o luto de sua etnicidade a fim de promover um novo modo de representação do coletivo no Quebec. Para Harel, a transcultura não é sinônimo de harmonia, de fusão, nem de reconciliação; ela vai de encontro ao discurso apaziguador do multiculturalismo ao dar conta da relação assimétrica e imperfeita que existe na sociedade (HAREL, 2005, p. 75-76). O discurso transcultural não é um pensamento de oposição e muito menos um discurso de síntese dos contrários; ele escapa ao esquematismo das oposições, reivindicando antes um discurso paradoxal construído de oxímoros a fim de melhor modificar ou deformar as oposições binárias; ele tenta detectar as práticas intersticiais que caracterizam os atos de discursos inéditos. O discurso da transcultura no Quebec, por emanar das comunidades étnicas ou culturais, subverte tanto o nacionalismo patrimonialista do Quebec quanto a ideologia multiculturalista do governo federal. A transcultura, através da introdução do pensamento da diferença e do impuro, questiona toda pretensão universalista e ao mesmo tempo introduz a categoria dos afetos e das emoções no âmbito das questões políticas. Para Lamberto Tassinari, a transcultura é consciência Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 73 73 6/11/2007 14:26:07 Gragoatá Eurídice Figueiredo de si; sua capacidade de simbolizar sua própria ferida age como força fundadora da identidade, equilibrando assim a tentação de escapar do passado ou de se afundar nele (TASSINARI apud HAREL, 2005, p. 98) Fulvio Caccia considera relevante a relação com a língua, mais do que a relação com o território pois a língua é “habitada” de maneira diferente segundo se está em sua terra natal ou em outro espaço. Ele aborda a questão lingüística ao tratar do imigrante que escreve em uma língua que não é a sua; como Kafka, ele faria um uso intensivo da língua, porque o imigrante, ao aprender e escrever em francês (ou inglês), sofre interferências tanto de sua língua de origem (italiano e seus dialetos) quanto da outra língua falada no Quebec. Assim, o que caracteriza seu texto é a impureza, a mescla. A transculturação narrativa de Angel Rama designa o processo de transformação do romance na América Latina, no qual os escritores se apropriam de uma linguagem popular, a fim de superar um certo regionalismo de corte naturalista, desterritorializando a língua espanhola ou portuguesa, sem cair na armadilha de usar duas linguagens diferentes, a do narrador e a dos personagens. Como os escritores migrantes do Quebec, que recriam uma certa oralidade em que emerge uma mescla lingüística, os romancistas da transculturação latino-americana também usam uma estética da oralidade a fim de dar conta da heterogeneidade da região. Os romancistas transculturadores registram a perda do uso das linguagens dialetais e “abandonam muitos termos com os quais os ‘crioulistas’ salpicavam seus escritos, limitando-se às palavras de uso corrente”. Por outro lado, “compensam isso com a ampliação significativa do campo semântico regional e da ordem sintática (RAMA, 2001, p.219). Rama aplica seu conceito de transculturação narrativa a escritores de diferentes países (Garcia Marquez, Juan Rulfo, Guimarães Rosa), contudo detém-se mais na análise da obra do peruano José Maria Arguedas, que tem um trabalho estilístico ao transgredir a língua espanhola a partir da interferência do quéchua: “Eu resolvi o problema criando uma linguagem castelhana especial, que depois foi empregada com horrível exagero em trabalhos alheios” (ARGUEDAS, 1993, p. 215). De modo homólogo à crítica da mestiçagem no Brasil como discurso homogeneizador que apaga a diferença e mantém os privilégios das elites “brancas”, alguns críticos nos Estados Unidos (Moreiras, 2001, Mignolo, 2007) consideram problemáticas tanto a transculturação quanto outras noções homólogas, que revelariam uma visão reconciliadora e eurocêntrica, que pretende integrar os povos subalternos à corrente modernizadora representada pelo colonialismo europeu. Neste sentido, não existiria propriamente transculturação mas ainda e sempre aculturação o que, em termos políticos, corresponde à dominação. 74 Gragoata 22.indb 74 Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:07 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações Beverly (1998) considera que a transculturação funciona, tanto em Ortiz quanto em Rama, como uma teleologia, já que sua visada é a da formação da cultura “nacional”. Assim, o discurso da transculturação — como o discurso da mestiçagem — seria uma ideologia cultural do devir da América nos diferentes projetos de nação, seguindo a onda modernizadora ocidental. Este pensamento esbarra hoje na emergência de contra-discursos dos movimentos negros e indígenas7. Novos discursos da mestiçagem e do hibridismo no mundo globalizado Ver o artigo de Walter Mignolo neste número da Gragoatá, no qual ele desenvolve a proposta de desobediência epistêmica e desobediência política. 7 O discurso da mestiçagem no fim do século XX, por um deslizamento semântico que o esvazia de seu sentido biológico original, entra na moda, servindo para designar novos fenômenos provocados pela imigração nas sociedades multiculturais da América do Norte e da Europa, que vão do terreno da música até a cozinha, passando naturalmente pela questão literária. Alexis Nouss destaca a apropriação deste conceito pela indústria do entretenimento, da moda e da publicidade, designando superficialmente todo efeito de mistura ou cruzamento de culturas. Isto é mais visível no terreno da música, com todas as variações da denominada world music: mistura de ritmos, instrumentos ou sonoridades de música ocidental com tudo o que pode ser visto como “étnico”. Curiosamente, o termo “étnico” designa tudo o que não é branco (europeu ou norte-americano), como se étnico se aplicasse apenas ao Outro da Europa. Assim a música “mestiça” seria a mistura na qual entraria um pouco de música africana, afro-brasileira, afro-jamaicana, afro-americana, indiana ou árabe. François Laplantine e Alexis Nouss pretendem reinvestir positivamente o conceito de mestiçagem a fim de tirar dele as ressonâncias éticas para o mundo contemporâneo. Nouss (2005) considera a mestiçagem como um fenômeno que caracteriza a diáspora na Europa e na América do Norte, em que o sujeito pertence a duas culturas ao mesmo tempo, sem querer abrir mão de nenhuma delas, porque não recusa nenhuma identidade que possui, aceitando, ao contrário, identidades plurais. Neste sentido, pode-se dizer que o conceito de mestiçagem tal como empregado por Nouss aproxima- se da visão do escritor senegalês Léopold S. Senghor (1906-2001), que se dizia um mestiço porque nele coexistiam a herança africana e a educação francesa. Para definir sua situação, Senghor (apud LÜSEBRINK, 1993, p. 96) usou uma expressão oriunda da área da botânica, enxerto cultural (greffe culturelle). Recusando tanto a perspectiva estigmatizante da exclusão, que vem do contexto colonial, quanto a recuperação comercial, no contexto da globalização, Nouss aposta que a mestiçagem cria dispositivos de identificação e de reconhecimento socioculturais com tal flexibilidade que podem Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 75 75 6/11/2007 14:26:08 Gragoatá Eurídice Figueiredo funcionar como antídoto para as tentações de fechamento em guetos e de essencialismos étnicos. Este uso do conceito de mestiçagem me parece ser gerador de ambigüidades por provocar um deslizamento semântico que o esvazia de sentido, pelo menos tal como o entendemos na América Latina. Compartilho da opinião do historiador Serge Gruzinski (2001, p. 62), grande especialista da história do México, segundo o qual estes fenômenos da contemporaneidade, que ocorrem como fruto da diáspora de migrantes em direção aos países mais ricos, devem ser antes designados por conceitos como hibridismo ou hibridação, deixando o conceito de mestiçagem para as sociedades latino-americanas que foram constituídas como fruto da dupla mestiçagem biológica e cultural. Gruzinski afirma que este novo discurso da mestiçagem, no âmbito da globalização, não é inocente; ele corresponde a uma carência de novidade das elites que consumiam antigamente o exotismo e que hoje querem estar “na moda” em tudo o que ainda pode surpreender (GRUZINSKI, 2001). O hibridismo ou a hibridação designaria mais adeqüadamente as misturas que ocorrem nas sociedades multiculturais da Europa e da América do Norte, que preservam seus grupos “étnicos” em sociedades mosaicos, ou seja, a sociedade majoritária (branca) e hegemônica, que detém os poderes políticos e econômicos, convive com as culturas dos imigrantes. Vários aspectos da vida são atingidos pela entrada em circulação de novos sons, odores, sabores, comidas, imagens, cores, memórias, vindas de fora. No mundo latino-americano é o antropólogo argentino radicado no México, Néstor García Canclini, o autor que mais tem divulgado esta noção, desde a publicação de Las culturas híbridas, livro que foi amplamente traduzido e comentado. O autor faz uma análise tanto sincrônica quanto diacrônica, dando conta dos sincretismos, mestiçagens e hibridismos ao longo da história latino-americana, e ao mesmo tempo fazendo estudos de campo sobretudo nas zonas de contato entre hispânicos e anglos. Ele demonstra a existência de cruzamentos culturais operados pela diáspora e pelo exílio; explora também as diferentes temporalidades em comunidades indígenas e mestiças no México, com formas culturais pré-modernas, modernas e pós-modernas, simultaneamente; explora também os enlaces, às vezes surpreendentes, de elementos de cultura tradicional e de cultura de massa. Sua visada elimina qualquer vislumbre de uma pretensa autenticidade ou originalidade; ele dá conta, ao contrário, da impureza, da mescla — caráter desde sempre presente na história latino-americana — e sobretudo da impossibilidade de se funcionar de maneira pura e monolítica. No livro Diferentes, desiguais e desconectados, García Canclini trata de escapar da “exaltação indiscriminada da fragmentação e do nomadismo” (2005, p. 27) característica do pensamento teórico pós-moderno, numa 76 Gragoata 22.indb 76 Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:08 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações crítica direta a Michel Maffesoli, que uniformizaria indiscriminadamente todos os viajantes, sejam eles membros de uma elite cosmopolita, sejam eles pobres imigrantes. O hibridismo de Homi Bhabha, principal responsável pela divulgação e expansão do conceito no mundo de língua inglesa, tem uma inspiração literária pois ele o formula a partir dos estudos de Mikail Bakhtin sobre o romance. A construção híbrida é, para Bakhtin, “um enunciado que, de acordo com seus índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um só locutor, mas no qual se confundem, na realidade, dois enunciados, duas maneiras de falar, dois estilos, duas ‘línguas’, duas perspectivas semânticas e sociológicas” (BAKHTINE, 1978, p. 125). Com o apoio do pensamento de Derrida, Bhabha amplia a noção do híbrido para o terreno da história da colonização, recusando dicotomias e raciocínios binários, refutando, portanto, o cenário de antagonismos férreos entre colonizador e colonizado, opressor e oprimido, já que ele concebe um entre-lugar, um third space, espaço intervalar que permite a negociação de valores e de reconhecimentos. O discurso da crioulidade e da crioulização Edouard Glissant afirmava em L’intention poétique (1969) que a mestiçagem é uma condenação e que o mestiço se considera um fracassado porque ele é objeto de escândalo, já que existe vergonha de alguma coisa em sua origem, sua bastardia, ou abandono do pai ou alguma impossibilidade de realização. Para ultrapassar a vergonha, Glissant concebe a possibilidade de resgatar o valor do compósito dentro da perspectiva da Relação a fim de poder se chegar à mestiçagem. “A Relação carrega o universo à fecunda mestiçagem” (GLISSANT, 1969, p. 219). Em texto mais recente (1999), porém, Glissant salienta que a nova concepção da mestiçagem — mais metafórica e mais próxima do hibridismo — aboliu o mestiço (o bastardo). Como sua rejeição à mestiçagem residia no mal-estar provocado pelo histórico estatuto dúbio do mestiço, atualmente a mestiçagem lhe parece menos indigesta. “Neste contexto, a mestiçagem não aparece mais como atribuição maldita do ser, mas cada vez mais como uma fonte possível de riquezas e de disponibilidades. Mas creio que, à medida que a mestiçagem se generaliza, é a categoria do mestiço que cai” (GLISSANT, 1999, p.49). A mestiçagem está presente no pensamento de Glissant como algo incontornável no Caribe mesmo quando a palavra não é nomeada. Assim, ele retoma a idéia de simbiose de cultura com a junção das grandes raças do mundo, diferentemente da Europa que conheceu uma mestiçagem de povos igualmente brancos. A mestiçagem também está embutida no conceito de crioulidade, introduzido por Jean Bernabé, Raphaël Confiant e Patrick Chamoiseau no livro Eloge de la créolité, cujo primeiro Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 77 77 6/11/2007 14:26:08 Gragoatá Eurídice Figueiredo parágrafo — “Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiáticos, nós nos proclamamos Crioulos” (1989, p. 13) — remete à frase de Glissant de que os antilhanos deveriam reivindicar “as virtudes e as tradições tanto negras quanto indígenas e européias” (GLISSANT, 1969, p. 142) e evoca também uma frase de Simon Bolívar, cuja construção sintática é bem semelhante: “Não somos europeus, não somos índios....somos um pequeno gênero humano, possuímos um mundo a parte” (apud USLAR PIETRI, 1992, p. 82). Ao afirmar pela negativa, tanto Bolívar quanto os signatários do Eloge parecem querer afastar a possibilidade de existirem seres puros, europeus ou índios. Bernabé, Confiant e Chamoiseau parecem anunciar que a crioulidade é homóloga da mestiçagem (ao mesmo tempo biológica e cultural), ideologema que foi reivindicado pela América Latina como marca de sua identidade. Entretanto, não aceitam esta associação porque compreendem a mestiçagem como uma síntese, uma unicidade, o que recusam para a crioulidade que seria “uma especificidade aberta” (BERNABÉ, CHAMOISEAU, CONFIANT, 1989, p. 27). É preciso observar que, quando os signatários do Eloge se referem à zona das plantações, afirmam a mistura com o surgimento de uma “humanidade nova”, fruto, portanto, da mestiçagem (que eles denegam): Durante três séculos, as ilhas e as partes de continente que este fenômeno afetou foram verdadeiras usinas de uma humanidade nova, aquelas em que línguas, raças, religiões, costumes, maneiras de ser de todas as faces do mundo, se encontraram brutalmente desterritorializadas, transplantadas para uma região onde elas tiveram que reinventar a vida. (BERNABÉ, CHAMOISEAU, CONFIANT, 1989, p. 26. Grifo meu). Mesmo do ponto de vista estritamente genético os resultados da miscigenação são imprevisíveis, conforme se pode ver nas pesquisas empreendidas pelo geneticista Sérgio Sena, da UFMG. Causou uma certa sensação o resultado do exame de DNA de algumas celebridades brasileiras. Neguinho da Beija-Flor, por exemplo, que é negro, tem 67% de ancestralidade européia. 8 78 Gragoata 22.indb 78 Glissant retoma o conceito de crioulidade, afirmando, entretanto, preferir usar o termo de crioulização, mais apto a conferir um sentido de processo, já que a crioulidade exprimiria uma essência, como a latinidade, a francidade. Glissant opõe a mestiçagem, concebida como uma síntese, à crioulização, que seria “a mestiçagem sem limites, cujos elementos são multiplicados [e] os resultados imprevisíveis” (GLISSANT, 1990, p. 46). No entanto, considero esta crítica improcedente pois a mestiçagem, em seu duplo sentido biológico e cultural, é um processo muito mais amplo e muito mais universal, que afeta toda a vida das comunidades. Ao contrário do que afirma Glissant, o conceito da mestiçagem pode ser encarado como um longo processo que, não só não termina em uma síntese, como está em constante devir, com resultados imprevisíveis8. Se por um lado, a crioulização busca dar conta da transformação da sociedade, por outro, ela designa um fenômeno lingüístico-literário. Apesar de algumas denegações, os termos crioulidade e crioulização se baseiam na existência da língua Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:08 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações crioula e da utilização estilística que é feita pelos escritores: “Eu chamei este fenômeno de crioulização, naturalmente por causa das línguas crioulas” (GLISSANT, 1999, p. 50). Assim, a crioulização seria o processo de transformação da linguagem na narrativa antilhana, que se nutre dos contos crioulos e adota a economia da língua crioula no interior da língua francesa. A crioulização, que se distingue do crioulismo, pretende engendrar uma linguagem capaz de tecer as poéticas crioulas, barrocas, presentes na oralidade tradicional, em contraste com a economia da língua francesa, muito mais concisa, clara e clássica. Conclusão A crioulização, nesta acepção literária aplicada ao romance antilhano, remete à transculturação narrativa (Ángel Rama), à transcultura (Fulvio Caccia) e à construção híbrida de Bakhtin que inspirou o hibridismo de Bhabha. Todas estas noções lidam com a concepção bakhtiniana da coexistência de duas (ou mais) linguagens no romance. Constata-se uma flutuação e um deslizamento de um termo para outro nos textos de diferentes escritores. Até mesmo o conceito de mestiçagem — até recentemente tão vilipendiado — já deslizou para o terreno da literatura e da língua, em um claro processo de eufemização. Assim, por exemplo, Fulvio Caccia fala de “mestiçagem do francês” (apud HAREL, 2005, p. 101) para se referir a Patrick Chamoiseau, que usa uma linguagem particular ao empregar um francês contaminado pelo crioulo (que corresponderia, segundo o próprio Chamoiseau, à crioulidade). A romancista antilhana Maryse Condé fala de literatura mestiça, considerando que “a mestiçagem do texto se apóia no esforço do escritor de ser apreendido em sua dupla dimensão cultural” (CONDÉ, 1999, p. 211). Ela dá exemplos de alguns escritores africanos (Amadou Kourouma, Chinua Achebe, Wilson Harris) que contaminam o francês ou o inglês com línguas nativas, ou seja, a mestiçagem do texto de Condé neste caso revela-se homóloga dos conceitos de crioulização e de transculturação narrativa. Nos três casos é a própria forma do romance europeu que se transforma em países pós-coloniais pela incorporação de elementos que pertencem a outras tradições, fundamentalmente orais. Ao se referir a Proust, segundo o qual “os belos textos são sempre escritos em uma espécie de língua estrangeira” (apud CONDÉ, 1999, p. 214), Condé assinala que o enfrentamento da língua não é prerrogativa de escritores pós-coloniais pois o autor está sempre diante de uma língua que ele deve transgredir, penetrar, violar, para criar nela um texto literário. Ela evoca também Bakhtin, para quem o artista deve utilizar palavras habitadas pelas vozes dos outros. A mestiçagem do texto não é uma questão de etnicidade até porque todos se tornam mestiços no mundo contemporâneo. “O desafio, segundo Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 79 79 6/11/2007 14:26:09 Gragoatá Estes dois autores são citados com freqüência (às vezes de segunda mão); já Gilberto Freyre, embora seu Casa-grande & senzala ten ha sido traduzido em francês e inglês, é totalmente ignorado. 10 “Reversi ng Marx’s judgement, we could say that many parts of ‘T h i rd World’ today show Europe the image of its own future. On the positive side we could list features such as the development of multireligious, multi-ethnic and multi-cultural societies, the cross cultural life models and the multiplication of sovereignties. On the negative side we could point to the spread of the informal sector, the flexibilization of labour, the legal deregulation of large areas of the e c o n o my a n d wo rk relations, the growth of unemployment and underemployment [...]. And as you say, radicalization of inequalities, high rates of everyday violence a nd cri me” (BECK, 2007). 11 “En unas pocas centurias, the future will belong to the mestiza. Because the future depends on the breaking down of paradigms, it depends on the straddling of two or more cultures. By creating a new mythos — that is, a change in the way we perceive reality, the way we see ourselves, and the ways we behave — la mestiza creates a new consciousness” 9 80 Gragoata 22.indb 80 Eurídice Figueiredo ela, consiste em aceitar este fato e integrar este pluriculturalismo em nossas existências, o que certos escritores já aceitaram e integraram em seu texto” (CONDÉ, 1999, p. 217). Assim, sem querer apagar as diferenças e sem cair em amálgama simplificador, pode-se perceber que a transculturação narrativa latino-americana, deve-se ressaltar a maneira pela qual os novos discursos críticos, no âmbito do cultural e do político, começam a se aproximar de teorizações latino-americanas e caribenhas mais antigas (de Frantz Fanon, de Fernando Ortiz)9. Assim, conceitos como mestiçagem, hibridismo ou hibridação, transculturação ou ainda relações transculturais/interculturais entram em circulação para dar conta de mudanças profundas no centro dos grandes impérios ocidentais, que pareciam até então imunes a um processo tão característico da América Latina e do Caribe. É por isto que certos autores como Ulrich Beck (2007) falam de “Brazilianization of the world”10: do lado positivo, mestiçagem, multiplicidade étnica e cultural, sincretismo religioso; do lado negativo, heterogeneidade, desemprego, desigualdades sociais, violência. Beck usa o Brasil como símbolo da mestiçagem que caracteriza as transformações globais, indo assim ao encontro da afirmação de Glissant de que o mundo se criouliza. De maneira mais poética, Gloria Anzaldúa diz o mesmo ao se referir à figura da mestiça, numa visão profética: “En unas pocas centurias, o futuro pertencerá à mestiza”.11 (ANZALDÚA, 1999, p. 102). Abstract This text proposes a cross reading of discourses of mestiçagem and other discourses of transculturation, hybridism and creolization, mapping the ways they have been conceptualized throughout XXth century by some important authors in Latin America — continent emblematic of mestiçagem. It demonstrates, afterward, how they extrapolated this continent and have been used other contexts as a consequence of the flew of immigrants, in a diaspora that changes the aspect of countries such as Great-Britain, France, the United States and Canada, so far considered homogeneous, in ethnic and cultural point of view. Writers from different regions started to use these four terms, generally as synonymous. The text offers a reflection on the transit of these concepts in order to establish their historicity and to detect how the ressemantizations occurred. Keywords: mestiçagem; hybridism, creolization; transculturation. Niterói, n. 22, p. 63-84, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:09 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações Referências ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: The new mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1999. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai; a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:Contraponto, 1997. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz. Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. S. Paulo: Editora 34, 1994. ARGUEDAS, José Maria. Un mundo de monstruos y de fuego. Selección y introducción de Abelardo Oquendo. Mexico:Fondo de Cultura Económica, 1993. BAKHTINE, Mikhaïl. 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Rejeitando as noções de síntese e harmonia caras ao pensamento oficial e codificadas no século XIX pelos textos de von Martius, Bomfim constrói a identidade brasileira como um “entrelugar,” configurando-a através de uma espécie de psicomaquia entre de um lado um espírito independente, criativo e contestador, presente desde o inicio da nossa formação, e do outro um corpo (sócio-político) doente, contagiado pelo decadente colonialismo português. Seus escritos prefiguram muitas das idéias que seriam posteriormente desenvolvidas pela nata da intelectualidade brasileira durante a primeira metade do século XX, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado, Jr, entre outros. Palavras-chave: parasitismo, pós-colonial, identidade, entre-lugar, neo-ibérico Gragoatá Gragoata 22.indb 85 Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:10 Gragoatá Neste sentido é importante ressaltar que já em 1954 Dante Moreira Leite questionava a noção de caráter nacional, que considerava uma “ideologia”, isto é, “descrição que nem sempre se fundamenta em observações cientificamente conduzidas” (LEITE, 1959, p. 86). 2 Antes de escrever A América Latina: males de origem, Bomfim, médico por formação acadêmica, havia publicado dois trabalhos sobre zoologia e botânica. 1 86 Gragoata 22.indb 86 Eurídice Figueiredo Manoel Bomfim (1868-1932) foi ao mesmo tempo um inovador, cujo brilhantismo revolucionário freqüentemente nadava contra a corrente, e um homem do seu tempo, cuja obra se encaixa perfeitamente na sua época. Não resta dúvida que seus surpreendentes escritos antecipam diversos conceitos que associamos à teoria da dependência e ao chamado pensamento pós-colonial, e prefiguram muitas das idéias que seriam posteriormente desenvolvidas pela nata da intelectualidade brasileira durante a primeira metade do século XX, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado e Caio Prado, Jr, entre outros, embora destes só Gilberto Freyre parece ter lido o pensador sergipano. Ao mesmo tempo, contudo, sua reflexão sobre a questão da identidade brasileira não só faz parte de uma das tendências mais marcantes na nossa história intelectual a partir da virada do século passado – Manoel Bomfim foi um dos primeiros “intérpretes do Brasil” – como se escora também numa crença na possibilidade de se definir um suposto caráter nacional, bastante prevalente entre os modernistas, mas da qual, influenciados pelos ventos pós-modernos, nos vimos afastando há pelo menos três décadas.1 Impulsionado pela republicação de seus livros, o ressurgimento do interesse pela sua obra, de impressionante atualidade apesar de alguns inevitáveis resquícios de bolor intelectual, vem colaborando para restaurar a centralidade de Manoel Bomfim no pensamento social brasileiro do século XX. Neste ensaio vamos nos deter nos livros A América Latina: males de origem (1905) e O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929) com algumas pequenas incursões por duas outras obras, a saber, O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política (1930) e O Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1931). O primeiro dos livros não científicos de Manoel Bomfim2 parece, à primeira vista, destoar do resto de sua obra, na medida em que ainda trabalha com o conceito de “América Latina”, terminologia que o autor rejeitará subseqüentemente, chamando, antes, atenção para as diferenças entre a colonização portuguesa e a castelhana, e acentuando a heterogeneidade das nações “neoibéricas”, termo que geralmente prefere a “latino-americanas”. Uma leitura mais atenta de A América Latina: males de origem não deixa dúvida, contudo, que se encontra aí o embrião do seu pensamento, a ser aprofundado, antes que rejeitado, nos livros posteriores. Nesse livro Bomfim não propõe prioritariamente definir uma identidade latino-americana, na qual o autor nunca parece ter acreditado, mas refletir sobre as interconexões entre colonizadores e colonizados, revelar a formação dos laços de dependência entre a Europa e a América, e conceitualizar a possibilidade de uma marcha das sociedades latino-americanas na direção do progresso, apesar de todos os seus “males de origem”. Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:10 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações É, portanto, no primeiro livro que Bomfim formula o teorema sobre o Brasil que tentará provar ao curso de sua vida. O livro foi escrito como resposta aos europeus que, apoiados no cientificismo naturalista e no chamado racismo científico, consideravam os povos da América Latina como inferiores, incapazes de se auto-governar e condenados irremediavelmente ao atraso político, social e econômico. Bomfim se levanta contra essa ideologia, que, como sabemos, exercera enorme influência no Brasil, inclusive em intelectuais contemporâneos seus, do porte de Euclides da Cunha, Nina Rodrigues e Sílvio Romero.3 Rejeitando a exclusão dos latino-americanos pelos europeus como um “outro”, Bomfim insere a América Latina dentro da civilização ocidental, qualificando aquela, ao mesmo tempo, como vítima da colonização européia, caracterização cuja ambigüidade constitui um dos alicerces de seu argumento: Embora hegemônica, essa ideologia será contestada por alguns outros poucos intelectuais além de Manoel Bomfim, como Araripe Jr, em sua introdução a Esboços e fragmentos de Clóvis Beviláqua (1899), Antônio Torres em O problema nacional (1914) e Álvaro Bomilcar em O preconceito de raça no Brasil (1916). Para uma discussão mais aprofundada desses “dissidentes”, consultar o terceiro capítulo do livro Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro de Thomas E. Skidmore. 4 Ver meu ensaio “Literature and Citizenship: From Euclides da Cunha to Marcos Dias”, especialmente as páginas 15-17. 5 O termo ja havia sido utilizado por Oliveira Martins desde os anos 70 do século XIX para desig nar uma forma de vida improdutiva, dependente do Estado. Em Portugal e o socialismo, Oliveira Martins ataca o “parasit ismo aristrocrático-tolo dos filhos da classe média pela educação universitária” (MARTINS, 1953, p. 30). Agradeço essa referência ao Professor Sérgio Campos Matos da Faculdade de Letras de Lisboa. Mas, no nosso caso, participando diretamente da civilização ocidental, pertencendo a ela, relacionados diretamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao mesmo tempo dos mais atrasados, e por conseguinte dos mais fracos, somos forçosamente infelizes. Sofremos todos os males, desvantagens e ônus fatais às sociedades cultas, sem fruirmos quase nenhum dos benefícios com que o progresso tem suavizado a vida humana. (BOMFIM, 2005, p. 53) 3 É a partir da interdependência histórica entre a Europa e a América Latina que o autor construirá a dependência moderna dos latino-americanos em relação aos europeus. Os fundamentos do problema repousam no parasitismo colonial, resultante da atividade depredadora da Europa, marcadamente dos países ibéricos, no Novo Mundo, com a conivência das elites locais. Para Bomfim, o domínio português “só veio a diferenciar-se de uma pirataria comum em ser uma rapina organizada por um Estado político” (BOMFIM, 2005, p. 96). Surgem aí, portanto, as raízes de uma verdadeira mentalidade pós-colonial, que será retomada nos livros posteriores. Bomfim revela, assim, um pensamento bastante avançado para a época, ainda ausente, por exemplo, mesmo em um contemporâneo politicamente progressista e combativo como Euclides da Cunha. Diferentemente de Bomfim, Euclides não entendia, conforme indiquei em outro texto, que a trágica exclusão do sertão não advinha simplesmente de uma espécie de falha moral das elites brasileiras, mas estava intimamente relacionada com a posição do Brasil numa ordem mundial, cuja dinâmica exige que alguns países exerçam um papel periférico e dependente, compreensão que, como Roberto Schwarz demonstrou em Um mestre na periferia do capitalismo, Machado de Assis já possuía.4 Um dos grandes achados retóricos de Manoel Bomfim, a metáfora do parasitismo,5 fundamental no pensamento do autor, merece atenção especial. Médico e cientista por formação, Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 87 87 6/11/2007 14:26:11 Gragoatá Eurídice Figueiredo Bomfim encontra inspiração para essa metáfora na biologia, mais especificamente nas pesquisas sobre um curioso animal marinho, o Chondracanthus gibbosus. Originalmente um crustáceo, esse animal se degrada num organismo semelhante a um verme ao se tornar uma parasita. Fixado a um outro animal, seus órgãos se atrofiam e o Chondracanthus perde praticamente toda a sua atividade vital, degenerando-se num organismo inferior, e impedindo que o animal que o nutre também se desenvolva. Bomfim traça uma analogia entre a involução do Chondracantus e a história dos países ibéricos, especialmente nas relações com suas colônias. Apesar de um passado glorioso, marcado por uma impressionante incorporação de povos, raças, tradições e costumes, no início da Idade Moderna tanto a Espanha quanto Portugal sucumbem à cupidez que acompanhou a expansão ultramarina e passam a viver parasitariamente dos frutos das suas conquistas. A colonização das Américas se faz, para a infelicidade das futuras nações neo-ibéricas, já durante a decadência peninsular, marcada pela inércia do mercantilismo: Quando começou a colonização da América, já as nações peninsulares estavam viciadas no parasitismo, e o regime estabelecido é desde o começo um regime preposto exclusivamente à exploração parasitária. Desde o início da colonização, o Estado só tem um objetivo: garantir o máximo de tributos e extorsões. Concedem-se as terras aos representantes das classes dominantes, e estes, aqui – pois não vêm para trabalhar – escravizam o índio para cavar a mina ou lavrar a terra. Quando ele recalcitra ou se extingue, fazem vir os negros africanos, e estabelece-se a forma de parasitismo social mais completa, no dizer de Vandervelde (BOMFIM, 2005, pp. 128-129). Uso aqui o termo alegoria no sentido que lhe confere Walter Benjamin, incluindo suas conexões com ruínas e f rag ment ação, por oposição à unidade do símbolo. Ver As origens do drama barroco. : “Enquanto no símbolo a destruição é idealizada e o rosto transfigurado da natureza é fugazmente revelado sob a luz da redenção, na alegoria o observador é confrontado com a facies hippocratica da história, vista como uma paisagem petrificada e primordial” (BENJAMIN, 1977, p. 166). 6 88 Gragoata 22.indb 88 Na alegoria6 de Bomfim, todas as classes sociais são infectadas, num círculo vicioso de degradação sistemática, resultado do “parasitismo depredador” (BOMFIM, 2005, p. 106) institucionalizado pelos colonizadores ibéricos, gerador de vícios que se perpetuariam por séculos: O importante era recolher a riqueza e digeri-la. Todo o mundo correu à obra, todas as classes se incorporaram ao parasitismo. O Estado era parasita das colônias; a Igreja parasita direta das colônias, e parasita do Estado. Com a nobreza sucedia a mesma coisa: ou parasitava sobre o trabalho escravo, nas colônias, ou parasitava nas sinecuras e pensões. A burguesia parasitava nos monopólios, no tráficos dos negros, no comércio privilegiado. A plebe parasitava nos adros das igrejas ou nos pátios dos fidalgos. (BOMFIM, 2005, p. 119) Da mesma forma que a parasita é inseparável do organismo que a alimenta, a mentalidade parasitária contamina tanto a Metrópole quanto as colônias: “A colônia é parasitada; mas mesmo dentro da colônia, o parasitismo se exerce. Em suma, a vítima das vítimas é o escravo, e este é o único que não tem voz, nem para queixar-se!” (BOMFIM, 2005, p. 131). Ao contrário das Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:11 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações nações do norte da Europa, a Espanha e Portugal, paralisadas em sua evolução pelo pernicioso sistema mercantilista, perdem o bonde da modernidade: Enquanto os outros povos, seguindo a evolução normal das sociedades ocidentais, passavam do viver militar ao regime industrial, e entravam, na fase verdadeiramente produtora, as nações ibéricas transformavam-se definitivamente em parasitas sedentários; cerravam os olhos e tapavam os ouvidos ao progresso científico, aferravam-se a esse viver que lhes parecia o ideal – sugar! sugar! sugar!... E de decadência em decadência, degenerando e retrogradando sempre, chegaram a perder todo o caráter primitivo, toda a originalidade própria – estética e filosófica. (BOMFIM, 2005, p.131) Ao mesmo tempo e apesar de um certo anti-americanismo, manifestado sobretudo nas suas veementes críticas à Doutrina Monroe,7 Bomfim contrasta a triste situação das nações neoibéricas, especialmente o Brasil, com a situação bem mais positiva dos Estados Unidos, duas nações aparentemente tão semelhantes e no entanto tão diferentes. Assim, Bomfim inaugura a tendência na história intelectual brasileira de olhar para o Brasil e os Estados Unidos como imagens especulares, tendência essa que informará o pensamento de Oliveira Lima, e eclodirá na obra de Gilberto Freyre, Érico Veríssimo, Vianna Moog, Richard Morse e mais recentemente Roberto daMatta8: Pa ra uma mel hor compreensão deste aspecto do pensamento de Bomfim, examinem-se as páginas 48-51, inclusive as notas de rodapé, de A América Latina: males de origem. 8 Refiro-me a livros como América latina e América ingleza: a evolução brazileira comparada com a hispano-americana e com a anglo-americana de Manuel de Oliveira Lima, Casa grande e senzala de Gilberto Freyre, Gato preto em campo de neve e A volta do gato preto de Érico Veríssimo, Bandeirantes e pioneiros de Clodomiro Vianna Moog, O espelho de Próspero de Richard Morse e Tocquevillianas de Roberto da Matta. Na América do Norte, os estados do Sul estão, hoje, em situação bem próspera, apesar da escravidão. É que as colônias inglesas puderam organizar-se desde logo segundo convinha aos seus próprios interesses, e não foram vítimas de um parasitismo integral, como esse que as metrópoles ibéricas estabeleceram para suas colônias. Aqui os maus efeitos da escravidão se complicaram e se agravaram com as desastrosas conseqüências dos monopólios e privilégios – os exclusivos mercantis, instituídos sobre o comércio colonial, as restrições fiscais, o sistema bárbaro dos tributos, o embaraço, a proibição formal às indústrias manufatureiras, tornando-se impossível qualquer esforço de iniciativa particular, pela interdicão de toda inovação progressista. (BOMFIM, 2005, p. 150) 7 Ao utilizar a metáfora da parasita para explicar a formação e identificar as origens da situação atual das nações latinoamericanas, Manoel Bomfim realiza uma das críticas mais eloqüentes das conseqüências nefastas do mercantilismo ibérico, tais como a desvalorização do trabalho e a perpetuação do sistema escravocrata como entraves à modernização, prefigurando o Sérgio Buarque de Holanda de Raízes do Brasil (1936) e o Caio Prado, Jr. de Formação do Brasil contemporâneo (1942). Ao mesmo tempo, assumindo uma postura liberal clássica, apesar de uma tendência generalizada ao socialismo no seu pensamento, o autor demonstra uma mentalidade afinada com o pensamento econômico mais moderno, que, com a exceção de algumas poucas Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 89 89 6/11/2007 14:26:12 Gragoatá Eurídice Figueiredo figuras como João Pandiá Calógeras (1870-1934) e Rui Barbosa (1849-1923)9, era raro na jovem república brasileira do café com leite, dominada pelo protecionismo governamental em prol dos interesses rurais, especialmente os cafeeiros. Paradoxalmente, contudo, Bomfim não deixa de ser um homem de seu tempo. A metáfora do parasitismo está vinculada a uma concepção biológica da sociedade, bastante comum na época. Quando Bomfim, para justificar a adequação dessa metáfora, escreve que “as sociedades existem como verdadeiros organismos, sujeitos como outros a leis categóricas” (BOMFIM, 2005, p. 57), ouvimos uma melodia claramente positivista malgrado os ataques de Bomfim à filosofia positiva. Essa melodia reaparece na sua fé inabalável no progresso, com base na reforma da sociedade, a ser atingida especialmente através de suas propostas educacionais.10 O livro tem um fecho que, com seu desbragado ufanismo e suas veleidades parnasianas, é digno de Afonso Celso e Olavo Bilac11: Seria bom lembrar que, apesar do paralelismo aqui traçado, Manoel Bomfim tinha pouca simpatia por Rui Barbosa, tendo-se inclusive demitido de sua posição de colaborador de A Nação, de que era redator-chefe seu grande amigo Alcindo Guanabara, por ter esse periódico publicado um discurso de Rui Barbosa, cujo pensamento católico Bomfim julgava ser incompatível com a proposta socialista do jornal. Para uma narrativa documentada dessa polêmica, consultar o livro O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim de Ronaldo Conde Aguiar, pp. 261267. 10 Sobre a aversão de Bomfim ao positivismo, ver AGUIAR, 2000, pp. 141-146. Segundo Aguiar os maiores pontos de discordância seriam a tendência positivista a ver a educação como meramente utilitária e o descaso dos positivistas pela educação elementar generalizada, uma das obsessões de Bomfim. 11 É bom lembrar que Olavo Bilac foi amigo e colaborador de Bomfim, tendo os autores escrito a quatro mãos o livro Através do Brasil, destinado ao curso médio. 9 90 Gragoata 22.indb 90 Deixemos às gentes conservadoras e refletidas o condenar e desprezar a utopia – Marthas, absorvidas na banalidade comum, que o uso já mecanizou; queiramos o que será a glória de amanhã: uma América feliz, na clemência de seu clima, no esplendor deste céu, inteligente, laboriosa e pacífica na comunhão social, meiga e fraterna na expansão natural da instintiva cordialidade, apartada dos egoísmos ferozes que aviltam outras civilizações. Que “os mortos enterrem seus mortos”; voltemo-nos para a ação fecunda, demos à vida toda a nossa atividade, e ela nos levará para o progresso e para a vitória, como leva a árvore para o alto e para a luz. (BOMFIM, 2005, p. 383) Essa conclusão mal oculta, porém, um espinhoso problema conceitual, ao qual Bomfim retornará em O Brasil na América: como conciliar essa visão utópica de uma América Latina feliz no porvir com os efeitos supostamente degenerativos do parasitismo. Sem maiores explicações, o autor propõe que a colônia “não participa da degeneração integral que invade a metrópole” (BOMFIM, 2005, p.342) e que a maior parte da colônia “protesta logo contra o regime, põe-se em oposição a ele, resiste, por conseguinte, à marcha degenerativa” (BOMFIM, 2005, p.343). Ao mesmo tempo Bomfim rejeita o determinismo característico das concepções cientificistas da sociedade, sugerindo que “o parasitismo social não é irredutível como o parasitismo biológico” (BOMFIM, 2005, p.343) e que o parasitismo se pode regenerar desde que sejam reconhecidas as causas da degeneração. Ao pretender identificar os “males de origem,” o livro de Bomfim configura-se, portanto, como verdadeira arma de combate, inserindo-se no processo educacional que o autor julga ser imprescindível para a transformação da sociedade: Reclamando a difusão da instrução, a prática da ciência, como o meio de curar os nossos males essenciais, e de avançar para Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:12 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações o progresso, não queremos atribuir à cultura intelectual nenhuma virtude miraculosa, senão a importância que ela teve e tem na história da civilização. Demos que a instrução não seja o objetivo único do progresso; não se poderá negar, porém, que é um dos seus objetivos, um dos fins e, ao mesmo tempo, um meio – o meio principal (BOMFIM, 2005, p.363). É importante ressaltar, todavia, que essa regeneração é apresentada como dependendo igualmente de um suposto caráter nacional, intrínseco à identidade neo-ibérica. Em contraste com sua análise do parasitismo, o autor aponta uma série de caracteres potencialmente positivos, que teriam sido paradoxalmente transmitidos pelos ibéricos aos neo-ibéricos e que contrabalançariam a influência do parasitismo, possibilitando essa transformação. Prefigurando Sérgio Buarque de Holanda, Bomfim destaca com orgulho a plasticidade ibérica, expressa numa enorme capacidade de assimilação: “Este poder de assimilação deriva de uma grande plasticidade intelectual e de uma sociabilidade desenvolvidíssima, qualidades preciosas para o progresso, e mercê das quais estas nacionalidades seriam hoje entre as primeiras do Ocidente, se não tivessem derivado para o parasitismo que as degradou” (BOMFIM, 2005, p.259). Opondo-se à ideologia dominante em sua época, Bomfim rejeita os conceitos de raças superiores e inferiores, nega que a mistura de raças conduza à degeneração, afirma a ausência de preconceito racial no Brasil, e faz uma apologia da mestiçagem que só será retomada com a mesma eloqüência três décadas depois por Gilberto Freyre. Todavia, apesar de sua compreensão bastante avançada da relação entre colonizador e colonizado, o que Bomfim não consegue entender, preso ainda ao essencialismo do conceito de caráter nacional – e que, obviamente, o diferencia dos críticos pós-coloniais contemporâneos – é que a capacidade de resistência que ele mostra existir desde o início da colonização provém não do caráter nacional, mas sim das contradições inerentes à própria situação colonial. Essas questões são detalhadamente trabalhadas em O Brasil na América. Enquanto o ponto de partida do livro de 1905 era uma reflexão sobre a experiência neo-ibérica na sua totalidade, o livro de 1929 focaliza no Brasil em suas relações com o resto da América. Apesar dos traços comuns, Bomfim enfatiza as diferenças entre as nações neo-ibéricas, postulando, desde o prefácio, a excepcionalidade do Brasil: “verificado o que é comum, torna-se indispensável destacar o que possa distinguir o Brasil entre os outros neo-ibéricos” (BOMFIM, 1997, p. 27). Com grande presciência, Bomfim propõe que os traços que supostamente unem os “chamados latino-americanos são, tão-somente, conseqüências necessárias de formação colonial” (BOMFIM, 1997, p. 33) e insiste que o próprio termo América Latina mal esconde interesses neoNiterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 91 91 6/11/2007 14:26:12 Gragoatá Eurídice Figueiredo coloniais combinados a uma ignorância quanto às verdadeiras condições da latinoamericanidade: Expressão de tanto uso, essa América Latina deve servir, sensatamente, para designação geográfica – do grupo de nações formadas por ibéricos, num regime colonial de subordinação e dependência imediata, e que logo se degradou em parasitismo, despótico, antiprogressista. No mais, é designação nula, própria somente para a tecnologia fútil dos que, aceitando a divisão fácil do Ocidente em – latinos, germânicos, eslavos… voltados para esse lado, concluem, que deve haver uma América Latina, para contrapor-se à América inglesa (BOMFIM, 1997, p. 32). Bomfim estabelece a excepcionalidade brasileira através de um sistema de diferenças históricas e culturais. A mais básica destas, que será retomada por Sérgio Buarque de Holanda em sua tipologia do semeador e do ladrilhador, remonta às nossas origens peninsulares. Diferentemente dos castelhanos, o “gênio português”, expressão utilizada freqüentemente por Bomfim, manifesta-se na “relativa superioridade política, e uma acentuada tendência para a unificação nacional explícita” (BOMFIM, 1997, p. 45), na “tenacidade . . . a essência do temperamento português” (BOMFIM, 1997, p. 49), bastante diverso do cavalheirismo espanhol (BOMFIM, 1997, p. 75), na sua modernidade pioneira (“Portugal foi a nação em que primeiro se revelou esse espírito moderno” BOMFIM, 1997, p. 53), na sua adaptabilidade, avessa “à rígida intransigência e à sobranceiria do castelhano” (BOMFIM, 1997, p. 76), na “aparente moleza de atitudes do português, apenas arrastadamente obstinado, quando o espanhol é rude e arrogante” (BOMFIM, 1997, p. 76) e até mesmo na invenção da própria noção moderna de Império: Portugal, esse, teve a concepção de um Império em exploração ultramarina; esboçou-o, lançou-lhe os alicerces, e tê-lo-ia realizado, se não se corrompesse pela grandeza mesma a que se elevara. Decaiu; outros o imitaram, ao mesmo tempo que os espoliavam, e coube à Inglaterra o papel de alcançar, em plenitude de efeitos, os bons proventos de um tal Império, antevisto e preparado pelo gênio português (BOMFIM, 1997, p. 56). Em grande parte devido ao seu caráter, os portugueses criam na América uma “nova sociedade” (BOMFIM, 1997, p. 109) bastante diferente daquelas estabelecidas pelos espanhóis. Essa sociedade desde o início possui características que a unificam e que, apesar das bases portuguesas da formação do Brasil, distinguem desde cedo os brasileiros dos seus ancestrais lusitanos, como indica a utilização do nome próprio Brasil desde os primórdios da história brasileira: Exemplo único, por toda esta América, o Brasil é a nação que existe para o mundo, no signo de um nome seu, muito antes de poder possuir soberania própria. Quase toda a história colonial 92 Gragoata 22.indb 92 Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:13 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações se faz conduzida por esse nome, que, se existe, é porque corresponde à necessidade de indicar uma realidade – a unidade ideal, superior às contingências e vicissitudes da colonização (BOMFIM, 1997, p. 336). Em outras palavras, o lusitanismo brasileiro ao mesmo tempo é fator que diferencia os brasileiros dos outros povos neo-ibéricos, e, dada as suas características únicas, permite, paradoxalmente, que o Brasil logo se distinga da pátria mãe: “desde cedo nos individualizamos, por evolução inconfundível” (BOMFIM, 1997, p. 339). Ao contrário das colônias hispânicas, que teriam reproduzido a Espanha no Novo Mundo, idéia que reaparecerá em Sérgio Buarque de Holanda, “o Brasil não é apenas um Portugal emigrado” (BOMFIM, 1997, p. 107), na medida em que a nova sociedade criada pelos portugueses nos trópicos teria sido capaz de integrar uma multiplicidade de elementos.: “O encontro de povos, aqui, foi mais que o simples domínio, realizado nas colônias espanholas. Foi, desde logo, absorção dos naturais para a formação da população colonial” (BOMFIM, 1997, p. 107). Apesar de concordar com Carl Friedrich Philip von Martius e outros que “Portugal terá sido o fator dominante, o determinante, na formação do Brasil” (BOMFIM, 1997, p. 107), Bomfim detecta no Brasil um hibridismo fundamental, muito mais profundo e complexo que a mera mistura de raças.12 Esse hibridismo conduz ao aparecimento de algo que, nas palavras de Bomfim, é “novo e próprio” do Brasil, e que o autor condensa na expressão “gênio brasileiro” (BOMFIM, 1997, p. 36), conceito que ao mesmo tempo incorpora e se sobrepõe ao freqüentemente mencionado “gênio português”: “No Brasil, o povo não poderia ser a simples soma de português e índio, porque algumas das mais sensíveis qualidades de caráter, num e no outro, são valores de antagonismo. Como, porém, o produto se define numa combinação, os próprios antagonismos prevalecem . . .” (BOMFIM, 1997, p. 110). 13 Ao contrário de Gilberto Freyre, contudo, Bom fim valoriza sobretudo o papel do indígena, negando que a influência africana tenha sido tão importante na formação inicial do Brasil. Tais dissertadores discorrem como se fora possível que tradições se encontrassem, conservando-se impermeáveis entre si, sem reciprocidade de influxos, sem conseqüências na vida social e intelectual que se originou deste encontro. Ora, em vez disto, todos o sabemos: mais do que os sangues, caldeiamse as tradições logo que as raças diferentes se encontram. Combinam-se as qualidades de espírito e completam-se as respectivas manifestações, numa expressão vivamente nova e original (BOMFIM, 1997, p. 36). 12 Essa posição, bastante mais radical que a dos comentaristas que o precedem, resulta da própria concepção de raça na obra de Manoel Bomfim. Antes de Gilberto Freyre, que geralmente é apontado como o introdutor do culturalismo no pensamento antropológico brasileiro, Bomfim já propunha que raça é inseparável de cultura: “A verdadeira ciência, a que se faz na observação criteriosa e desapaixonada dos fatos, tem proclamado já que o valor atual das raças é, apenas, valor de cultura” (BOMFIM, 1997, p. 196)13. Partindo do princípio de que não existe preconceito racial no Brasil, lugar comum no pensamento brasileiro Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 93 93 6/11/2007 14:26:13 Gragoatá Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, descrevendo a “plasticidade social” da colonização portuguesa, aponta “a ausência completa, ou praticamente completa, entre eles [os colonizadores portugueses], de qualquer orgulho de raça” (HOLANDA, 1982, p. 22). Gilberto Freyre, logo no primeiro capítulo de Casa grande e senzala, comenta que “o Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça” (FREYRE, 1992, p. 29). 15 Aqui, mais uma vez, Manoel Bomfim prefigura Sérgio Buarque de Holanda, que defendia a tese de que o Brasil só conseguiria tornar- se uma nação verdadeiramente moderna livrando-se dos resquícios do personalismo e do patrimonialismo ibéricos. 14 94 Gragoata 22.indb 94 Eurídice Figueiredo da primeira metade do século XX14 e, ao mesmo tempo, se posicionando abertamente contra o arianismo de Oliveira Viana, Bomfim caracteriza a sociedade brasileira como intrinsecamente sincrética e postula a miscigenação como benéfica: “nos casos da população brasileira, em vez de ser um mal, [a miscigenação] é uma vantagem” (BOMFIM, 1997, p. 167). Bomfim aponta a mestiçagem como o fundamento da identidade brasileira, resumindo seu pensamento racial na fórmula de que o Brasil se individualiza por uma “caboclagem tinta de cristianismo” (BOMFIM, 1997, p. 109). O culturalismo de Bomfim, em que raça é mais alma do que corpo, é consistente com a valorização dos elementos espirituais na obra do autor sergipano. As qualidades do gênio português constituem fator positivo na formação do Brasil. O que Portugal introduz de negativo provém de fatores materiais: o parasitismo gerado pelo sistema mercantil e corporificado na Casa de Bragança, que degrada o gênio português e degenera o corpo brasileiro. À semelhança de Euclides da Cunha, Bomfim constrói a imagem de um Brasil partido. Mas enquanto para Euclides o Brasil estava fraturado entre o litoral e o sertão, para Bomfim o Brasil está dividido pela sua dupla e contraditória herança de uma tradição heróica, que remonta aos primórdios da nação portuguesa, e da decadente tradição bragantina, perpetuada pelas elites nacionais. O Brasil é resultado de uma espécie de psicomaquia entre, de um lado, um espírito independente, criativo e contestador, presente desde o início da nossa formação, e, de outro lado, um corpo sócio-político doente, contagiado pelo decadente colonialismo português. A identidade brasileira se configura, assim, como um entre-lugar, dividida pela dupla influência de um espírito benfazejo e de um corpo degradado: O Brasil, esse teve de passar por toda uma luta íntima, do organismo infectado, luta além dos simples embates sangrentos, para eliminar das gerações os feitos da infecção; luta que se perpetua, porque a depuração é lenta, e porque a vitória efetiva seria a formação de dirigentes doutra escola, que não essa do Estado português-bragantino que nos ficou (BOMFIM, 1997, p. 384). Vem daí o crescente pessimismo de Bomfim quanto ao futuro do Brasil. Apesar da aparente superioridade portuguesa no processo de criação de uma nova sociedade nos trópicos, outras nações neo-ibéricas foram adiante, em parte porque conseguiram se livrar de grande parte da herança ibérica15: Uma Argentina, um Chile, e mesmo outras, de gentes castelhanas, são verdadeiras nações modernas, enquanto que nós, apesar de quanto trabalhemos e elevemos o espírito, continuamos a ser um povo possuído e levado por maus feitores, espoliado em corpo e alma, sem direito, sequer, de esperar e preparar o futuro, porque este se absorveu neles, nesses diriNiterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:13 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações gentes que esgotaram o próprio porvir, com empréstimos que consomem e os desesperos e colapsos que semeiam (BOMFIM, 1997, p. 384). O Brasil, entretanto, permanece suspenso entre as características benéficas e maléficas das nossas origens portuguesas enquanto as elites brasileiras, herdeiras do parasitismo lusitano, permitiram que fôssemos relegados a uma situação neocolonial. Esse amargurado pessimismo manifesta-se em livros posteriores embora Bonfim nunca abandone completamente sua utopia nacionalista. Em O Brasil na história Bomfim demonstra como a história brasileira não só se fez como também foi escrita para atender aos interesses dos dominadores em detrimento dos dominados, reproduzindo em moto perpétuo as origens coloniais da formação brasileira. Interessado em mostrar que existe uma outra história, Bomfim constrói sua versão em oposição a Varnhagem, que, segundo o autor, não passa de um “brasileiro de encomenda” e um “historiador mercenário” (BOMFIM, 1930, p. 122) a serviço da Casa de Bragança e das elites brasileiras. Diferentemente, Bomfim traz para o centro de sua historiografia eventos geralmente considerados marginais ou secundários na linha evolutiva da história oficial brasileira, como a Revolução Pernambucana de 1817, que possam servir como exemplos de possíveis transformações sociais e políticas. Em O Brasil nação, Bomfim critica as elites políticas e militares, enquanto adota uma postura abertamente revolucionária, bem diversa, portanto, do reformismo ilustrado do primeiro livro. Fazendo questão de se distanciar do tenentismo e do getulismo, no posfácio do volume, datado de 1931, Bomfim faz uma análise impiedosa da Revolução de 30, ressaltando o continuísmo desta com os ideais da Velha República, configurada como herdeira do parasitismo colonial. Bomfim caracteriza a Revolução de 30 como uma disputa doméstica entre os oligarcas de Minas Gerais e São Paulo, uma “agitação preparada no comum da politiquice tradicional, e [que] assim tangida, não há que esperar nenhuma renovação revolucionária” (BOMFIM, 1996, p. 583). Mantendo sua fé no povo brasileiro, “plástico, facilmente adaptável, com essa maravilhosa aptidão dos tangedores de rebanhos a desbravar caatingas, e dos bandeirantes a galgar serras e transpor os rios” (BOMFIM, 1996, p. 588), o autor propõe uma verdadeira revolução que reformasse completamente a sociedade brasileira, e cujo programa incluiria a redistribuição de terras, a educação popular, a reorganização do Banco do Brasil em uma espécie de banco de desenvolvimento, o melhor aproveitamento do nossos recursos agrícolas, de nossas reservas e do nosso potencial hidroelétrico, a universalidade da saúde, higiene e moradia, e a justiça social. Essas transformações, destinadas a curar o infectado corpo social, Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 95 95 6/11/2007 14:26:14 Gragoatá Eurídice Figueiredo econômico e político, desembocariam na realização última das potencialidades embutidas no espírito nacional: “É este o caos santo, donde surgirá o que, na sua hora, definirá explicitamente a alma brasileira” (BOMFIM, 1996, p. 589). Mesmo com seu espírito lutador, Manoel Bomfim não conseguiu vencer a longa e penosa batalha com um câncer de próstata, que finalmente o derrotou em 22 de abril de 1932 – coincidentemente, para esse inveterado nacionalista, o dia em que se celebravam os quatrocentos e trinta e dois anos do descobrimento do Brasil – e, portanto, não pôde testemunhar como a modernização do Brasil iniciada na década de 30 realizaria alguns de seus sonhos sem, paradoxalmente, conseguir se livrar completamente do parasitismo secular. No entre-lugar em que continuamos a viver, o pensamento de Bomfim, apesar de algumas inevitáveis marcas de envelhecimento, mantém sua relevância e atualidade. Abstract The works of Manoel Bomfim (1868 1932) demonstrate a profound and forward-thinking understanding of the complex and ambiguous relationship between the Iberian nations and “neo-Iberians,” terminology that Bomfim prefers to “Latin Americans.” Bomfim denies the unique place occupied by Brazil within the social, political, and cultural landscape of the Lusophone world in terms of a dialectic between a mentality conscious of its difference (qualified as post-colonial as early as the 17th century) and the persistent “parasitism” of the Iberian heritage supposedly infecting our political and social body, and leaving dire consequences from which we have been unable to completely recover. Rejecting notions of synthesis and harmony dear to official thought and codified in the 19th century writings of von Martius, Bomfim constructs Brazilian national identity as an “in-between space,” configured as a kind of psychomachy between an independent, creative, contestatory spirit on one hand, and a diseased (socio-political) body, contaminated by the decadent Portuguese colonialism on the other. Bomfim’s writings prefigure many concepts that would be developed by the cream of the Brazilian intelligentsia during the first half of the 20th century, including such seminal thinkers as Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, and Caio Prado, Jr., among others. Keywords: parasitism; post-colonial; identity; in-between space; neo-Iberian. 96 Gragoata 22.indb 96 Niterói, n. 22, p. 85-98, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:14 Os discursos da mestiçagem: interseções com outros discursos, críticas, ressematizações Referências AGUIAR, Ronaldo Conde. 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Ao mesmo tempo, busca-se dialogar com as propostas de alguns escritores da época, como Graciliano Ramos, para analisar o alto grau de debate sobre o tema em questão. Tanto o Indigenismo peruano quanto o Regionalismo nordestino possibilitaram uma relação particular entre o regional e o étnico, o cultural e o temporal, assim como entre a linguagem e a memória ao colocar no centro desta problemática universos culturais antes não considerados. Palavras-chave: Tradição; regionalismo; indi- genismo; localidade cultural. Este artigo, parte de um dos capítulos da minha tese de doutorado Uma nova consciência regional. Apontamentos para um diálogo possível (2004), aparece aqui com leves modificações. 1 Gragoatá Gragoata 22.indb 99 Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:14 Gragoatá Silvina Carrizo a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual nós disporíamos ou não disporíamos já sobre o tema do passado, um conceito arquivável de arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. (DERRIDA, 2001, p.50) Tradição, regionalismo, indigenismo, localidade cultural É bom lembrar que o ano de 1928 é exemplar para abordar esta problemática, não apenas Mariátegui reúne, escreve e publica seus 7 ensaios, mas no Brasil são publicadas três obras de alto conteúdo crítico: A Bagaceira, de José Américo de Almeida, a Revista de Antropofagia e O Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade e Macunaíma de Mário de Andrade. 2 100 Gragoata 22.indb 100 Este trabalho tem como proposta resgatar certos sentidos dados ao conceito de tradição, no marco da década de 1920. Ao aproximarmos desse contexto, observa-se que a questão da tradição experimenta um certo recuo, impondo restrições cristalizadas para um merecido debate, em especial quando pensado a partir da ótica hegemônica do cosmopolitismo cultural e artístico. Um horizonte ideológico variado, que tinha seu centro na ideologia do internacionalismo, desenhada tanto pelo cosmopolitismo quanto pelo marxismo, dominantes naquela época, pensava a tradição como passado e reação contra a modernidade e a modernização. Nesse sentido, importa destacar que a discussão mais árdua sobre a tradição foi balizada por aqueles intelectuais que expressaram uma tensão maior ou ainda uma distância crítica preferencial com o ideário internacionalista de então. Há, na época, uma legião de intelectuais e artistas que se debruçam perante o problema da tradição como questão sine qua non do momento e oferecem uma rara seriedade no debate, produzindo um alargamento de seu campo de significados. Este fenômeno se dá a partir de vozes heteróclitas. Destacarei dois tipos de intelectuais muito diversos, porém marcantes para refletir desde nossa atualidade: José Carlos Mariátegui, no Peru, e Gilberto Freyre, no Brasil, mas também farei menção a um artista no seu momento de surgimento: Graciliano Ramos com seu primeiro romance, Caetés. Este tipo de discussão se dá nos finais da década de 1920, antecipando de modo preferencial livros como Casa grande & senzala de 1933, Siete ensayos de interprestación de la realidad peruana de 1928 e Vidas secas de 1938; e, por sua vez, se opera no conflito intelectual de refletir de uma maneira nova sobre “a região”. Em 1925, Gilberto Freyre organiza e publica, por ocasião do centenário do Diário de Pernambuco, o Livro do Nordeste no qual aparecem, entre outros artigos, três da sua autoria. Este livro vem inaugurar, junto com a realização do Congresso regionalista de 1926, o conhecido “regionalismo nordestino”. Já, no mesmo ano, Mariátegui redige “El problema primario de Perú”, e a partir de 1926 faz circular com o primeiro número da Revista Amauta — grande evento discursivo — o que será conhecido como “indigenismo peruano”. Graciliano Ramos escreve Caetés2 entre 1928 e 1929, quer dizer ainda na década de 1920, embora o romance seja publicado apenas em 1933. Resulta paradoxal Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:15 Debates de 1920: formas de pensar a tradição Como o re cupera Gustavo Sorá, Rachel de Queiroz descobriu Caetés nas gavetas do próprio Schmidt, que em 1928 já tinha fundado a livraria que levava seu nome e, no começo dos anos 30, a editora. A publicação de Caetés se dá entre finais de 1933 e princípios de 1934 no Rio de Janeiro. A editora já tinha publicado em 1931 O pais do carnaval de Jorge Amado (lido previamente por Otávio de Faria e Rachel de Queiroz) e, em 1933, a primeira edição de Casa grande & senzala, fato que lança luz sobre o valor de precursor que Freyre manteve num certo campo da cultura brasileira para a época. Para um maior aprofundamento sobre o incipiente mercado editorial e a promoção do social na produção intelectual ver SORÁ, Gustavo: “Livraria Schmidt: Literatura e política. Gênese de uma oposição elementar na Cultura Brasileira”, pp. 131-46, em: Revista de Novos Estudos Cebrap, n.61, nov. 2001. 4 O anti-arquivo seria assim a consciência do inviável que trabalha com o que Derrida chamou de “mal de arquivo”. Quer dizer, essa dialética que se observa no próprio arquivo entre pulsão de conservação: memorização, repetição, reprodução, reimpressão, e pulsão de morte, que tende a arruinar, a queimar o arquivo como acumulação e capitalização da memória sobre algum suporte e um lugar exterior. A clausura que tece João Valério é a possibilidade concreta de arruinar a forma de arquivar e o seu conteúdo, fechando-se no seu próprio “eu”. Isso que está ali, que foi colocado fora, está aqui, dentro de cada sujeito. Assim alinhava um limite, uma exaustão e uma negativa à repetição. É uma recusa ao arquivo “tradição” que apaga a subjetividade em prol da “grande história”. Cf. DERRIDA, 2001. 3 que este romance permanecera na gaveta da editora Schmidt, “arquivado”, e que por acaso Rachel de Queiroz o encontra e torna possível sua posterior publicação3. O paradoxo se torna ainda mais interessante ao pensar que o narrador de Caetés, João Valério, tem na sua gaveta algumas páginas escritas de um futuro livro sobre os índios caetés, que habitavam as vizinhanças da sua cidade e ainda no presente da escrita continuavam ativos culturalmente. O narrador, na sua pretensão de ser escritor, conta que guarda na gaveta essas páginas avulsas porque reconhece sua inaptidão para “arquivar” essa tradição cultural. O romance pode ser lido, sob essa perspectiva, como um momento de inflexão, abrindo para a questão de como escrever sobre a tradição e nesse cruzamento seria possível inserir uma pergunta elementar: o que é a tradição? A primeira estranheza desse narrador surge por sua antiheroicidade. Já não se trata do conquistador ou do viajante, nem do letrado oitocentista, João Valério, um simples empregado de comércio de uma cidade do interior de Alagoas, quer ser escritor. Assim, em decorrência desta experiência, João Valério narra sua vida em Palmeira dos Índios e monta, por sua vez, a narrativa do estranhamento ao querer incorporar o outro, antes separado, exterior a ele mesmo. Nesse sentido, isto contribui para refletir sobre os começos da carreira do escritor, nesse caso não a de João Valério, mas sim a de Graciliano Ramos e pensar esses começos como metáforas de projetos literários, como laboratórios possíveis do ficcional, e no específico, a entrada da memória e da voz do popular em algumas das narrativas de finais da década de 1920 e do começo de 1930, no continente. A problematicidade estaria, então, em como escrever sobre o “eu” na simultaneidade dos outros que nos habitam. Assim, Caetés, mais que a história do fracasso de uma escrita possível ou de um escritor, talvez desvendaria a exaustão de uma mesma escrita, a escrita do outro, da repetição do mesmo, no caso os índios Caetés. É por isso que Caetés ressoa como um anti-arquivo e, ao mesmo tempo que encerra e interdita esse arquivo — a tradição do discurso da tradição — volta-se para o eu4. O fracasso do livro, nesse sentido, seria o fracasso do mesmo, e o fracasso: o ponto final de uma linguagem que acha que está separada do outro. O único ato heróico de João Valério é esse: saber-se, também, um selvagem, portanto para que escrever sobre eles? Como em duplicata, confirma e ilumina a estratégia de Menino de Engenho, de José Lins do Rego, uma escrita voltada para o eu, na intersecção do passado. Não em vão, João Valério fala sobre os saberes requeridos para dar conta dos índios Caetés, “fabricar um romance histórico sem conhecer história”(RAMOS, 1961, p.76), “Talvez não fosse mau aprender um pouco de história para concluir o Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 101 101 6/11/2007 14:26:15 Gragoatá Silvina Carrizo romance”(RAMOS, 1961, p.217); e, ao mesmo tempo, desprestigia o trabalho de José de Alencar pela caricatura: “Nazaré falando de Abraão...Isto me fez pensar em José de Alencar, que também foi um cidadão excessivamente barbado” (RAMOS,1961, p.152) ou pela negligência irônica do esquecimento: “Li, na escola primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar, mas já esqueci tudo”(RAMOS, 1961, p.76), passando em revista assim a própria tradição que constrói o arquivo “tradição”, colocando-se como um “arconte sui generis”, um guardião que ironiza os interesses pelos quais escreve, “arranhando literatura” (RAMOS, 1961, p.70), e o próprio material: Embrenhei-me novamente nas selvas. Li a última tira e balancei a cabeça, desgostoso. Catei algumas expressões infelizes e introduzi na floresta, batida pelo vento, uma quantidade considerável de pássaros a cantar, macacos e sagüis em dança acrobática pelos ramos (...) De mais a mais a dificuldade era grande, as idéias minguadas recalcitravam, agora eu ia tentar descrever a impressão produzida no rude espírito da minha gente pelo galeão de d. Pêro Sardinha. Em todo caso apanhei os índios em alvoroço no centro da ocara, aterrorizados, gritando por Tupã. (...) Pôr no meu livro um navio que se afunda! Tolice. Onde vi eu um galeão? E quem me disse que era galeão? Talvez fosse uma caravela. Ou um bergantim. Melhor teria feito se houvesse arrumado os caetés no interior do país e deixado a embarcação escangalhar-se como Deus quisesse (RAMOS, 1961,p.98-9). Dentre os artifícios do “diário íntimo”, Caetés compartilha esse simulacro, essa dicção pelo íntimo, esse trabalho da memória como reserva consciente e como resistência, com Menino de Engenho e algumas das narrativas de Agua, como é o caso de “Warma Kuyay (Amor niño)” do escritor peruano José María Arguedas. Mas o que acumula, o que registra essa passagem entre memória e dicção íntima? Caetés parece se instalar na contramão, o “eu” mais insignificante, com a pretensão enorme, a de re-escrever a tradição separada do eu, colocando o outro, outra vez, distante, confinado a um arquivo que parece intocável, justamente pela sua oficialização discursiva. Esse avesso parece assinalar essa irrupção da subjetividade na narrativa. João Valério diz: “A minha figura no espelho pareceu-me burlesca”(RAMOS, 1961, p.189). Se, como afirma Joel Pontes, “ele [Ramos] focaliza os personagens em momentos de crise, quando examinam a vida em busca de uma ordenação mental num ato que é também de purgação de culpas”(PONTES apud BRAYNER, 1978, p.270), a crise do narrador, crise existencial, se espalha como reflexão da escrita não de uma obra de ficção per se, mas sobre uma discursividade que lida com a tradição. O texto, então, deixa aparecer a tradição, não instaurada como “passado”, porém como traço 102 Gragoata 22.indb 102 Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:16 Debates de 1920: formas de pensar a tradição cultural, popular ou não, presente e próximo. A presentificação da escrita, que vai dificultar aos poucos a estratégia do racconto, chega, num momento, até a encravar a “história” e a “geografia” em camadas que se sobrepõem, deixando respirar o passado latente como num presente fatal: Para os lados do Chucuru, meia dúzia de luzes indecisas, espalhadas. Aquilo há pouco tempo era dos índios. Outras luzes na Lagoa, que foi uma taba. No tanque, montes negros como piche. Ali encontraram, em escavações, vasos de barro e pedras talhadas à feição de meia-lua. Negra também, a Cafurna, onde se arrastam, miseráveis, os remanescentes da tribo que lá existiu (RAMOS, 1961, p.267). Inscrita nas margens de um discurso oficial e especializado, a discursividade sobre a tradição já não é mais a retórica da etnografia nem da história, é a do sujeito na sua área cultural, no seu local5. O outro arquivo é uma escrita já impossível, pois deve-se primeiro atravessar a própria subjetividade. Sem essa premissa, qualquer construção de arquivo parece impossível, pois sem promessa não há possibilidade de arquivo, nem de arquivamento. À irrupção da subjetividade e à concomitante crise tematizada, deve-se somar a mudança operada na percepção desses outros, consignados doravante como tradição cultural e/ou popular, de forma sintagmática, horizontalizada, não mais paradigma de nada. Esse movimento se transforma em dispositivo para fraturar a distância entre a voz pessoal e a pública, entre a intimidade e a realidade exterior, esse irem-direção ao povo, povo que é o próprio João Valério, tanto quanto significa refazer o contrato entre a palavra artística e os discursos socializados, a rejeição da via de Gonçalves Dias, José de Alencar, mas também da etnografia e da história. Mudança que, portanto, deve afetar e afeta a configuração e a forma desse novo arquivo, agora “consignado” — signos em reunião — num eu que não mais pode ser afastado dos outros, porque tornou-se o um. No entanto, é o “uno” sem poder simbólico, pois o eu é o “anti-herói”. Nesse tramado e mescla que é Caetés, produz-se uma disrupção da continuidade da escrita, à impossibilidade da escrita de um arquivo já arquivável, o simulacro do diário íntimo ganha enquanto relato existencial: Milton Marques Júnior assinala que “João Valério ao procurar escrever sobre os índios termina escrevendo so bre a vida em Palmeira dos Índios” (1992, p. 462). 5 Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! (...) Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem bruscamente... Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá (...) Que semelhança não haverá entre mim e eles! Por que Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 103 103 6/11/2007 14:26:16 Gragoatá Silvina Carrizo procurei os brutos de 1556 para personagens de uma novela que nunca pude acabar? (RAMOS, 1961, p.266-8)6. I nteressa nte é ob servar que, em 1935, o escritor Jorge de Lima, também alagoano, publica o seu roma nce Calunga, tematizando o primitivismo de um povoado nordest i no, cujas origens remontam aos caetés. No entanto, o romance se debruça na tematização sobre a geografia cultural, na clivagem do binômio civilização e barbárie, colocando o protagonista, Lula Bernardo, como aquele homem solitário, à Robinson Crusoe, que tenta refazer a história, corrigi-la. Nesse sentido, os protocolos estéticos de Lima ao escrever o romance apontam para os questionamentos de Caetés, trazendo maior luz ao rico laboratório de Ramos. 7 É importante frisar que as metáforas naturais também formaram parte dos discursos de Mariátegui e Freyre, e isso, justamente, devido ao fato de suas textualidades estarem emoldu radas em per íodo histórico de mudanças de grande impacto. As condições de possibilidade configuram o espaço de “transição”. Nesse contexto de produção e dada a produção de ambos os intelectuais, resgatam-se a vontade e o impulso para achar novos caminhos, em que categorias como “ruína”, “alicerces” e também “resíduos” colocam em crise e iluminam o resto do vocabulário técnico como incapaz de dar os sentidos que se buscam. 6 104 Gragoata 22.indb 104 Caetés é assim o eco de um instante, de uma virada, de uma ruptura, e portanto de uma promessa, mas sobretudo resulta, ao mesmo tempo, na metáfora de uma impossibilidade narrativa, um caminho de interdição que ilumina o percurso narrativo impulsionado na época e dialoga com as teses de Freyre e Mariátegui. Essas teses, protocolos, ensaios, num certo sentido, estão atravessados por uma apaixonante discussão sobre a tradição, e o que é mais, numa época em que falar de tradição era abrir-se à selva espessa das suspeitas e das polêmicas. Freyre e Mariátegui concebem a tradição basicamente numa dupla articulação. Num primeiro sentido diacrônico delineiam, analisam e criticam o peso discursivo das suas construções, como também o suporte que o discurso oficial e hegemônico lhe outorgara, balizam uma certa genealogia, o seu percurso discursivo-histórico, uma arqueologia que escava suas formas discursivas. Num segundo sentido, já mais sincrônico, sopesam o poder das ações, o poder dos aparatos culturais, dos mecanismos de produção, de “invenção” (HOBSBAWM, 1997) e se debruçam na tarefa de “refazer” — fazer de novo — esses arquivos, discursivos e técnicos (eventos) através de um prisma não hegemônico. Freyre e Mariátegui se utilizam nos seus ensaios, em grande medida, de metáforas estruturais e culturais, as “ruínas” e os “alicerces”, respectivamente. Metáforas que explodem seus sentidos perante aquelas em voga, tais como “caráter”, “raízes”, “húmus”. Metáforas estas naturais, que fazem referência à natureza, à terra mãe e até a discursos sociologizados que vêm das ciências7. Essas metáforas estruturais assinalam o trabalho como construção — escavação — tecendo aquilo que deve ser arquivável e, para tanto, rememorado, não como morto, mas como vivo, atual e dinâmico: rememorar o atual. Abrem-se a significados que dizem respeito àquilo que deve voltar para a realidade, porque seqüestrado ou rapidamente esquecido — soterrado —, porque presente e continuamente rejeitado — caso extremo das culturas indígenas no Peru —, ou porque presente e arruinado, apenas paisagem abandonada pelo ritmo da história, pelo abandono produzido perante a mudança de valores. O que deve voltar para a realidade também marca o vestígio do contemporâneo, numa inversão dos termos, dos signos. O que é e está aí cria laços com o que era, transformando a oficializada tradição-museu em luz que projeta a cultura popular enquanto expressividade do povo (GRAMSCI, 1986), acarretando a “visibilidade” horizontalizada, sincrônica. Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:16 Debates de 1920: formas de pensar a tradição Nesse ponto a estratégia de Caetés viria iluminar a proliferação de textos produzidos por Freyre até o ponto de clivagem, de amadurecimento que significa Casa grande & senzala. Pode-se pensar este livro como a concentração desmedida, concertação e apuramento dos trabalhos escritos na década anterior, protocolos de uma nova consciência regional. Pois, no que diz respeito à esfera discursiva, essa proliferação de textos funcionaria como um arquivo vivo que se retro-alimenta constantemente da sua matriz, gerando uma hibridização peculiar na própria escrita de Freyre. Rama não hesita em perceber neles, na sua escritura, um exemplo de “neo-aculturação”, destacando uma forma híbrida (RAMA, 1987). Como isso, dentro da nova região artística, parece um porvir dentro da narrativa, talvez a única que delineie esse território seja Caetés, justamente pela recusa à escrita do mesmo, pela mistura do arquivamento dos caetés, como outro livro, na tessitura da narrativa íntima de João Valério. Nesse sentido, é interessante frisar que se, como achava Adonias Filho, o romance brasileiro não ultrapassa o documento — aquilo que é legitimado como oral e popular —, e que seria a principal constante que responde pela tradição do romance brasileiro porém aceita-o para devolvê-lo como depoimento, como testemunho (FILHO, 1969, p.11-15), Caetés viria a confirmar que o romance como arquivo já não mais pode ser da mesma forma, pois é a própria matéria arquivável que mudou de percepção, de vontade de valor e de uso, nas mãos dos guardiões-escritores. A importância do evento cultural. Um bom exemplo de construção de um evento cultural que instaure a tradição enquanto cultura e deixe em aberto o arquivo “patrimônio”, pode ser observado nas matérias do Diário de Pernambuco que acompanharam o desenrolar do Primeiro Congresso Regionalista de Recife, no qual Gilberto Freyre, na qualidade de secretário do Centro Regionalista do Nordeste, oficiou de presidente das sessões junto com Odilon Nestor e Netto Campello. Embora o texto das matérias procure realçar o sentido “à margem” de tamanha empreitada, o que se deve destacar é que o Congresso congrega, em grande medida, figuras públicas, oficiais. Entre a representação oficial, de profissionais liberais, também encontra-se a marca patriarcal de vários dos participantes, lembrando que Freyre reúne essas duas. O evento não é de alcance “nacional”, no seu sentido pragmático, no entanto não é um evento separatista, “bairrista”. A questão regional é ao mesmo tempo de interesse nacional, patriótico. Como no discurso paranóico, defensivo — do qual o texto está cheio de marcas —, é reforçado o tempo todo que esses “edifícios”, esses “objetos”, esse “artesanato”, são tradição e cultura. Cultura atual, ligada ao passado não apenas regional, re-transmitida no fazer, na fala, etc. Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 105 105 6/11/2007 14:26:17 Gragoatá Nesse sentido entre a voz retocada do Man i festo Reg ion a l i st a de 1952 e os problemas críticos decorrentes da sua publicação, o sujeito anônimo que redige as matérias do jornal poderia ser visto como a “voz pública” (um “nós” público) desses guardiões, até porque é o único registro do Congresso. 8 106 Gragoata 22.indb 106 Silvina Carrizo A “ação regionalista”, primeira unidade a construir, relaciona-se ao nacional, unidade maior que conecta o regional a esse todo sem o qual não teria sentido. O regional seria cimento do nacional e isso fica bem explícito: “unindo a todos pelo gosto, pelos hábitos e pelas tradições” (QUINTAS, 1996, p. 138). Resulta assim uma estratégia de duplo movimento, que se esforça para não “parecer” separatista. A empreitada assegura uma nova via: não há identidade possível sem a presença legitimadora do Estado e de suas ações efetivas. Constitui-se assim o Congresso como uma prévia da interação entre artistas e intelectuais com o Estado, que se realiza de forma plena no ministério Capanema, na década de 40. Nesse sentido, pode-se interpretar que estar às margens significaria não se coadunar com o discurso dominante das vanguardas e o cosmopolitismo. O artigo que Freyre escrevera horas antes da inauguração do Congresso, publicado no mesmo jornal, sob o título de “Acção Regionalista no Nordeste”, no dia 7 de fevereiro de 1926, lança luz sobre os debates latentes. Freyre abre a sua matéria perguntando se é possível, no Brasil, “sentir e crear regionalisticamente”. O Congresso, enquanto espaço simbólico de “ação”, configura-se como proposta em andamento, como espaço de pretensões e de discussões sobre a tarefa a encarar: “o primeiro esforço no sentido de clarificar a acção regionalista, ainda mal comprehendida e superficialmente julgada”[sic] (FREYRE, 1996, p.109); fato que se ressignifica com o texto de encerramento do mesmo: “[O presidente do Congresso] refere-se ao espírito regionalista como uma ancia ainda a clarificar-se, sem duro ou definitivo contorno. O 1º Congresso Regionalista fôra o esboço de um grande movimento a firmar-se, a definir-se, a adquirir victorioso relevo”[sic] (QUINTAS, 1996, p.140). Os sujeitos se auto-proclamam “guardiões” da tradição: rememorar no presente, trazer à tona o que parece latente e não o é8. Os representantes do evento confirmam o esforço do trabalho criativo e pessoal de cada um deles, esforço para ser espalhado e apoiado: “aquelles que estão silenciosamente, modestamente colhendo documentos históricos, conservando obra d’arte, collecionando receitas de bolos, aproveitando velhos azulejos, defendendo os velhos portões e as velhas arvores, reunindo e enriquecendo o folck-lore (...)” [sic] (QUINTAS, 1996, p.138-9). A marca discursiva desses representantes recria a história, ao nível das propostas das ações, da configuração da “região cultural nordestina” como espaço possível para refletir sobre a formação moderna do conceito de localidade cultural. Como já o apontara Antonio Dimas a respeito do texto do “Manifesto Regionalista” de Freyre, as matérias que acompanham o Congresso, e que reproduzem em grande medida a palestra de Freyre sobre a cozinha, centram-se no metonímico, no particular, no concreto. Reconhece-se que a cultura negra não Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:17 Debates de 1920: formas de pensar a tradição ocupa, de forma direta, posição central, mas ela aparece através da exaltação da cozinha. Ao enfatizar a significação social e cultural dos valores culinários do Nordeste, dessacraliza-se a noção de cultura (DIMAS, 1996, p.41). Essa via é alinhavada pelo Congresso, através da intervenção de Freyre, de forma original, dando lugar à entrada da cultura negra. Porém, quando cotejada a apresentação de Freyre com as dos demais oradores, deve-se salientar que perfilam-se, pelos menos, mais duas vias: uma, que considera a tradição como linhagem — em direta conexão com o passado colonial, eclesiástico e patriarcal e com o conceito mais cristalizado de tradição — (QUINTAS, 1996, p. 138); e a outra, que a considera como popular e que repara nas festas, nos jogos e até em “Collecionar e cultivar a poesia simples do sertanejo, a musica ingenua das suas violas, reviver as suas historias varonis, é fazer tambem o bom, o melhor e mais sadio nacionalismo”[sic] (QUINTAS, 1996, p. 138). Como o Congresso é uma construção em andamento, vê-se como essas três linhas em destaque expandem as perspectivas da apresentação que fez Moraes Coutinho na inauguração das sessões: [Coutinho] deu o sentido de tradição – sentido vivo, creador, desembaraçado do sentimentalismo como do formalismo que tendem á estagnação ou á copia servil das formas do passado (...) Há assim um passado com qualidades de permanencia, uma tradição com qualidades de permanencia, que não é bem um passado ou uma tradição morta, mas uma força, que se renova e continua [sic] (QUINTAS, 1996, p.115-6). Nesse ponto a tradição como cultura reúne o passado no presente e recria o território da identidade. A cultura é, ao mesmo tempo, identidade e campo de batalha pelas hegemonias, não uma questão asséptica. Cf para isso a Introdução de Said (1994), que retoma a discussão colocada anteriormente por Gramsci. 9 Percebe-se um alargamento de significado do conceito de tradição, pois a valorização se dá, através da conservação, naquilo que é feito pelo homem — cultura — naquilo que até então entraria no espaço simbólico do desprezo. Entre linhagem e o popular, a tradição, enquanto conceito que vai sendo construído, significaria tornar “estético”, sensível, o que era apagado, as tradições vistas como cultura já não mais como formação, herança; ou seja, as tradições culturais vindas do povo; no entanto, também, aquilo que está sendo apagado — essa linha colonial, eclesiástica e patriarcal —, seja pelos conflitos reais, de que os termos “arrasar”, “arruinar”, “destruir” dão conta, seja pelos embates simbólicos que, de forma latente, aparecem colocados9. Por outro viés, a tradição é entendida como dinâmica e as ações de conservação, de preservação, devem, então, ter o mesmo formato, justamente para não asfixiá-la, para não torná-la um museu. Devem-se criar condições inovadoras de conservação, quer dizer, de “consignação”. Segundo as reflexões de Derrida, o arquivo é hipomnésico, quer dizer, é um suplemento, um representante auxiliar e exterior, é acumulação e capitalização da memória, ocupando o lugar da falta de memória original (DERRIDA, 2001, pp.20-3). Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 107 107 6/11/2007 14:26:17 Gragoatá Também com Derrida, pode-se apontar que “o arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipom nésica em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado. (...) a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento”(DERRIDA, 2001, p. 28). 10 108 Gragoata 22.indb 108 Silvina Carrizo Discute-se, também, o descaso com os investimentos — sempre referidos à esfera pública — para “a guarda e conservação de toda a archeologia do Brasil” [sic](QUINTAS, 1996, p.126), assim como o discurso que sustenta essas ações e as variadas formas de consignação. O que se observa nos textos é o senso de uma fundação cultural — a do patrimônio — cuja base está na captação do temporal, em confronto, como a contrapelo, com a localidade, que alguns escritos paulistas imprimem, ocupados na fundação horizontal, no seu sentido geográfico, do Brasil, pela ação das bandeiras (VIDAL e SOUZA, 1997, p.40-8). Daí que ecoe a idéia de “arqueologia” como o latente, uma topologia do temporal, que ressignifica o lugar de ruína, dando-lhe estatuto e peso simbólico regional e nacional. O discurso que sustenta a necessidade de consignar essas tradições, esse patrimônio, é o de criar um sentimento, uma sensibilidade, ou seja, toda uma “estética” perante a história e o tradicional (QUINTAS, 1996, p.127). Observa-se como não é apenas o objeto a ser arquivável, mas também o que se pensa como arquivo, os que se estruturam conjuntamente. Um moldando o outro de maneira constante10. Assim a consciência crítica não instrumentaliza a razão utilitária, mas uma estética. Entre as formas de consignação, entram em destaque a criação de uma jurisprudência em urbanismo para controle das ações sobre os edifícios históricos e o sentido das remodelações no âmbito das cidades, assim como a criação de suportes para a educação. Isso em decorrência de as tradições culturais selecionadas poderem se adaptar à vida moderna, revitalizando a idéia de tradição como aquilo que passa de geração em geração, e aqui no próprio sentido de cultura tangível, concreta, entretanto balizando a idéia de que conservar não é incompatível com o progresso. Se isso, de um lado, configura o ideário das “ações” regionalistas, do outro, salienta o lado defensivo das propostas, para que não sejam entendidas como reacionárias. Mas também aponta que é só através da experiência do “progresso” e das ações novas que dele emanam como possibilidade em cerne que se pode pensar em re-consignar os ícones culturais-tradicionais. No que diz respeito à educação, são as instituições do saber que devem ser reformuladas, pois elas começariam a funcionar, no caso da escola, como âmbito de retransmissão do intangível e cotidiano, as festas, os jogos. Para tanto, pensa-se na “formação cívica de um povo, para além do livro”(QUINTAS, 1996 p.126) e na “promoção da educação estética social”(QUINTAS, 1996, p.127). Quanto ao ensino superior, pensa-se em centros de pesquisa e divulgação, chegando até a se propor uma “cadeira de estudos nordestinos na universidade”(QUINTAS, 1996, p.128). A concepção de Derrida ilumina o fato dessas condições de arquivamento, de consignação, ao mesmo tempo que esboçam Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:18 Debates de 1920: formas de pensar a tradição um registro de passado, procuram trabalhar em um movimento de promessa ou de futuro (DERRIDA, 2001, p.43). Destacam-se, entre as diversas propostas, mais uma vez, a de Freyre que, ao se referir à estética e às tradições da cozinha nordestina, imagina modos atualizados de preservação, modos pelos quais a cultura se espalharia e se conservaria, ao mesmo tempo, virando viva, aproveitável, degustada. Os próprios locais concebidos para essa consignação seriam locais onde a cultura se refaz, se experimenta, se apreende e aprende. Freyre pensa em cafés e restaurantes, na escola — ensinando aos meninos cursos de cozinha —, e na sistematização em livro de receitas da região (QUINTAS, 1996, p.120-1). Dimas, ao se referir ao Livro do Nordeste, ressalta que este criou as “condições para a percepção nova de um largo trecho do país, até então imerso na retórica bachaleresca, no ressentimento ou na autopiedade. O Livro do Nordeste, em vez de chamar a atenção para o centenário do periódico, preferia demarcar os limites de uma cultura regional (...)” (DIMAS, 1996, p.23) e o fazia através de uma discursividade multidisciplinar e de uma flexibilidade intelectual, que tinham o propósito comum de “inventariar, de modo orgânico, uma dada produção cultural em vias de extinção”(DIMAS, 1996, p. 25). Na dialética entre conservação e mudança, vê-se que o Livro do Nordeste, enquanto legítimo manifesto, e as “ações regionalistas” propostas no decorrer do Congresso, a despeito do que é percebido “em vias de extinção”, trazem à luz um modo de captar, compreender, inventariar e conservar o que diz respeito ao atual, e ainda mais: ao popular e à questão da cultura negra. Ações e discursos que procuram através desse conceito que instrumentalizam, “estetizar a cultura”, quebrar as barreiras entre arte, linhagem patriarcal e cultura popular. O livro e o evento alinhavavam três vias, congregando-as como fato irrecusável da consciência crítica da própria fundação cultural nordestina. Nesse sentido, balizando o sentido crítico sobre o presente e o passado, o peso da memória e da responsabilidade, preparavam as condições pretendidas como dinâmicas, multidisciplinares para o arquivo vivo da cultura nordestina, re-criando uma agenda cultural inovadora. O peso do discurso da tradição. Depois de um ano do estopim que significou a fundação da Revista Amauta, evento cultural que marcaria profundamente escritores como Ciro Alegría e José María Arguedas, entre tantos outros, em 1927, José Carlos Mariátegui debruça-se na empreitada de desconstruir e “refazer” o conceito de tradição e o faz em seus dois artigos: “Heterodoxia de la tradición” e “La tradición nacional”. Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 109 109 6/11/2007 14:26:18 Gragoatá Mariátegui, de outro lado, também conhecia muito bem os usos que o fascismo na Itália fazia, numa direção contrária, da tradição como sendo perigosa, das promessas de regeneração do vigor nacional baseadas no espontaneísmo da cultura camponesa. Para uma historicidade dos usos do “vigor nacional” vinculados ao mundo rural, ver: ZANETTI (1994). Na mesma linha de Mariátegui, mas por imponderáveis da história, publicado muito tempo depois, ver GRAMSCI (1986). Para captar o problema político da “tradição” em Mariátegui, ver: MELIS (2002). Para o debate no interior da literatura italiana ver: GUGLIELMINO (1971). 12 Para além das críticas já conhecidas sobre esse artigo introdutório de Hobsbawm, este trabalho compartilha a idéia de “tradições inventadas” enquanto tradições construídas pelo Estado liberal moderno, apropriando-se de tradições como forma de preencher um vazio social. Porém, é claro que o conceito que se enfatiza, para o caso, é o de construídas no espaço discursivo. Também é necessário esclarecer que, no caso dos indigenistas socialistas, essa construção, esse refazer da tradição, é um trabalho paralelo à oficialidade do Estado ditatorial da época. Resulta, assim, uma possibilidade outra, diferente do regionalismo nordestino, pois é construída às margens do Estado e de forma marginal, quer dizer: subversiva no plano ideológico e de valores. Nesse sentido assume ainda mais sentido de “promessa”. 11 110 Gragoata 22.indb 110 Silvina Carrizo Em “Heterodoxia de la tradición”, o autor, com a pretensão de se apropriar do conceito de tradição, constrói um discurso polarizando dois extremos, que cristalizariam as posições e os usos perante a tradição, resultando como verdadeiro alvo a tentativa de legitimar o liame entre tradição e revolução: “Toda doctrina revolucionaria actúa sobre la realidad por medio de negaciones intransigentes que no es posible comprender sino interpretándolas en su papel dialéctico” (MARIÁTEGUI, 1983, p.162). As negações, as rupturas, o calendário zero pregados pelos movimentos revolucionários e vanguardistas devem ser lidos para além do literal, eles implicam as forças criadoras, mas de modo algum um desconhecimento do passado e um trabalho fora da história. Se o revolucionário cria sua força da superação do presente é porque imagina o futuro, e só poderá fazer isso se já imaginou o passado. O problema com a tradição é de perspectiva, pois quem concebe a tradição como museu, múmia, como alguma coisa morta ou fixa, fato reconhecível, segundo Mariátegui, na perspectiva tradicionalista conservadora peruana, não pode pretender a nenhuma mudança, é dominado por uma idéia de tempo fechado, enclausurado: “Porque se obstina interesadamente en definirla como un conjunto de reliquias inertes y símbolos extintos. Y en compendiarla en una receta escueta y única”(MARIÁTEGUI, 1983, p.163). Nesse sentido, Mariátegui também descortina um debate caro ao comunismo das décadas de 1920 e 1930, surgido na Rússia revolucionária a propósito do problema camponês, na linha dos que, aferrados ao racionalismo do progresso, se espantam perante qualquer intento de falar sobre a tradição, vista como uma realidade reacionária. É nesse viés que aponta para os percalços de uma leitura equívoca da ruptura revolucionária11. Mas a tradição é alguma coisa lábil, que não pode ser apreendida numa fórmula hermética e muito menos ortodoxa; ela é heterogênea, contraditória nos seus componentes, viva e móbil. Ademais, lida na perspectiva histórica, é força, energia, criação contínua. Passando em revista essas discussões, Mariátegui articula o debate a partir do que está em disputa nos conceitos dos grupos que a operacionalizam, que fragmentam a visão da tradição, pois a “invenção” das tradições responde também a interesses políticos e de classe. Nesse aspecto, e enquanto luta simbólica, à reivindicação no plano político e econômico proposta pelos indigenistas socialistas, devia-se pensar no plano da construção das tradições, pois como argumenta Hobsbawm: “as tradições inventadas são sintomas importantes e, portanto, indicadores de problemas que de outra forma poderiam não ser detectados nem localizados no tempo. Elas são indícios”(HOBSBAWM, 1997, p.20)12. Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:18 Debates de 1920: formas de pensar a tradição Esse debate se reorienta ainda mais no artigo subseqüente, “La tradición nacional”, traçando um panorama no que diz respeito ao Peru. Segundo Mariátegui, os interesses políticos e de classe da consciência nacional crioula tinham deixado de fora da história e da tradição oficial todo o passado indígena, reduzindo a tradição nacional à visão de mundo dos crioulos e mestiços. O que, por outro lado, estava firmado no descaso em relação à maioria da população de origem indígena: Se puede decir del Perú lo que Waldo Frank dice de Norte América: que es todavía un concepto por crear. Mas ya sabemos, definitivamente, en cuanto al Perú, que este concepto no se creará sin el indio. El pasado incaico ha entrado en nuestra historia, reivindicado no por los tradicionalistas sino por los revolucionarios. (...) La revolución ha reivindicado nuestra más antigua tradición (MARIÁTEGUI, 1983, p.168). É claro que para a época não era a primeira vez que se fazia uma “reivindicação” do passado incaico, mas deve-se frisar que todo o pensamento mariateguiano está balizado no componente indígena vivo, ele com a sua própria história e nele contida a história do Peru13: Um claro exemplo do movimento contrário foram as propostas de José de la Riva Agüero, que mantin ha uma visão exótica e negativa sobre o passado incaico, mas rasurava o tema quando pensado no presente, levantando, por sinal, a ideologia da mestiçagem. Cf. CORNEJO POLAR (1980). Também é importante a referência de Melis a respeito da operação iluminadora de Mariátegui, que afirma não poder ser confundida “nem com o huma n itarismo da Pró-indígena, nem com o milenarismo animado por acentos nietzscheanos e spenglerianos do amigo Luis E. Valcárcel” (MELIS, 2002, p.70). 14 A citação pertence a “Princípios programáticos do Partido Socialista”, redigido em 1928 por ocasião da fundação do Partido socialista peruano. 15 Para uma análise detalhada do pensamento do Mariáteg ui sobre a tradição e a Modernidade como filosofia surgida na Ilustração e em função da “razão”e do projeto liberal ver: TRONCOSO (1999). 13 Mas isto, do mesmo modo que o estímulo que se presta ao livre ressurgimento do povo indígena, à manifestação criadora de suas forças e espírito nativos, não significa em absoluto uma romântica e anti-histórica tendência de reconstrução ou ressureição do socialismo incaico, que correspondem a condições históricas completamente superadas e do qual somente restam, como fator aproveitável dentro de uma técnica de produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo dos camponeses indígenas (MARIÁTEGUI apud BELLOTO, 1982, p.78)14. O movimento assim é inverso e não implica na negação da história e das tradições do país, pois a tradição se amplia, configurando uma tradição tríplice, a qual, por sua vez, está inserida e articulada na abrangente tradição ocidental que o internacionalismo do capitalismo fomenta15: La tradición nacional se ha ensanchado con la reincorporación del incaísmo, pero esta reincorporación no anula, a su turno, otros factores o valores definitivamente ingresados también en nuestra existencia y nuestra personalidad como nación. Con la conquista, España, su idioma y su religión entraron perdurablemente en la historia peruana comunicándola y articulándola con la civilización occidental. El Evangelio, como verdad o concepción religiosa, valía ciertamente más que la mitología indígena. Y, más tarde, con la revolución de la Independencia, la República entró también para siempre en nuestra tradición (MARIÁTEGUI, 1983, p.169). A tradição é assim um fenômeno de coesão, de reintegração espiritual, mas também profundamente revolucionário, pois pela primeira vez seria a ação e a discursividade colocadas às Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 111 111 6/11/2007 14:26:19 Gragoatá Silvina Carrizo margens dos dispositivos do Estado que a estariam legitimando e operacionalizando, leia-se inventando: refazendo16. Alinhavando o campo reflexivo que religa a tradição à história — e a história como superação —, que vê a tradição repetir-se, transmitir-se e transformar-se, Mariátegui procura demonstrar a desnaturalização de certas tradições vivenciadas como naturais, tanto como objetiva a sua relação com a superestrutura, com a ideologia. Como enfatiza Hobsbawm, tal manipulação não guarda necessariamente relação com aquilo que fora conservado realmente na memória popular, mas com aquilo “que foi selecionado, escrito, descrito, popularizado e institucionalizado por quem estava encarregado de fazê-lo” (HOBSBAWM, 1997, p.21). Aquilo que está no cerne da memória popular seria justamente aquele “aspecto ideal — que es el fecundo como fermento o impulso de progreso o superación”, que Mariátegui reconhece como fato inerente à tradição, sua possibilidade de promessa. Não estranha então que Mariátegui em Siete Ensayos reflita sobre o modelo da literatura e da cultura argentinas pois, segundo ele, o movimento cultural nesse país representaria uma força vigorosa justamente por ter sido permeado pelo sentimento popular: Para o caso é até interessante lembrar que a revista Amauta num primeiro momento ia ser chamada “Vanguardia”, num projeto somente referido às artes e que deixava de lado aquilo que não se relacionasse com a vanguarda. Amauta como nome e proposta atingiu formas e expressões muito mais abrangentes que o que teria sido a primeira idéia. Cf. MARIÁTEGUI (1959), texto de uma entrevista de Vegas, publicada en Variedades, Lima, 6 de junho de 1925, em que diz: “Preparo la edición de dos selecciones de mis artículos y ensayos últimos. Vuelvo a un querido proyecto detenido por mi enfermedad: la publicación de una revista crítica, Vanguardia. Revista de los escritores y artistas de vanguardia del Perú y de Hispano-América”, pp.145. 16 112 Gragoata 22.indb 112 En la república del sur, el cruzamiento del europeo y del indígena produjo al gaucho. En el gaucho se fundieron perdurable y fuertemente la raza forastera y conquistadora y la raza aborigen. (...) Los mejores literatos argentinos han extraído del estrato popular sus temas y sus personajes. Santos Vega, Martín Fierro, Anastasio el Pollo, antes que en la imaginación artística, vivieron en la imaginación popular (MARIÁTEGUI, 1979, p.217). No emblemático artigo de 1925 “El problema primario del Perú”, Mariátegui já apontava, no bojo da procura por uma solução social para o problema do indígena, a importância dos Congressos indígenas, que vinham acontecendo como um nicho de identidade e de resistência: “Lo trascendente, lo histórico es el congreso en sí mismo. ���������������������������������������� El congreso como afirmación de la voluntad de la raza de formular sus reivindicaciones” (MARIÁTEGUI, 1983, p.45). A este respeito, resume Cornejo Polar: Todo esto indica que cuando Mariátegui finca el cimiento de la nacionalidad en el componente indígena está subrayando algo que aunque tiene facetas de variada índole – culturales, lingüísticas, raciales, etc. – tiene sobre todo un contenido y una proyección sociales. De aquí se desprende que la segunda asociación, entre lo nacional y lo indígena, debe sobreimprimirse dentro del marco de la asociación primera, entre lo nacional y popular (CORNEJO POLAR, 1980, p.58). O Peru ainda é um conceito a criar porque o seu próprio arquivo está em andamento, ele deve ser heterodoxo, amplo, vivo, móbil, em direção ao povo. Daí a demanda: peruanizar o Peru, quer dizer, indigenizar a nação, não como anulação do outro, Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:19 Debates de 1920: formas de pensar a tradição mas como legítima incorporação do apagado, do soterrado, do excluído. No conceito a criar, está contido todo o outro arquivo da “tradição”, aquele que fora operacionalizado na Colônia e durante a República, um arquivo cheio de passagens e interferências. Em paralelo com a inserção do popular no conceito heterodoxo de tradição que remaneja Mariátegui, abre-se a possibilidade da inversão dos termos de “nacional x exótico”. Uma discussão mais abstrata era colocada no seu artigo de 1924 “Lo nacional y lo exótico”, no qual Mariátegui desmascara a ideologia nacionalista: La realidad nacional está menos desconectada, es menos independiente de Europa de lo que suponen nuestros nacionalistas. El Perú contemporáneo se mueve dentro de la órbita de la civilización occidental. La mistificada realidad nacional no es sino un segmento, una parcela de la vasta realidad mundial. Todo lo que el Perú contemporáneo estima lo ha recibido de esa civilización que no sé si los nacionalistas a ultranza calificarán también de exótica. Existe hoy una ciencia, una filosofía, una democracia, un arte, existen máquinas, instituciones, leyes, genuina y característicamente peruanos? El idioma que hablamos y que escribimos, el idioma siquiera, es acaso un producto de la gente peruana? (MARIÁTEGUI, 1983, p.36). Já, quatro anos mais tarde, no seu “Proceso a la literatura peruana”, voltaria sobre as mesmas idéias dentro do âmbito cultural e étnico, para o que recolocaria o debate em função de uma leitura crítica das propostas de Riva Agüero, que, segundo Mariátegui, veria como “exotismo” — no sentido do exterior, do que é trazido de fora, o contrário do autóctone — a intenção de reivindicação do passado incaico, sendo uns dos seus principais argumentos o fato de eles não terem deixado nenhuma literatura escrita, e de eles terem sido europeizados pela educação. Embora Mariátegui reconheça a força que impôs o castelhano enquanto língua do conquistador, e em seguida, como língua nacional, isso não implicaria fechar os olhos ao dualismo quéchua-espanhol, que foge ao âmbito restrito da letra. Para além da letra, estaria toda a cultura e a cosmovisão indígena ainda vivas, assim como o quéchua como língua falada e transmitida, o que Mariátegui chama de “la prosodia del pueblo” (MARIÁTEGUI, 1979, p.218). De idêntica maneira, Mariátegui repõe as “forças vitais” de alguns escritores, como é o caso do romântico Ricardo Palma, ou o de Melgar, forças que sobrevivem a despeito das cópias de modelos espanhóis: En la trama de las Tradiciones no se descubre en seguida la hebra del chispeante y chismoso medio pelo limeño? Esta es una de las fuerzas vitales de la prosa tradicionista. Melgar, desdeñado por los académicos, sobrevivirá a Althaus, a Pardo y a Salaverry, porque en sus yaravíes encontrará siempre el pueblo un vislumbre de su auténtica tradición sentimental y de su genuino pasado literario (MARIÁTEGUI, 1979, p.218). Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 113 113 6/11/2007 14:26:19 Gragoatá Silvina Carrizo A releitura que fornece sobre o lugar de “El Inca Garcilaso”, de “Ricardo Palma”, dentro da tradição literária peruana, ou a localização da obra de González Prada como ponto de virada e entrada na abertura para o cosmopolita e o popular, colocam sob suspeita toda a armação com que se tece a tradição literária e cultural do Peru. No entanto, é a leitura que faz de César Vallejo, enquanto artista contemporâneo, que vale a pena apontar. O poeta se apresenta ante Mariátegui como a possibilidade na arte da conjunção de tradições várias — poeta e obra “signo” da etapa cosmopolita e revolucionária —, que por esse mesmo fator, resultaria numa poesia nova e peruana: “En Vallejo se encuentra, por primera vez en nuestra literatura, sentimiento indígena virginalmente expresado” (MARIÁTEGUI, 1979, p.280). O ������������������� que permite a Mariátegui ler o simbolismo em chave peruana: “El simbolismo, de otro lado, se presta mejor que ningún otro estilo a la interpretación del espíritu indígena. El indio, por animista y por bucólico, tiende a expresarse en símbolos e imágenes antropomórficas o campesinas” (MARIÁTEGUI, 1979, p. 281). Mariátegui encontra na sua poesia que elementos de várias tradições se tecem de forma original: Vallejo no recurre al folklore. �������������������������������� La palabra quechua, el giro vernáculo no se injertan artificiosamente en su lenguaje; son en él producto espontáneo, célula propia, elemento orgánico (...) Vallejo no se hunde en la tradición, no se interna en la historia, para extraer de su oscuro substractum perdidas emociones. (...) El sentimiento indígena obra en su arte quizá sin que él lo sepa ni lo quiera (MARIÁTEGUI, 1979, p. 281-2). A nostalgia da poesia vallejiana ligada ao sentimento indígena aparece como protesto sentimental ou metafísico, rasgando seu uso abusivo enquanto mera retrospectiva de época. Vallejo representa para Mariátegui essa possibilidade de precursor do novo espírito, da nova consciência, um poeta da “alma matinal” (MARIÁTEGUI, 1979, p.287). Assim, juntar o popular à tradição nacional, inverter os termos do que seria o exótico — o acadêmico x o popular —, imprimindo as primeiras linhas que rasgam essa mesma inversão proposta, abrir-se para o mundo para além da letra e inserir-se nas várias tradições que brotam do Ocidente — o internacionalismo — seria a forma de congregar o novo signo heterogêneo e heterodoxo da tradição cultural integral do Peru novo. Conclusão A crítica à construção das tradições e uma discussão em torno do próprio conceito de tradição estimulou um metaarquivo teórico-ensaístico e ficcional — no caso do narrador/ escritor, João Valério/Ramos, —, almejando nessa encenação 114 Gragoata 22.indb 114 Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:20 Debates de 1920: formas de pensar a tradição a crítica e a crise do lugar “oficial” dessas tradições, arquivos sem mais futuro, museus como monumentos mortos, já sem funcionalidade. Essa colocação em crise, portanto, assinala o instante de construção de um novo arquivo, os seus protocolos, cuja força, energia dinâmica primeva está colocada no futuro. Nesse espaço crítico, prenuncia o valor simbólico da localidade cultural, instaurando a discursividade da localidade da tradição, compreendida doravante como cultura, viva e móbil. Caetés, nesse sentido, pode ser pensado como um intento de captar a demanda da nova região artística, marcado pela pesquisa na concentração das possibilidades da subjetividade — tanto no que diz respeito à sua representação quanto à sua forma de enunciação —. Esse projeto escritural funcionaria como uma metáfora do debate em torno da possível convergência entre a necessidade da intimidade do eu — inclusive até como novo verossímil — e a procura de um relacionamento diferente e até íntimo com os outros, o povo, que se operacionalizou, de formas diferentes, em muitos dos narradores da época. Esse espaço de convergência reduplica, na esfera dos produtos simbólicos, as questões salientadas no evento do Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste, pois significam modos de imaginar condições inovadoras de conservação da identidade subjetiva e cultural. Instauram, por sua vez, uma sensibilidade diferente perante a tradição, agora já não mais fora da própria subjetividade. As três vias que foram salientadas nesse Congresso de 1926 como caminhos possíveis de trabalho com a tradição — a da entrada da cultura negra, a da tradição como linhagem, a da entrada do popular — somadas à multidisciplinaridade já apontada sobre o Livro do Nordeste configuram, também, as várias vias assinaladas por Mariátegui nos seu artigos tanto como o evento cultural que representou a revista Amauta. As versões que se espalham e que lutam pelo lugar no campo simbólico de remanejamento de Estado no Brasil do período — os protocolos: mineiro, paulista, nordestino e sulino —, assim como a marginalidade — a respeito do Estado liberal e ditatorial — da peruanidade indigenista socialista, são signos de diversas formas performáticas de relacionar a tradição ao discursivo e ao ato, evento de construção delas. Mas também resultam num leque de estratégias perante formas diferentes de crises de Estado e de relacionamento imaginado ou fatual com ele. O que, por outro viés, reconfirma a liberdade e a resistência cultural que esses novos arquivos inscreveram na história turbulenta do século XX. Niterói, n. 22, p. 99-118, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 115 115 6/11/2007 14:26:20 Gragoatá Silvina Carrizo Abstract Variations on the concept of tradition as established in the 1920´s by José Carlos Mariátegui´s Peruvian indigenism, and Gilberto Freyre´s Brazilian north-eastern regionalism, as well as by the fictional literary proposals of Graciliano Ramos, which include cultural universes previously neglected, are examined as a possibility of establishing special relationships between region and ethnicity, culture and time, language and memory. Keywords: Tradition; regionalism; indige- nism; cultural locality. Referências: BELLOTTO, Manoel e CÔRREA, Anna M. (orgs) José Carlos Mariátegui: política. São Paulo: Atica, 1982. BOURDIEU, Pierre. “L´identité et la représentation”. 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O Suplemento Literário do Minas Gerais (cuja primeira edição data de 1966), buscava romper o isolamento do Brasil em relação aos demais países da América Latina, publicando literatura e crítica hispano-americanas. Diante do volumoso material, selecionei, para esse estudo, entrevistas, textos panorâmicos sobre a literatura hispanoamericana, destacando também as resenhas que permitissem refletir sobre a indicação de obras aos leitores do Suplemento, propiciando ao estudioso de hoje reconstituir aspectos do diálogo do Brasil com a América Latina e da recepção crítica tanto a partir de um olhar do Brasil ou vice-versa. Palavras-chave: Suplemento Literário do Minas Gerais; interlocução latino-americana; anos 60-70 Gragoatá Gragoata 22.indb 119 Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:21 Gragoatá Haydée Ribeiro Coelho A interlocução entre o Brasil e os países hispano-americanos ocorreu de várias maneiras nos anos 60 e 70. O Suplemento Literário do Minas Gerais (cuja primeira edição data de 1966), buscava romper o isolamento do Brasil em relação aos demais países da América Latina, publicando literatura e crítica hispanoamericanas. Recentemente, o periódico mineiro foi revisitado pela comemoração de seus quarenta anos e diversos de seus momentos históricos foram relembrados na edição de dezembro de 2006. Os marcos teóricos, enunciados no título, decorrem de inúmeras razões, como será visto mais adiante. Uma delas é o fato de possibilitar a continuidade de um trabalho de pesquisa que realizo, seguindo, sob certos aspectos, uma periodicidade que não se fecha, mas que vai sendo balizada pelos acontecimentos históricos ocorridos no Brasil como a ditadura militar e o exílio de muitos intelectuais latino-americanos que estabelecem outros diálogos, além do crítico e literário. Embora publicado dois anos depois do golpe militar de 1964 e vinculado à Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, o Suplemento Literário do Minas Gerais como outros das décadas de 60 e 70, representou um “local para o debate e a discussão de idéias e de resistência à ditadura então vigente como nenhum outro locus jornalístico poderia ser.” (HOHLFELDT, 1966, p. 61). Em consonância com o que ocorria em termos literários e críticos em Minas, no Brasil e em outras plagas, o periódico mineiro acolhe textos do chamado “boom literário”, conceito relacionado à renovação da narrativa hispano-americana, “a partir de meados do século XX” (TROUCHE, 2005, p. 85). Enfocando a América Latina no periódico mineiro, entre 1969 e 1973, é importante situar como a publicação vai dialogando com a literatura hispano-americana desde 1966, ano em que aparecem traduzidos, no Suplemento, fragmentos de textos do escritor argentino Aníbal Ponce, retirados do livro Ambición y angustia de los adolescentes. A partir de 1967, inicia-se a publicação de ensaios de escritores brasileiros sobre autores da América Hispânica como aquele de Henriqueta Lisboa intitulado “Alfonso Reyes, ensaísta e poeta”. A escritora mineira ressaltava as atividades culturais do autor mexicano, incluindo aquela de embaixador de seu país no Brasil em 1930. Affonso Ávila, ainda em 1967, traduziu dois poemas de Vicente Huidobro. Na apresentação do poeta chileno, dava destaque ao teórico do “Creacionismo” e a convivência do autor de Vientos contrarios com “poetas, escritores e artistas como Tristan Tzara, Pierre Reverdy, Paul Eluard, Philippe Soupault, André Malraux, Arp, Braque, Chagall, Léger, Miró, Juan Gris e Picasso, tendo mantido também amizade e contato literário com os principais poetas de sua geração (ÁVILA, 1967, p. 1). 120 Gragoata 22.indb 120 Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:21 A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973) Miguel Ángel Asturias, cuja apresentação é realizada em um dos editoriais do Suplemento, aparece enfocado ainda na série “Roda Gigante” com o subtítulo: “Asturias: Invenção e participação.” A tradução do conto “O boi” por Iris Barbosa Mello confirmava o caráter renovador da narrativa do escritor guatemalteco residente em Paris. O artigo “Rubén Darío e o modernismo hispano-americano” situava o poeta nicaragüense no contexto de busca de autonomia latino-americana. Maria José de Queiroz, ao comentar o livro de Mário Mendes Campos, publicado pela Imprensa Oficial do Minas Gerais, cujo título era o mesmo do já mencionado estudo, divulgava trabalho sobre autor hispano-americano editado em Minas. Em 1968, Vicente Huidobro é contemplado com dois artigos de José Afrânio Moreira Duarte que, dentre outros aspectos, salienta que “um literato do tamanho vulto e mérito, embora bastante popular na Europa, a ponto de ali ser incluído em antologias poéticas, é muito pouco ou quase nada conhecido dos leitores brasileiros” (DUARTE, 1968, p. 3). No mesmo ano, Laís Corrêa de Araújo traduz o conto “Todos os fogos o fogo”, primeiro texto de Julio Cortázar, publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais. A autora de Cantochão lamenta o fato de a obra do escritor argentino “tão famosa na Europa” não ter sido traduzida no Brasil. (ARAÚJO, 1968, p. 1) e de ser comentada ou lida somente “após ter inspirado o filme de tanto sucesso, ‘Blow Up’.” (ARAÚJO, 1968, p. 1) No decorrer da década de 60 a 70, a presença de textos sobre a América Hispânica (poemas, ensaios, traduções, entrevistas, estudos panorâmicos sobre a literatura latino-americana, estudos comparatistas, o desenvolvimento de trabalhos de críticos nacionais sobre a literatura latino-americana e vice-versa) tende, no Suplemento, a ocorrer, de forma mais intensa, acompanhando as tendências literárias e teóricas predominantes no Brasil e em outros países. Mapeando a crítica hispano-americana no periódico mineiro, podemos observar que há estudo de autores da literatura hispano-americana realizada por críticos brasileiros; crítica hispano-americana sobre a produção hispano-americana e outros artigos realizados por críticos estrangeiros sobre autor latino-americano. Em relação a esse último aspecto, assinalo a colaboração de estudiosos que, nos Estados Unidos, refletiam sobre a literatura latino-americana.Para ilustrar, menciono o estudo de William Myron Davis que escreveu sobre o mito sagrado maia-quitché, com base no romance El señor Presidente, de Miguel Angel Asturias. Panoramas mais gerais sobre a literatura hispano-americana, trabalhos comparatistas entre autores brasileiros e autores hispano-americanos destacam-se nesse quadro geral, além das Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 121 121 6/11/2007 14:26:21 Gragoatá Haydée Ribeiro Coelho resenhas que divulgavam traduções realizadas no Brasil. Roteiros de leituras, de revistas literárias, publicadas no Brasil e no exterior, tinham a função de cartografar a cultura e a literatura hispano-americanas. Diante do volumoso material, selecionei, para esse estudo, entrevistas, textos panorâmicos sobre a literatura hispanoamericana, destacando também as resenhas que permitem refletir sobre a indicação de obras aos leitores do Suplemento, propiciando ao estudioso de hoje reconstituir alguns aspectos do diálogo do Brasil com a América Latina e a recepção crítica tanto a partir de um olhar do Brasil como vice-versa. As entrevistas oferecem um panorama importante sobre variados assuntos, recuperando o olhar do entrevistador sobre um tema abordado seja ele relativo ao passado ou presente. Constituindo um importante objeto de estudo, além do texto teórico e do literário, oferece ao leitor caminhos para reflexões de várias ordens como aquelas relativas à produção, à recepção de obras e tendências críticas do momento em que a entrevista está sendo gravada, para depois ser registrada em livro ou artigo. A poeta Laís Corrêa de Araújo tem um papel fundamental no Suplemento. Além da série literária “Roda Gigante” para a qual escreveu entre 1966-1969, como ensaísta publicou outros textos críticos; poemas; fez entrevistas com eminentes escritores como Michel Butor, Tzvetan Todorov, Ana Hatherly e Haroldo de Campos e muitas traduções das quais destaco duas entrevistas que passo a comentar. “Conversando com Vargas Llosa”, de Carlos Cortínez, com nota explicativa e bibliográfica da tradutora, é uma entrevista decorrente de uma reunião anual, realizada em Nova Iorque, chamada “Modern Language Association”, e da mesa-redonda convocada paralelamente pelo “Center for Interamerican Relations”. As perguntas, dirigidas ao escritor peruano, eram em torno de seus textos; de seu posicionamento diante dos romances sociológicos; da distinção entre o “nouveau roman” e o “novo romance latino-americano”. As razões do florescimento literário do novo gênero romanesco também constituíam matéria de interesse do entrevistador. Vargas Llosa, mostrando-se favorável ao romance de ação, mantinha-se distanciado do “nouveau roman”. Para ele, a literatura não podia “ser avaliada por comparação com a realidade” (CORTINEZ, 1969, p. 2). Quando o escritor escreve, “não está propondo problemas, conflitos de tipo social, histórico, político ou sociológico (CORTINEZ, 1969, p. 2). Para ele, o escritor “exorciza certos demônios que tem em si, certas experiências que o marcaram mais profundamente que outras, de que não se pode libertar e que se converteram em demônios” (CORTINEZ, 1969, p. 2). 122 Gragoata 22.indb 122 Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:21 A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973) Em relação ao novo romance latino-americano, ressalta que há “na origem de tudo uma rebelião frente à realidade” (LLOSA, 1969, p. 3). No que se refere à aproximação entre as novas tendências na América Latina e o “nouveau roman”, menciona Severo Sarduy cuja obra representa essa afinidade. No que diz respeito ao florescimento do escritor latinoamericano, o autor de La ciudad y los perros destaca os seguintes aspectos: a literatura não tem uma importância secundária; aumento do número de editoras; a corrupção na América Latina como “melhor alimento para os romancistas”; libertação do complexo de inferioridade que “o escritor latino-americano sempre tinha para com o europeu” e a libertação do “academismo”, ocorrido em língua espanhola. Na entrevista de Severo Sarduy, concedida a Efraín Hustado, divulgada na revista Actual (publicação venezuelana) e traduzida no Suplemento, o escritor cubano recusa uma perspectiva realista de literatura. Contrário à narração de estórias, diz que a magia está no branco da página, colocando-se na defesa do trabalho com a linguagem. Nesse sentido, salienta a importância da crítica do grupo Tel Quel para a produção literária na América Latina.No que se referia à literatura de Cuba, destacava Paraíso, da autoria de Lezama Lima que “Como Martí devolveu a língua a seu fundamento, dando a nosso idioma a categoria e a majestade dos clássicos” (HURTADO, 1970, p. 2). Em “Conversa com Gunther Lorenz”, o famoso entrevistador de Guimarães Rosa revela o interesse dos europeus pela literatura latino-americana. Segundo ele, isso ocorria porque “a Europa está cansada da automação, da desumanização, de ver o homem apenas como uma peça da engrenagem da vida moderna, do meio jogo de palavras dessa literatura de experimento pelo experimento (repudio, por exemplo, o ‘nouveau roman’)” (ARAÚJO, 1971, p. 4). A reportagem, realizada por Zilah Corrêa de Araújo, com base nas informações do crítico alemão, esclarecia que até aquele momento (julho de 1971) tinham sido “traduzidas para o alemão 250 obras sul-americanas das quais 60 brasileiras”. Considerando as entrevistas comentadas, vê-se que enquanto Severo Sarduy demonstrava a importância do grupo francês Tel Quel para as inovações do romance latino-americano e afinidade literária com o “nouveau roman”, segundo Vargas Llosa; Gunther Lorenz testemunhava o cansaço europeu pela “literatura de experimento por experimento”. No Suplemento, Michel Butor é um escritor bastante prestigiado. Vem a Minas e é entrevistado por Laís Corrêa de Araújo. O interesse da ensaísta e poeta pelo “nouveau roman” é demonstrado ainda pela resenha do livro O novo romance francês, de Leyla Perrone-Moysés e pela tradução de “Chaves para o romance” de Georges Paillard. Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 123 123 6/11/2007 14:26:22 Gragoatá Haydée Ribeiro Coelho Textos de críticos nacionais e estrangeiros focalizavam a literatura latino-americana, em seus aspectos mais gerais: superação do regionalismo (Bella Jozef e Luis Harss); periodização literária, considerando a realidade social (Gustav Silverman) e realismo mágico (Terezinha Alves Pereira). No artigo “O romance brasileiro e o ibero-americano na atualidade”, a autora de História da Literatura hispano-americana destaca diferentes fases da narrativa hispano-americana. A primeira constitui-se como “continuidade passiva da visão dos colonizadores, com algumas tentativas de interpretação da nova terra nos reduzidos núcleos cultos” (JOZEF, 1973, p. 6) e a segunda apresenta “certa resistência às possibilidades aprendidas nas escolas européias” (JOZEF, 1973, p. 6). O século XIX “inaugurou uma literatura essencialmente polêmica”, havendo uma tomada de consciência com tendências nacionalizantes”. Uma outra fase do romance é inaugurada com o aparecimento de novos recursos técnicos e a aquisição de “significação universal do regionalismo”. Nesse contexto, Bella Jozef se reporta às “técnicas cinematográficas” e à “exclusão do romance psicológico (...), postulados do ‘nouveau roman’ (JOSEF, 1973, p. 6). “Em outra passagem do texto, esclarece que: “Os princípios do ‘nouveau roman’ foram mais fielmente seguidos pelo romance espanhol que na Hispano-América” (JOZEF, 1973, p. 6). Relacionando o romance brasileiro com os demais produzidos na América Hispânica, a ensaísta brasileira elege Grande Sertão: Veredas, tendo em vista o fato de os críticos colocarem “no mesmo plano de valor Guimarães Rosa e alguns vultos da Literatura Hispano-Americana” (JOZEF, 1973, p. 7). No que tange à comparação entre o autor de Grande Sertão: Veredas e outros escritores latino-americanos, a ensaísta mostra como Rômulo Gallegos e Guimarães Rosa poderiam ser aproximados “pelos procedimentos temáticos estilísticos semelhantes” (JOZEF, 1973, p. 7) e de que maneira Julio Cortázar e Miguel Ángel Asturias podiam ser confrontados pela renovação da linguagem. O aspecto estético seria outro ponto de semelhança entre o autor mineiro e Jorge Luis Borges. Em “Os nossos”, de Luis Harss, traduzido por Waldimir Diniz, são evidenciadas tendências gerais e específicas que ocorrem na ficção latino-americana do momento. Em relação às primeiras, observem-se: a busca de novos rumos, além das diferenças do regional e do urbano; a superação de que “o autêntico tinha de ser local ou regional” (HARSS, 1970, p. 2); a descoberta da “universalidade de nossa tradição” (HARSS, 1970, p. 2); o “surgimento de uma literatura mais intuitiva, mais dona de si mesma, mais forte em suas entranhas, mais íntegra e voraz” (HARSS, 1970, p. 2); com a superação das “velhas polêmicas” (segundo o autor) em torno da definição dos escritores de “sua posição artística ou política” e a separação entre ativismo político e arte. 124 Gragoata 22.indb 124 Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:22 A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973) O aumento de pólos culturais como o México e Buenos Aires, além de Paris, capital da América Latina, onde “nossos escritores podiam se encontrar, geralmente exilados ou em missões diplomáticas” e a internacionalização das editoras (Fondo de Cultura Econômica do México) e a “Casa de las Américas”, de Cuba, criavam “uma nova solidariedade”. No que diz respeito ao Brasil, salienta “novas barreiras culturais e lingüísticas que continuavam de pé” (HARSS, 1970, p. p. 2). A exclusão do Brasil no artigo, traduzido no Suplemento, constitui uma prova evidente da ausência do diálogo cultural entre brasileiros e hispno-americanos. O exílio dos brasileiros em outros países da América Latina criará de fato “uma nova solidariedade”, fundamentada em reflexão político-cultural sobre a América Latina, como ocorreu pela profícua interlocução entre Darcy Ribeiro e Ángel Rama no Uruguai e em outras plagas. Uma das críticas feitas ao livro de Luis Harss pode ser encontrada pelo leitor do suplemento na entrevista (já comentada) de Carlos Cortinez a Mario Vargas Llosa. O escritor peruano diz que não se reconhece no capítulo que o autor argentino escreveu sobre ele pelo método empregado, “resultado de longas entrevistas, que misturou e cortou” e porque Harss “é romancista e não crítico”. O aspecto, aqui ressaltado, não tem como objetivo destacar a crítica em si sobre o livro de Harss, mas evidenciar como é possível estabelecer um diálogo entre a recepção dos autores latino-americanos e seus críticos com base em diversos textos, incluindo as entrevistas. Gustav Siebenmann, professor convidado pelo Goethe Institut e pela Universidade Federal de Minas Gerais, pronuncia, em Belo Horizonte, uma palestra sobre Filologia Românica e sobre os novos rumos da moderna literatura hispano-americana. No Suplemento, é publicada a tradução de seu artigo, intitulado “Romance hispano-americano como reflexo na situação social” que tinha como objetivo estudar o romance da América Latina pelo relacionamento entre o literário e o social. O contraste entre civilização e barbárie, considerado por Domingo Faustino Sarmiento (Vida de Juan Facundo Quiroga, 1815), é um dos aspectos que norteia o crítico que, ao apresentar o panorama do romance hispano-americano, aborda o período entre os anos 20 e 1960. Para isso, distingue três fases. Na primeira, ocorre o florescimento do romance latino-americano e há o “conflito homem-natureza ou também civilização-barbárie”. La vorágine (1924) de José Eustáquio Rivera (Colômbia), Don Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes (Argentina) e Doña Bárbara (1929), de Rômulo Gallegos (Venezuela) exemplificam esse momento. Na segunda, não “há uma luta épico-heróica com a natureza inimiga” e idéias políticas e crítico-sociais, formuladas por Haya de la Torre, Mariátegui e outros “despertaram a consciência social dos intelectuais e escritores latino-americanos” (SIEBENNiterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 125 125 6/11/2007 14:26:22 Gragoatá Haydée Ribeiro Coelho MANN, 1970, p. 2) e o “ herói do romance não é uma” vítima da natureza mas de circunstâncias sociais”. (SIEBENMANN, 1970, p. 2). Sob essa perspectiva são mencionados Huasipungo (1934), de Jorge Icaza; El mundo es ancho y ajeno (1941), de Ciro Alegria e El señor presidente, Prêmio Nobel, de Miguel Angel Asturias, iniciado em 1930 e publicado em 1946. A terceira fase, que abrange os anos 50 e sessenta, volta-se para a grandeza do sentido trágico da vida e o “romancista deixa de se ocupar com a realidade social no sentido de um realismo de protesto e passa antes a descobrir nela o motivo e simultaneamente a manifestação sempre presente de uma condição humana que já não conhece qualquer esperança certa.” (SIEBENMANN, 1970, p. 2.). Para o crítico, Juan Rulfo; Carlos Fuentes; Eduardo Mallea; Alejo Carpentier, José María Arguedas e Augusto Roa Bastos ilustram esse período. Ernesto Sábato; Julio Cortázar; Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, segundo o artigo, eram representativos da nova narrativa hispano-americana. Diante da complexidade desse novo romance latino-americano, havia “uma perda de público considerável”. A literatura latino-americana, focalizada em fases, excluía mais uma vez a literatura brasileira. Uma das razões alegadas pelo autor do artigo “deve-se ao seu diferente ritmo evolutivo que viria complicar nossa exposição” (SIEBENMANN, 1970, p. 2). Como em outros textos aqui revisitados, a menção ao “nouveau roman” era inevitável. Gustav Siebenmann, considerando a nova narrativa latino-americana, diz que há “processos semelhantes, mas sem a esterilidade e o ar de laboratório do ‘nouveau roman’ francês” (SIEBENMANN, 1970, p. 3) como em Sobre heroes y tumbas (1961), de Ernesto Sábato. Terezinha Alves Pereira, ensaísta e escritora, residia nos Estados Unidos, quando publica, no suplemento, três artigos sobre o realismo mágico na ficção latino-americana. Inicia a série com um comentário sobre a Antologia del Realismo Mágico, organizada por Dale Carter Jr. que reunía “oito contos hispanoamericanos”. Com base no prólogo da mencionada publicação, Terezinha Alves Pereira evidenciava que a “primeira obra que deu força ao movimento do realismo mágico na América Hispânica foi a Antologia da Literatura fantástica, organizada por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Slvina Ocampo” (PEREIRA, 1970, p. 11) e que o realismo mágico ocorria além da Argentina, no México e em Cuba. O prólogo, realizado pelo crítico americano, permite à autora dos artigos, publicados no suplemento, “traçar uma linha mágica entre três escritores portenhos que representam três gerações literárias subseqüentes: Leopoldo Lugones, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar” (PEREIRA, 1970, p. 11). Embora esses autores sejam nucleares para sua exposição, estende suas 126 Gragoata 22.indb 126 Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:22 A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973) observações para Alejo Carpentier e Juan Rulfo. No suplemento, foram resenhados vários livros de literatura latino-americana. Veneno da madrugada, A propósito de Cândida Erêndira, de sua desalmada avó,de Gabriel de Garcia Márquez; Boquinhas pintadas, de Manuel Puig e, ainda, 62-Modelo para amar, Bestiário, e Cronópios e Famas e Todos os fogos o fogo, de Julio Cortázar ilustram os textos resenhados, com base nas traduções existentes em português. Los funerales de Mamá Grande, de García Márquez; Conversación en la Catedral, de Mario Vargas Llosa; Inventando que sueño, de José Augustín; Los Reyes, de Julio Cortázar; La jaula, de Javier Villafañe, El siglo de las luces, publicado por Alejo Carpentier e “Hasta no verte Jesus mio”, livro de Elena Poniatowska, são alguns dos textos comentados a partir da língua original em que foram escritos. Em “Um roteiro da América hispânica”, Carlos Roberto Pellegrino, ao salientar o interesse do público pela literatura hispano-americana, se reporta à Coleção Revista da Cultura, da Editora Vozes, especialmente, ao sétimo número, organizado pela professora Bella Jozef. A publicação permitia conhecer algumas revistas estrangeiras que divulgam a literatura hispano-americana. Nesse sentido, percorro a cartografia cultural, oferecida pelo colaborador do suplemento. El Cuento era uma revista de contos, publicada na cidade do México; Imagem era editada pelo Instituto Nacional de Cultura e Belas Artes da Venezuela; Los Libros, revista argentina, apresentava a “mais completa resenha bibliográfica do mês” e, em “seu número 20 trazia ‘na íntegra’ a resposta polêmica de 61 intelectuais a Fidel Castro, em razão das torturas a escritores cubanos”. Também nessa revista, Julio Cortázar publicou pequeno ensaio “político-literário” e o periódico Cuadernos hispano-americanos, editado na Espanha pelo “Instituto de Cultura Hispânica” publicava, “mensalmente, artigos de crítica literária, além de contos e poemas de autores consagrados em todo o mundo” (PELLEGRINO, 1972, p. 11). Gustavo da Veiga, outro crítico do Suplemento, em “A narrativa na América Latina” tratava do primeiro aniversário da Nueva Narrativa Hispanoamericana, revista editada por Helmy Giacoman nos Estados Unidos.A novidade era que o Brasil tinha sido incluído no número comemorativo do primeiro aniversário da revista, graças a Gregory Rabassa que era o “grande responsável pela expansão dos conhecimentos sobre a narrativa brasileira nos Estados Unidos”. Nesse mesmo texto, o colaborador do suplemento inclui o comentário de Gregory Rabassa que realçava o papel do periódico mineiro, como se pode ler na citação: Entretanto o aparecimento da nova narrativa na América Hispânica despertou o interesse pela comunidade irmã pela primeira vez no Brasil, e a maioria dos autores têm sido traduzidos, lidos e estudados. O Suplemento Literário do Minas Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 127 127 6/11/2007 14:26:23 Gragoatá Haydée Ribeiro Coelho Gerais, em particular, publica um grande número de artigos e resenhas, muitas escritas por Carlos Roberto Pellegrino, que em seus próprios contos mostra certa influência de Julio Cortázar (VEIGA, 1972, p. 10). A respeito da recepção do Suplemento, além das fronteiras de Minas, é importante lembrar o que escreveu Humberto Werneck, por ocasião dos quarenta anos do Suplemento: Minas, aliás, é preciso que se diga, era onde o semanário de Murilo Rubião fazia menos sucesso. Julio Cortázar lia em Paris o suplemento que em Belo Horizonte era ignorado pela pequenez liliputiana de escribas provincianos (WERNECK, 2006, p. 5) O escritor e jornalista, autor de O desatino da rapaziada relembrou, na edição comemorativa, o momento em que o Suplemento Literário do Minas Gerais esteve sob a direção do escritor Murilo Rubião (1966-1968). 2 Para maior esclarecimento sobre a vinda de Cortázar a Minas, Cf. LUCAS, Fábio. Presença de Cortázar, mencionada na bibliografia. 1 128 Gragoata 22.indb 128 Ao resenhismo crítico bastante praticado no Suplemento, acrescentem-se os informes sobre o II festival de Teatro Latinoamericano, promovido pela Difusão Cultural (Departamento de Teatro da Universidade Autônoma do México),1 o que confirma o interesse do Suplemento para além da literatura, em conformidade com as orientações do periódico que desde seu início incluía outras artes. A presença de Cortázar em Minas, comentada por Fábio Lucas,2 em artigo de 24 de fevereiro de 1973, é um acontecimento da maior importância, instaurando, no plano real e metafórico, o encontro da América Latina com Minas, o Brasil e o Barroco. A posição do autor de A mais bela história do mundo reiterava a posição de muitos dos críticos do Suplemento: o engajamento na luta do Terceiro Mundo, sem abdicar da técnica narrativa na construção do romanesco. O estudo da América Latina no Suplemento do Minas Gerais demonstra como o local buscava se inserir no âmbito das tendências literárias e críticas, predominantes nos anos 60 e 70, nos países hispano-americanos. Pela tradução de diferentes textos (ensaios e entrevistas) e pela divulgação da crítica brasileira sobre a literatura produzida na América Latina, o suplemento propiciou ao leitor brasileiro tomar contato com textos pouco divulgados entre nós, quebrando barreiras lingüísticas e culturais. Diante dos artigos panorâmicos sobre a literatura hispanoamericana, o leitor pode acompanhar a recepção da literatura e da crítica realizadas naquele momento a que já me referi, lançando-se para o estudo de outros suplementos e revistas, responsáveis por outras formas de diálogo e integração latinoamericana. Em um primeiro momento, achei que de nenhuma forma tinha ocorrido uma comunicação entre Marcha (semanário uruguaio) com o qual veio trabalhando e o Suplemento Literário do Minas Gerais. No entanto, de forma indireta, pude ver que o texto “A literatura ibero-americana na URSS” trazia uma nota importante do seu tradutor, mostrando justamente o inverso. Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:23 A América Latina no Suplemento Literário do Minas Gerais (1969-1973) Joaquim de Montezuma de Carvalho, o tradutor, observa que o poeta mineiro Tomás Antonio Gonzaga tinha sido traduzido em russo em 1826 por Pushkin. Essa informação tinha sido recolhida do artigo de Venedict Vinogradov (Latinoamericanos en la Unión Soviética), publicado no Semanário Marcha, n. 1571, 26 nov. 1971, Montevidéu. Flora Sussekind, ao mostrar de que forma se originou “o perfil do crítico moderno no país”, aborda a trajetória da crítica feita no jornal e as transformações que ocorreram nas décadas de 60 e 70, “anos universitários”.3 Em relação ao comparativismo brasileiro nos anos 80 e 90, Sandra Nitrini afirma: Na década de 80 tomam impulso cursos de literatura comparada em níveis de graduação e pós-graduação com desdobramentos em trabalhos monográficos e teses de doutorado voltados para as relações entre a literatura brasileira e africana, entre a portuguesa e a africana, entre a literatura canadense, entre a brasileira e hispano-americana, ampliando, portanto, seu objeto de interesse no campo das relações interliterárias e em consonância com o movimento geral dos estudos literários que abrem espaço para as chamadas literaturas não-canônicas. (NITRINI, 1997) As observações das duas ensaístas subsidiam o que vai ocorrer no periódico mineiro. A partir de 1975, o Suplemento abarca outras vozes acadêmicas além daquelas de especialistas em literatura hispano-americana (Maria José de Queiroz, Bella Jozef e Ilka de Carvalho) que já figuravam no período entre 1966-1973. Abstract A propósito desse aspecto, veja-se SUSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna. In: Papéis avulsos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. p. 13-33. 3 Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 129 Interactions between Brazil and Spanish-American countries took place in various ways during the 60s and 70s. The Literary Supplement of the daily newspaper Minas Gerais (first published in 1966) published Spanish-American criticism and literature in an effort to eliminate Brazilian isolation from other Latin American countries. In the face of a vast material extant, this study chooses from interviews and panoramic texts to highlight reviews that give food for reflection on the works recommended to readers of the Supplement. As a result, scholars today can reconstruct aspects of the interaction between Brazil and the rest of Latin America and the critical reception from both the Brazilian and other points of view. Keywords: Literary Supplement of Minas Gerais; Latin American interaction; 60s and 70s. 129 6/11/2007 14:26:23 Gragoatá Haydée Ribeiro Coelho Referências ARAÚJO, Laís Corrêa de. Asturias: invenção e participação. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 69, dez. 1967. Suplemento Literário, p. 7. ARAÚJO, Laís Corrêa de. Entrevista com Michel Butor. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 37, maio 1967. Suplemento Literário, p. 3. ARAÚJO, Zilah Corrêa. Conversa com Gunther Lorenz. Entrevista. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 253, 3 jul. 1971. Suplemento Literário, p. 4. ASTURIAS, Miguel Angel. O boi. Trad. 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Niterói, n. 22, p. 119-131, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 131 131 6/11/2007 14:26:23 Gragoata 22.indb 132 6/11/2007 14:26:23 Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio)* Mónica Bueno Recebido 29, jan. 2007/Aprovado 20, mar. 2007 Resumo As relações entre a literatura brasileira e a literatura argentina apresentam, em primeiro lugar, a sedução da diferença de línguas. Da mesma maneira, o modernismo brasileiro é, como a vanguarda argentina, uma polifonia que os críticos tentam delimitar. Na América Latina, o romance tem sido um gênero particularmente privilegiado para marcar a forma irreverente da margem cultural. Na Argentina, Macedonio Fernández é o ponto de virada na história do romance, alterando consideravelmente os fundamentos epistêmicos da representação. No Brasil, é justamente Mário de Andrade quem põe em crise o marco do gênero. Palavras-chave: Vanguarda; Modernismo; Romance; Margem; Alta cultura; Cultura de massas. Neste artigo, excepcionalmente, as notas de texto, por serem extensas, aparecem no final. * Gragoatá Gragoata 22.indb 133 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:24 Gragoatá Mónica Bueno “¿Qué quiere decir lo argentino-brasileño1?, se pregunta Raúl Antelo. “Es imposible pensar ese guión, ese espacio común, el entre-lugar argentino-brasileño, sin una referencia a una memoria de la modernidad a través de sus marcos mayores: el conflicto entre razón y tradición o la tensión entre razón y evolución”, concluye el crítico argentino que vive en Brasil (ANTELO, 2003, p. 97). En esa forma de la modernidad que Antelo reconoce —razón y tradición / razón o evolución— la vanguardia ocupa un lugar preferencial porque pone en la superficie las formas del conflicto: la vanguardia como respuesta política, como respuesta a la tensión “alta cultura / cultura de masas” y como cuestionamiento de la tradición. Estos tres puntos que definen la vanguardia tienen una respuesta particular según el contexto en donde surge. En América Latina, los imaginarios nacionales en la década del veinte diseñan diferentes formas de problematizar la relación con la tradición propia y ajena, de resignificar las vinculaciones entre la alta cultura y la cultura de masas; en definitiva, de construir la utopía de un nuevo lugar social del arte. El grupo martinfierrista dibuja una forma, “criolla”; los escritores del modernismo brasileño son lectores atentos a esa forma literaria. Vanguardia y modernismo: las formas de lo nuevo Las relaciones entre la literatura brasileña y la literatura argentina presentan en primer lugar la seducción de la diferencia de lenguas. Por otra parte, el modernismo brasileño es, como la vanguardia argentina, una polifonía que los críticos intentan delimitar. Así parece entenderlo el artículo en español que sale publicado en el número 5 de la célebre revista brasileña Verde, firmado con el seudónimo “Peregrino Junior”, con la promesa incumplida de editarse en Argentina, en la revista Martín Fierro.2 “El movimiento moderno en el Brasil fue un grito de alegría y entusiasmo. Fue el grito de la gente nueva. Un grito que encontró repercusión en todos los rincones de la tierra brasileña”. De esta manera comienza una suerte de panorama celebratorio de “lo nuevo” en Brasil. Hablábamos antes de las lenguas que densifican el guión de la ecuación argentino-brasileño. Llaman la atención en la edición del texto algunos errores ortográficos. Una reseña musical de Mário de Andrade escrita en francés completa el tono plural de la revista. En la Argentina, estos años muestran un campo intelectual complejo donde el gesto parricida hacia los viejos retratos de los escritores consagrados (Gálvez, Rojas y Lugones) se dinamiza con el debate acerca de las operaciones para instalar lo nuevo como categoría cultural. Los dos grupos, Florida y Boedo, ensayan gestos que responden a diferentes objetivos: “nuevas formas de arte” para Florida; “nuevas formas de vida” para Boedo 134 Gragoata 22.indb 134 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:24 Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio) define con acierto Castelnuovo. “Lo nuevo” ajeno es, para la mirada del extranjero, un punto de inflexión del modo de leer los experimentos artísticos de la vanguardia. La extranjería de la lengua, de la cultura se conjuga con la proximidad del margen.3 Mário y la vanguardia argentina Las cinco notas críticas que Mário de Andrade publica en el Diário Nacional entre 1927 y 1928 indican el modo de lectura de un escritor atento a la literatura argentina (ANTELO, 1986, p.163).4 Como señala Raúl Antelo, “[p]or volta de 1925, Mário de Andrade encontrava-se empenhado em elaborar um conceito de vanguarda que [reunisse] a liberdade estética e a responsabilidade do intelectual” (ANTELO, 1986, p. 26). Estos requisitos indispensables para Mário en su definición de literatura fueron una tensión en toda su obra, una necesidad de experimenta ción y búsqueda constante. De Macunaíma a O café, por citar dos textos emblemáticos de Mário, esa tensión aparece resuelta de modo diferente en cada caso. El contacto con la revista Martín Fierro se produce en 1925 a partir del número 20 y su interés parece centrarse en tres escritores: Borges, Girondo y Francisco Luis Bernárdez. Sin embargo, la admiración de Mário por la producción de Güiraldes muestra otra zona de legibilidad entre la particular relación que la vanguardia, tanto en Brasil como en Argentina, tiene con la tradición nacional y con un programa cultural de identidad. 5 Si el brasileño reconoce en Borges (y lo reitera) una aristocracia que se educó en la sobriedad, está apuntando, evidentemente, a ese linaje nacional del culto a los libros que señalara Ricardo Piglia. Sin embargo, la marca de lo nuevo aparece identificada en Mário con el reconocimiento de cierta extrañeza acerca de las ideas de Borges. Mário lee la extrañeza en el marco de una tradición que se construye en el criollismo de Martín Fierro y que fusiona con su propio concepto de lo nacional como propio, irreverente y peculiar. Mário, como Borges, intenta desprenderse de “um nacionalismo desbragado” (ANTELO, 1986, p.166) que abunda en Brasil. En “El tamaño de mi esperanza”, Borges reclama un criollismo conversador de Dios y del mundo, definiendo los límites de una identidad que se separa (o pretende) del nacionalismo liberal.6 Borges lee la literatura argentina como un texto de identidad. Pero también comienza a dibujar la escena, a imaginar la forma de contar el destino. Una procedencia y una matriz de sus ficciones.7 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 135 135 6/11/2007 14:26:24 Gragoatá Mónica Bueno En el margen del género: Mário y Macedonio En literatura, el marco genérico es un campo de experimentación fructífero en los años veinte. Particularmente la novela en América Latina ha sido un género privilegiado para marcar la forma irreverente del margen cultural.8 Es posible pensar en una suerte de origen o procedencia que polemice con las convenciones históricas y taxonómicas del género; en Argentina, Macedonio Fernández es el punto de viraje en la historia de la novela, alterando considerablemente los fundamentos epistémicos de la representación. En Brasil, es justamente Mário de Andrade quien pone en crisis el marco del género. No se conocieron; ni siquiera hay referencias de uno en los escritos del otro. Sin embargo, construyen una poética del género que pone en crisis la noción de referencia y de verosímil. En otras palabras, la genealogía del “libro extraño” que comienza con Facundo de Sarmiento en la Argentina frente a la tradición del “romance malandro” en Brasil. Publicada en 1928, en una tirada de apenas ochocientos ejemplares (Mário de Andrade no conseguirá editor), Macunaíma constituye para toda la crítica brasileña un texto de renovación del lenguaje literario nacional. En este punto, el “precursor” de Borges y el modernista se encuentran, mejor dicho, coinciden en una poética de la novela. Museo de la novela de la Eterna es la primera novela buena. Así la llama su autor para distinguirla de su última novela Adriana Buenos Aires. Según explica Macedonio en uno de los múltiples prólogos de la “novela buena”, un viento ocasional confundió para siempre las hojas de los dos manuscritos y ya no está seguro de haber logrado separarlas correctamente. Museo se escribe durante cincuenta años. Es una suerte de work in progress donde arte y vida logran una alianza productiva que solo concluye con la muerte de su autor. La novela se publica póstumamente en 1967. Convengamos que la experiencia en la sociedad moderna en la época de la reproductibilidad técnica, tal cual la ve Benjamin, se transforma en una marca generalizada, estándar y, de alguna manera, manipulada. Si la experiencia es el conocimiento individual que un sujeto tiene de lo real, esa posibilidad, para Benjamin, está en crisis. Museo de la Novela de la Eterna intenta la conquista de la ciudad de Buenos Aires desde una estancia, donde se construirá el complot para lograr una ciudad sin muerte, habitada por hombres no idénticos. Por su parte, como señala Eneida Maria de Souza, “Macunaíma, o grande desconstrutor de linguagens, ao voltar de canoa para o Uraricoera, traz na mala o contrabando de signos de diferentes origens e, entre os mais visíveis, um casal de galinhas Legorne, um revólver Smith Weson e um relógio Pathek Philipe” (SOUZA, 1999, p. 3). 136 Gragoata 22.indb 136 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:24 Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio) La experiencia con lo real se metaforiza en ese trazo de ambivalencia de Macunaíma, situado en el límite entre la civilización y la barbarie. Macunaíma (mal que le pese y lo rechace Mário) es la obra que mejor concretiza las propuestas del movimiento de Antropofagia, creado por Oswald de Andrade, “como um antropófago, comer o que mereça ser comido”.9 En Museo los nombres de los personajes funcionan como concreciones subjetivas de abstracciones universales. Al reemplazar el nombre propio por estas descripciones generalizadas y funcionales (la Eterna, el Viajero, el Presidente), Macedonio selecciona elementos olvidados de la tradición que remiten sobre todo a la alegoría medieval. La vuelta de tuerca que diferencia el modo alegórico en Museo se da en la ausencia de una totalidad que la forma del medioevo pone de manifiesto. En la novela hay restos, fragmentos de esa totalidad definitivamente perdida. En Macunaíma, “la rapsodia” establece la multiplicidad y fuga de sentidos que se diseminan a lo largo del libro, las condiciones vanguardistas que le permiten a Mário establecer una relación nueva entre cultura popular y alta cultura y establecer un modo inestable, ambiguo de un relato de identidad (un héroe sin ningún carácter). “O que procurei caracterizar mais o menos foi a falta de caráter do brasileiro que foi justamente o que me frapou quando li o tal ciclo de lendas sobre o herói taulipangue. […] Macunaíma também não é indio propriamente: é um ente de lenda” (ANDRADE, 1988, p. 395), declara su autor al respecto. Mário de Andrade reelabora literariamente temas de mitología indígena y visiones folclóricas de la Amazonia y del resto del país. Cavalcanti Proença afirma que Macunaíma se aproxima a la epopeya medieval, porque tiene en común con aquellos héroes lo sobrenatural y lo maravilloso. Está fuera del espacio y del tiempo. Por ese motivo puede realizar aquellas fugas espectaculares y asombrosas. Las dos novelas eligen materiales perdidos, olvidados (la alegoría, la epopeya) y los ponen a funcionar en el marco de la novela. El género permite una relación irreverente con la tradición y busca un sentido nuevo de experiencia literaria, artística. Esta noción del arte que se funde en la vida de una manera inédita (“reconducir el arte a una nueva praxis vital” dice Bürger (1995, p. 45) se manifiesta de distintos modos. La noción de crisis de la experiencia se une para Benjamin con su teoría acerca de la novela. La noción de experiencia, sea individual o colectiva, tiene como contexto pertinente el de la tradición en tanto memoria de aquello que llega como experiencia. Las posiciones de los dos autores muestran una relación corrosiva con el sentido de experiencia individual y colectiva. El saber previo es el que constituye un texto en literario. La conciencia de que es necesario luchar para constituir ese saber previo es un elemento muy importante en la poética de las vanguardias. Antes la tradición Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 137 137 6/11/2007 14:26:25 Gragoatá Mónica Bueno establecía un valor trascendente de la obra; la inestabilidad del valor es un punto de la vanguardia. Si Mário debió defenderse frente a las acusaciones de plagio que no entendían el gesto irónico del uso de los materiales, Macedonio decide diseñar el origen de la “novela buena”, que permita cuestionar la forma del género. La tesis central del ensayo de Borges “El escritor argentino y la tradición” (1989, p. 154) es que las literaturas secundarias y marginales, desplazadas de las grandes corrientes europeas, tienen la posibilidad de un manejo propio, “irreverente” de las tradiciones centrales. Por su parte, Silviano Santiago define en su artículo “Apesar de dependente, universal” (1982, p. 13-24) que la conciencia de la diferencia determina, por un lado, la posibilidad de entrar en una relación particular con el conjunto de la cultura europea y, por otro lado, la posibilidad de fundar un origen y una tradición propia a partir de los usos locales y de la especificidad de la situación de lectura. Las nociones de autor y propiedad privada, los conceptos de escena y relato, las relaciones “traidoras” con la tradición, el uso de la lengua, las operatorias retóricas y los protocolos intertextuales resultan zonas de intersección que permitan reconocer nuevos parámetros de lectura; estos, por su parte, responden a contextos sociales que reclaman construcciones utópicas. Así, por ejemplo, tanto Mário de Andrade como Macedonio utilizan una técnica cinematográfica de cortes bruscos que imprime velocidad, simultaneidad en la continuidad narrativa. Ambas novelas diseñan las condiciones de una poética que establece una nueva figura de lector. Entran de este modo en el debate tradicional sobre “lo novelesco”, entendido como tensión nunca resuelta entre el arte y la vida, entre la forma y la experiencia, entre la verdad y la ficción. Las cuestiones más relevantes acerca de la vanguardia entendida como respuesta política, en primer lugar; como respuesta a la tensión “alta cultura / cultura de masas”, en segundo lugar; y como tensión con la tradición nacional, en tercer lugar, pueden ser analizadas comparativamente en las dos poéticas. Es en este sentido que la apuesta más fuerte se diseña en la figura de un nuevo lector, a partir de ese uso irreverente de la tradición local, nacional y universal, que define una arquitectura de lo nuevo y que establece resignificaciones entre las diferentes zonas de la cultura. La irreverencia de la que hablaba Borges produce, por un lado, en las dos poéticas, la posibilidad de entrar en una relación particular con el conjunto de la cultura europea y, por otro lado, la posibilidad de fundar una genealogía y una tradición propia a partir de los usos locales y de la especificidad de la situación de lectura. Macedonio y Mário son vanguardistas porque ponen en cuestión la tradición. 138 Gragoata 22.indb 138 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:25 Modernismo brasileño y vanguardia Argentina: filiaciones y homenajes (Macedonio y Mário: un diálogo ficticio) Mário y el modernismo brasileño muestran explícitamente su irreverencia frente a la tradición. La ficción torna posible la construcción, en el marco del género, de un nuevo lugar del intelectual frente a las culturas populares. Macunaíma prueba el modo de una síncresis cultural y tempo-espacial en el modo de resolver las tensiones entre subjetividad y objetividad, ciudad y campo, civilización europea y cultura nacional. Es en el modo de leer los materiales de una tradición y también los dispositivos epocales y las estrategias teóricas que Andrade y Macedonio se disponen contra el verosímil realista. “Invirtiendo la mirada etnográfica”, como señala Alejandra Mailhe10, en la brecha entre lo imposible y lo posible, ambas novelas hacen emerger la ficción. (La carta a las Indias que no leen parodia el otro lado de las cosas, como buscaba Macedonio en su belarte). En la novelarapsodia, como en la primera novela buena argentina, se busca construir un nuevo verosímil. Esta ambigüedad identitaria se comporta también, tanto en Museo como en Macunaíma, como complementariedad entre los elementos negativos y positivos del personaje. Las dos novelas debilitan la tradicional oposi ción civilización y barbarie y establecen conexiones imposibles desde lo real. Ensayan la estrategia de opacar la representación, de hacerla paradójica —principio vanguardista— para afirmar todas las contradicciones. Se podría pensar entonces, a partir de Museo y Macunaíma, una poética utópica que construye en el género un complot contra la representación realista y, al mismo tiempo, establece nuevos pactos de lectura. Las dos novelas desarman la falacia de las identidades absolutas y autorreferenciales que conlleva al desconocimiento de la naturaleza relacional y abierta hacia la alteridad, y que a su vez comporta que esas mismas identidades terminan negándose a sí mismas. Por lo tanto, podemos decir que tanto la tendencia hacia una homogeneización de la cultura, como la proliferación de particularismos absolutos, tienen en común el desconocimiento de la diferencia concebida en términos relacionales. En otras palabras, en toda identidad, sea esta subjetiva o colectiva, existe siempre una relación de implicación con una alteridad que de alguna manera la sustenta, la define y posibilita como tal. Antonio Candido vaticinó el carácter futuro de Macunaíma. Esa definición utópica de la novela evidentemente la emparienta con Museo, escrita para lectores por venir. Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 139 139 6/11/2007 14:26:25 Abstract The relations between Brazilian and Argentine literature present the seduction of the difference of languages. Brazilian modernism is, like the Argentine vanguard, a polyphony that the critics try to delimit. Particularly, the novel in Latin America has been a privileged genre to mark the irreverent form of the cultural margin. In Argentina, Macedonio Fernández is the turning point in the history of the novel, considerably altering the bases of the representation. In Brazil, it is Mário de Andrade that puts the frame of the novel in crisis. Keywords: Avant-garde; Modernism; Novel; Margin; Brazil; Argentina; Experience; Tradition; High culture; Mass culture. Referencias ADORNO, Theodor W. Teoría estética. Buenos Aires: Hyspamérica, 1983. ANDRADE, Oswald de. 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Al final, en portugués y entre paréntesis se anuncia la publicación de ese texto en la revista Martín Fierro. 3 La experimentación es, sin duda, el dispositivo que permite la búsqueda de lo nuevo. Experimentar implica abandonar la continuidad de la experiencia histórica, dejar de lado las formas emergentes de la tradición y seleccionar otras formas, otros materiales. 4 En la primera, fechada el 30 de octubre de 1927 se refiere a Exposición de la Actual Poesía Argentina de Pedro Vignale y César Tiempo. A modo de reseña, y luego de un párrafo donde el brasileño teoriza sobre los defectos y dificultades de una antología, Mário reconoce en esta las mejores cualidades del género y subraya el carácter de “inteligencia nova “ de los compiladores. “Na Exposición tem um dilúvio de metáforas mas todas elas aparecem em função de um movimento lírico interior mais sério e verdadeiro” En las zonas de legibilidad que Mário encuentra particularmente en los martinfierristas se puede ver un punto de ensamblaje en su propia poética de escritor vanguardista. De la misma manera que Peregrino Junior en Verde, intenta dar cuenta de la multiplicidad de la vanguardia argentina. Una larga enumeración de las revistas vanguardistas, incluyendo expresiones rosarinas, cordobesas y platenses. Asimismo, dedica una análisis pormenorizado a Claridad y los boedistas. 5 Es interesante observar la evaluación que Mário hace de los textos de Guiraldes: parece leerse en clave con el formulado criollismo del joven Borges. El brasileño llama “nacionalismo” esa forma peculiar que el argentino describe en esa estrategia de universalizar lo propio. Las zonas de legibilidad que Mário lee en la vanguardia argentina soportan su propia poética y determinan las huellas de su relación con los tres puntos de la relación vanguardia/vida que definiéramos. 6 Ricardo Piglia ha sostenido (y ya es un clásico) la constitución dual de los dos linajes en Borges como una matriz precisa de su literatura: el culto a los libros y el culto al coraje dos emblemas que recorren su obra y refuncionalizan su textualidad. El culto de lo escrito, civilizado frente a la fascinación por la voz y el tono de la voz (bárbara, orillera). Su lectura de los libros de la literatura argentina está sesgada por esta impronta. Encuentra en esa dimensión una clave y un modo que quiebra el lugar común de lo propio y determina la forma de la voz. La poesía gauchesca y, por supuesto, el Martín Fierro, le mostrarán el modo particular y propio del relato que seduce a Borges. En los años de juventud, Borges llamará a esta manera “criollismo”. En Inquisiciones de 1925 comienza a configurar un plan que logra en su libro siguiente su ejecución más acabada. 7 Su sentido último se encuentra en la consonancia con las cosas de la vida de este país. Beatriz Sarlo lo explica con claridad: “Borges rescata el medio tono, la media voz, la oralidad, las formas preliterarias, los géneros menores, las palabras usadas con intención irónica o poética en la vida cotidiana” (SARLO, 1993, p. 121). 8 Señala Piglia, “Alejo Carpentier sistematiza la poética de lo real maravilloso que mantiene una serie de relaciones con la obra de García Márquez, de Asturias, con el realismo mágico, etc. Esta tradición rastrea los orígenes del género en América Latina y su condición formal no en la tradición clásica de la novela europea sino en los escritos de los cronistas españoles y en los relatos de la conquista. Construye de ese modo una genealogía propia y un origen para la novela, centralmente en el área del Caribe, que define un estilo y un modo de narrar. 9 Por su parte, Arguedas ha definido la historia de la novela en la región andina a partir del anclaje del género en la gran tradición narrativa prehispánica. En ese origen se ha elaborado otra hipótesis sobre la historia específica del género y sobre su diferencia.” 10 Cf Macedonio Fernández: Vanguardia y novela, de Mónica Bueno, Colectivo 12, en prensa. (Es imprescindible aclarar que si bien esta ponencia fue leida por mí en Mercedes., en el marco de las Jornadas del ILH, la autoría es del grupo de investigación y, sobre todo, del director, que pacientemente ordenó nuestras discusiones y nos llevó con maestría a conclusiones impensables desde nuestro limitado punto de partida. Con el estilo de la conversación macedoniana (“Como ustedes sabrán”) logró una dinámica apasionante y , algo poco frecuente, un trabajo intelectual en equipo. Por lo tanto, yo sólo soy un copista, una especie de Per Abbat posmoderno, que trata de trasladar a esta convención académica dilatadas tardes de charla amena y eficaz) Cf PIGLIA, Ricardo. Poéticas de la novela en América Latina. Macedonio Fernández:pPoéticas de la novela en América Latina. Compar(a)ison, Berna, p. 21-27, 1997. 1 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 143 143 6/11/2007 14:26:26 Gragoatá Mónica Bueno Nos referimos ala ponencia presentada por Alejandra Mailhe “Fábulas de la tansculturación en Macunaíma. Una lectura crítica del modernismo brasileño”(UNLP-UNER) en las Jornadas de la cátedra de Historia Americana del Depto. de Historia, Fac. de Humanidades UNMdP, agosto de 2004. 11 Para Benjamin, la vanguardia trabaja con la gran consigna de unir el arte y la vida. En este intento, opera con un concepto de tradición en ruinas y establece una relación sinuosa que anula la continuidad. Se trata de una crítica a un tipo de circulación de sentido, a las relaciones entre las construcciones sociales del sentido y las construcciones artísticas. 12 Nos referimos ala ponencia presentada por Alejandra Mailhe “Fábulas de la tansculturación en Macunaíma. Una lectura crítica del modernismo brasileño”(UNLP-UNER) en las Jornadas de la cátedra de Historia Americana del Depto. de Historia, Fac. de Humanidades UNMdP, agosto de 2004. 10 144 Gragoata 22.indb 144 Niterói, n. 22, p. 133-144, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:26 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza Paulo Sérgio Marques Recebido 9, jan. 2007/Aprovado 29, mar. 2007 Resumo O objetivo deste estudo comparativo entre duas cenas de morte presentes em Maíra, do brasileiro Darcy Ribeiro, e Huasipungo, do equatoriano Jorge Icaza, é mostrar as diferentes concepções da morte, da cultura branca européia e do indígena americano, apresentadas nos dois romances indigenistas, e como elas expressam uma cosmovisão peculiar a cada uma dessas culturas, a cristã e a pagã, a colonizadora e a colonizada. Enquanto em Jorge Icaza a morte descrita pelo olhar do colonizador serve de objeto de hierarquização e separação, a morte pelo olhar indígena de Maíra revela-se como um processo de comunhão e participação. Utilizamos, para a comparação, elementos da crítica arquetípica e antropológica, a partir das teorias de Humberto Maturana, Gilbert Durand e Joseph Campbell, dentre outras. Palavras-chave: Literatura brasileira; Literatura hispano-Americana; Indigenismo; Mito e Narrativa. Gragoatá Gragoata 22.indb 145 Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:26 Gragoatá Paulo Sérgio Marques O brasileiro Darcy Ribeiro e o equatoriano Jorge Icaza são representantes de uma literatura que, no século XX, buscou denunciar o extermínio cultural e racial dos povos indígenas sul-americanos. Em Maíra e Huasipungo, respectivamente, os autores retratam as conseqüências letais para o indígena do processo civilizador. Daí a morte como tema presente e significativo nos dois romances. Em Icaza, ocupado em denunciar o extermínio dos quíchuas, a imagem da morte é coordenada pela visão expansionista do colonizador; em Ribeiro, ela assume as conotações do imaginário indígena, que a sacraliza e afirma-a contra a ideologia dominadora patriarcal. Bella Jozef aponta Jorge Icaza como o principal representante do movimento indigenista hispano-americano iniciado em 1930. Em Jorge Icaza, como em Ciro Alegría e José María Arguedas, o “costumbrismo” superficial e a tradição indianista ao gosto romântico são suplantados por um indigenismo de realismo brutal, que constrói atmosfera tensa. É caracterizado pelo propósito de crítica social e política, principalmente no Equador, Peru e Bolívia, contra a exploração do índio e a dominação estrangeira, que queria expulsar os índios de seu próprio ambiente. (JOZEF, 1986, p. 121) A questão indígena também se verifica na realidade social brasileira. Em princípios do século XX, ocorre uma nova investida do crescimento econômico para o interior, mobilizada pelo projeto republicano de levar ao país o “progresso”, o que provoca novos conflitos entre brancos e índios: Nos primeiros vinte anos de vida republicana nada se fez para regulamentar as relações com os índios, embora nesse mesmo período a abertura de ferrovias através da mata, a navegação dos rios por barcos a vapor, a travessia dos sertões por linhas telegráficas, houvessem aberto muitas frentes de luta contra os índios, liquidando as últimas possibilidades de sobrevivência autônoma de diversos grupos tribais até então independentes. [...] O extermínio dos índios era não só praticado mas defendido, e reclamado como o remédio indispensável à segurança dos que “construíam uma civilização no interior do Brasil. (RIBEIRO, 1982, p. 127-128) Entretanto, variam os modos de representação do choque cultural na ficção brasileira e na hispano-americana. Nosso realismo crítico concentrou-se, na década de 30, na questão rural e regionalista, sem abordar diretamente o problema indígena, enquanto o indigenismo mais significativo encontra-se no Macunaíma, de Mário de Andrade, em que o mito e a narrativa mágica rompem com o discurso realista, e a crítica social se faz pela via alegórica. O Brasil não conhece, pois, a perspectiva puramente realista-social do indigenismo hispano-americano da década de 30. Apenas quarenta anos mais tarde, a ficção de Darcy Ri146 Gragoata 22.indb 146 Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:26 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza beiro e Antonio Callado desenvolverá a crítica social direta que pautou a literatura indigenista andina anterior. Por isso Moacir Werneck de Castro saúda a publicação de Maíra como “uma obra que, provavelmente, marcará a segunda metade do século XX na literatura brasileira assim como Macunaíma, de Mário de Andrade, marcou a primeira metade” (2001, p. 391). Para ele, a ficção de Darcy Ribeiro, embora fosse publicada quase dez anos após o Quarup, de Callado, abria “uma nova vertente na literatura brasileira”, rompendo, de um lado, com o indianismo romântico e, de outro, com o relato mítico iniciado com Mário de Andrade e prosseguido em obras como o Manuscrito holandês, de Manoel Cavalcanti Proença, publicado em 1960. No Brasil, contudo, a crítica social do novo indigenismo aparece matizada pelo mesmo elemento mágico característico da narrativa hispano-americana da segunda metade do século. Portanto, o que Antonio Cornejo Polar descreve para o indigenismo andino posterior à geração de 30 serve em parte para a obra de Darcy Ribeiro no Brasil: Una década más tarde comienzan a aparecer textos que, aunque entroncados en la tradición indigenista, se distancian de ella por muchos conceptos: nuevas perspectivas, más antropológicas que sociales; difuminación, pero no abandono, del tono denunciatorio y reivindicativo; empleo de nuevas técnicas y usos narrativos, más tarde emparentados con los del realismo mágico, etc. (POLAR, 1993, p. 736) É importante lembrar, nesse caso, que Darcy Ribeiro exilouse em país andino e foi em Lima, capital peruana, que redigiu a terceira e última versão de Maíra. Por tudo isso, embora um pouco distantes no tempo, existem qualidades temáticas e estilísticas que aproximam as obras de Darcy Ribeiro e de Jorge Icaza, como de outros indigenistas andinos. Ángel F. Rojas afirma que os autores andinos de 30 não fortalecem a individualização de suas personagens, mas concebem-nas como “homem-massa”, personagens e caracteres coletivos (apud JOZEF, 1986, p. 122). Essa característica é mais forte em Icaza do que em Alegría ou Arguedas, como também é mais presente em Darcy Ribeiro do que em outros indigenistas brasileiros. De Huasipungo, Polar afirma que “las caracterizaciones en bulto y los diálogos sin emisor determinado tendrían que leerse como formas especialmente apropiadas para desubjetivizar la problemática andina y para poner en primera línea su índole colectiva” (1993, p. 731-732). Em Darcy Ribeiro, por sua vez, é principalmente a multiplicidade de vozes e focalizações nos capítulos do romance que dificultam a individualização da trama: Embora encontremos em mais da metade dos 66 capítulos a presença de um narrador onisciente, [...] ao lado do “eu” do narrador, sujeito do discurso, a narrativa se fragmenta em Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 147 147 6/11/2007 14:26:26 vários “eus”, compondo-se num caleidoscópio em que dos vários ângulos vai surgindo a imagem do todo. Uma imagem semovente, plural, ambígua. (MARIA, 2001, p. 402) O discurso indireto livre, em ambas as obras, permite que se revelem a perspectiva, os sentimentos, os pensamentos e a linguagem dos participantes do conflito, o civilizador branco e o autóctone. Na caracterização dessas personagens, em Maíra ocorre o mesmo que Bella Jozef observa em Huasipungo: “A crítica deriva para a ironia e para o grotesco, como acontece com a personagem-tipo do latifundiário. Os que têm humanidade são os índios” (JOZEF, 1986, p. 123). Mostram, com isso, como o contato de uma cultura indígena com a civilização branca desencadeia uma crise no cosmo da comunidade indígena, uma invasão generalizada de forças caotizantes externas poderosíssimas. “A história das nossas relações com os índios é, em grande parte, uma crônica de chacinas e sobretudo, de epidemias”, comenta Darcy Ribeiro (1982, p. 208), cujo Maíra, como o Huasipungo, de Jorge Icaza, fala da extinção de um povo e de uma cultura, por isso o tema da morte é expressivo nas duas obras. Huasipungo, em quíchua, é o nome que se dá à porção de terra cedida aos índios pelo proprietário, em troca de trabalho no latifúndio. O livro de Icaza narra o conflito entre o latifundiário Don Alfonso Pereira, que, depois de explorar a mão-de-obra indígena na expansão da fazenda, estende os seus domínios aos huasipungos da comunidade, retirando ao indígena tudo o que ainda mantinha sua sobrevivência. Como caso individual de exploração, aparece a história de Chiliquinga, cuja mulher, Cunshi, pressionada pela fome como toda a comunidade, morre depois de comer carne apodrecida. O episódio em que a morte figura mais diretamente é o do cerimonial fúnebre de Cunshi. Enquanto o corpo está sendo velado, Chiliquinga combina com o vigário o sepultamento da mulher, e o sacerdote conduz o índio num passeio pelo cemitério cristão, que é descrito como um latifúndio: “¡Mira! – insistió el cura observando el camposanto con codicia de terrateniente – según las malas lenguas aquello era su latifundio” (ICAZA, 1975, p. 163). Proprietário da morte, o vigário trata-a como mercadoria: “Arrimándose plácidamente al tronco de un ciprés, continuó ponderando las excelencias de su mercadería con habilidad de verdulera” (ICAZA, 1975, p. 164). E exibe todas as habilidades de um bom negociante: “Al notar el religioso que el indio bajaba los ojos como si tuviera vergüenza de que la mercadería factible a sus posibilidades sea tratada mal, el buen Ministro de Dios se apresuró a consolar” (ICAZA, 1975, p. 164-165). À maneira da terra dividida entre patrões e empregados, aos primeiros as melhores e mais férteis e, aos segundos, os huasipungos ribeirinhos, expostos ao risco das enchentes, o ce- Gragoata 22.indb 148 6/11/2007 14:26:27 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza mitério apresenta-se como uma plantação de cruzes, a lavoura do vigário, “una especie de sementera de tumbas, toda florecida de cruces, que se extendía a la culata del templo” (ICAZA, 1975, p. 163). A mitologia cristã combina-se, então, a um discurso agrícola para classificar os mortos: – Éstos... Los que se entierran aquí, en las primeras filas, como están más cerca del altar mayor, más cerca de las oraciones, y desde luego más cerca de Nuestro Señor Sacramento [...], son los que van más pronto al cielo, son los que generalmente se salvan. [...] Mira bien – insistió el sotanudo señalando al indio alelado las cruces de la primera fila de tumbas a cuyos pies crecían violetas, geranios, claveles. [...] Avanzó por un pequeño sendero, y continuó su sermón ante las cruces de las tumbas que se levantaban en la mitad del camposanto: – Estas cruces de palo sin pintar son todas de cholos e indios pobres. Como tú puedes comprender perfectamente, están un poco alejadas del santuario, y los rezos llegan a veces, a veces no. La misericordia de Dios, que es infinita [...], les tiene a estos infelices destinados al purgatorio. [...] Es como los rosales que ves aquí: un poco descuidados, envueltos en maleza, pero... Mucho les ha costado llegar a liberarse de las zarzas y de los espinos... Mas, al fin y al cabo, un día florecieron, dieron su perfume. [...] El indio se metía por unas tumbas mal cuidadas, derruídas, cubiertas de musgo húmedo y líquenes grises. [...] El señor cura, con mirada de desdén y asco, señalando hacia el rincón final del cementerio, donde no se veía sino cruces apolilladas, donde las hortigas, las moras y los espinos habían crecido en desorden de cabellera desgreñada de bruja, donde un zumbar continuo de abejorros y zancudos escalofriaba el ánimo. [...] – Allí... Los distantes, los olvidados, los réprobos. [...] Los del... [...] ... ¡infierno! (ICAZA, 1975, p. 163-166) Nota-se que o cemitério cristão reproduz o escalonamento da sociedade capitalista, e o espaço da morte recebe daqui o seu princípio normatizador. O enterro na primeira fileira do cemitério é o mais caro; as últimas covas são as mais baratas, mas ali “sólo habitan los demonios” (ICAZA, 1975, p. 166). Certamente Chiliquinga só tem dinheiro – se o tiver – para pagar uma cova no “inferno” do campo santo, à margem do sistema civilizador. A morte é um elemento de ordenação cultural, pois comunica com o sobrenatural e o sagrado, que é o ponto de referência para a organização cultural (ELIADE, 2001, p. 25-26). Em Huasipungo, há uma penetração do material no sagrado, uma profanação da morte pelas leis do capital, pela qual a morte se torna elemento de separação e hierarquização, concebida da Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 149 149 6/11/2007 14:26:27 Gragoatá Paulo Sérgio Marques perspectiva do dominador branco, europeu, patriarcal e expansionista. Na mesma imagem, a morte, que deveria devolver o indivíduo ao estado coletivo do morto sem nome, mantém o individualismo da sociedade de classes, enquanto o espaço natural é geometrizado como um campo para cultivo e exploração de riquezas. A atitude ilegítima desse espírito mercantil que perverte a morte aparece na própria indignação do vigário, que ironicamente condena o ato de ver as coisas “celestiais” como “transações terrenas”, quando Chiliquinga lhe pede para fiar o pagamento do enterro: ¿Entrar al cielo al fío? No faltaba otra cosa. ¿Y si no me paga el indio aquí en la tierra quién le saca a la difunta de allá arriba?”, pensó el párroco verdaderamente indignado. Luego continuó: – No se puede. Eso es una estupidez. Mezclar las burdas transacciones terrenales con las cosas celestiales. ¡Dios mío! ¿Qué es lo que oigo? ¿Qué ofensa tratan de inferirte Señor? [...] En el otro mundo todo es al contado. (ICAZA, 1975, p. 167) Em Maíra, por sua vez, o tema da morte é tão presente, que Maria Luiza Ramos chega a defender que ele constitui o leitmotiv do romance (2000, p. 159). Já os primeiros capítulos da trama mostram duas mortes, a da branca Alma e a do índio Anacã. Enquanto a primeira aparece fatalizada no cadáver encontrado na mata e denuncia seu poder nulificador pelo título inominado de “A morta”, a morte do chefe mairum é preparada e ritualizada, de forma a perder seus contornos trágicos, e o capítulo leva o nome próprio do tuxaua que, imortalizado, não o perderá. Como afirma Maria Luiza Ramos, “ao contrário da morte violenta da mulher branca, na exuberância de seus prováveis trinta anos, a morte do tuxaua representa a saturação do exercício de uma vida que, atingindo a idade avançada, deve se extinguir” (2000, p. 142). É, portanto, uma morte necessária e desejada. Para os mairuns e sua cosmovisão antipatriarcal, morte é, paradoxalmente, vida; e, ao contrário, o que se pensa ser vida, revela-se em verdade morte. Por isso Anacã deseja sua própria morte: “Preciso morrer para que surja e cresça o tuxaua novo”. É que a morte, concebida no interior da própria vida, não é sua negação, mas a conseqüência de sua intensidade: “Já dancei muito Coraci-Iaci. Já cantei muito maré-maré. Já comi muito pacu. Já bebi muito cauim. Fodi bastante. Já ri demais. Estou velho. Chegou minha hora, vou acabar” (RIBEIRO, 2001, p. 37). Quando, então, recebem o comunicado do tuxaua, os mairuns contemplam o pôr-do-sol “quase com alegria”, pois o que define o momento não é um sentimento de fim, mas de transição: “Já não é dia e ainda não é noite” quando surgem as mulheres com água da Lagoa Negra para fazer, na cova de Anacã, o barro da 150 Gragoata 22.indb 150 Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:27 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza vida. Então, “Anacã está sepultado. Logo morrerá. A vida deve, agora, renascer” (RIBEIRO, 2001, p. 40). Os ritos fúnebres nada têm da desesperança do passeio de Chiliquinga pelo cemitério. O exercício de cavar a cova de Anacã assemelha-se a rituais de fertilidade, em que, sobre uma fenda no chão, os celebrantes introduzem as mãos ou varas de madeira para imitar o ato sexual: “Os homens de todas as famílias da banda azul-ouí se revezam abrindo, no chão duro de bate-pé do pátio de danças, a cova de Anacã. Trabalham devagar, com paus de ponta endurecida a fogo, que ressoam ao ferir a terra, marcando um ritmo lúgubre” (RIBEIRO, 2001, p. 39). É que cova e ventre, nessa visão eufemista da morte, participam da mesma função: “[Jaguar] usava a palavra oco e apontava a minha xota, dizendo que é o oco da vida e tem o mesmo nome de certo patuá não sei de quê, cheio de ossos emplumados, que é o oco da morte”, conta Alma. “Por um se nasce aqui neste mundo, dizia ele, por outro se nasce lá no outro mundo. Por isso, dizia, o defunto daqui é o bebê de lá e o bebê daqui é o defunto de lá, e são chamados também pela mesma palavra” (RIBEIRO, 2001, p. 345). Ao final, a rega de Anacã traz a exuberância e o colorido do verão e as festas e danças dos mairuns. Ao redor de sua cova se celebrará a festa de Jurupari e o ritual de passagem dos adolescentes da tribo: “Tudo rola ao redor do umbigo do mundo: esse pátio mairum com o tuxaua Anacã plantado no meio” (RIBEIRO,2001, p. 100). Anacã, portanto, não morre, como insiste o mundo civilizado em dizer de Alma. Quando ele decide morrer, torna-se, em verdade, um “morto-vivo” (RIBEIRO, 2001, p. 38). Como observa Maria Luiza Ramos, sua morte é “predeterminada”: “O chefe decide que vai deitar-se para dormir e não mais acordar. Já viveu bastante e é preciso que se afaste para que a vida de seu povo se renove; não há sepultamento nem cremação, nada que faça desaparecer o cadáver por motivos éticos ou metafísicos” (RAMOS, 2000, p. 168). Exposta no enredo, como diz Antonio Candido, “por etapas” (2001, p. 384), a morte de Anacã é uma morte experimentada, uma morte vivida. A morte do tuxaua é, portanto, um ato consciente, por isso não cai no não-ser absoluto, mas num modo de ser absolutamente, pois, com a morte, o indivíduo se integra ao natural e invade os interstícios do mundo, o que se inscreve no texto pelo impregnante miasma de Anacã tomando conta da tribo: Anacã [...] apodrece e fede com uma catinga doce, penetrante, terrível. Sua presença já se sente conforme sopre o vento, desde as dunas do Iparanã até o oco da mata. Não é um fedor de carniça de bicho morto ou de defunto desenterrado. É um cheiro agudo como ponta de flecha, leve como penugem, cortante como lasca de taquara. E sempre eternamente presente no nariz de cada um. Até no meio da mata, caçando, fugindo Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 151 151 6/11/2007 14:26:27 Gragoatá Paulo Sérgio Marques dele, ele cheira; levado na pele, nos cabelos, sabe-se lá onde. (RIBEIRO, 2001, p. 55) Maturana utiliza o termo “matrístico” para “conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico”, isto é, num sentido oposto ao de “matriarcal”, referente a uma cultura onde a mulher teria papel dominante (MATURANA, 2004, p. 25). 1 152 Gragoata 22.indb 152 Morrer é, então, viver plenamente: “Nunca Anacã, o tuxaua, esteve tão presente e dominador” (RIBEIRO, 2001, p. 67). A onipresença de Anacã é simbolizada ainda em seu prolixo sepultamento, que percorre as imagens dos quatro elementos materiais: primeiro enterrado e regado com a água da Lago Negra, depois seus restos são pendurados ao vento sobre o leito da lagoa, mas não sem antes ter os ossos enfeitados com “plumas de cores” como “pássaros vivos”, figura que remete ao fogo e à fênix que o simboliza, célebre imagem da eternidade e do poder de ressurreição. Seu enterro nas águas confere-lhe também a divindade tribal, uma vez que “o lugar de Maíra”, deus máximo dos mairuns “fica nas águas” (ZANNONI, 2000, p. 171). No capítulo da exumação do tuxaua, intitulado “Manon”, que é a palavra mairum para o espírito presente do morto, durante a cerimônia fúnebre e antes do sepultamento final, os ossos de Anacã são distribuídos aos clãs (RIBEIRO, 2001, p. 121). Ainda nesse capítulo, parágrafos atrás, o tuxaua era descrito como aquele que “juntou os mairuns”, “fundiu os clãs”, que antes viviam dispersos (RIBEIRO, 2001, p. 119). Daí o papel aglutinador de Anacã, que ele agora cumpre ainda na morte. Então, as imagens relacionadas à transformação da morte em vida seguem. A certa altura do ritual, os presentes escarificam a pele: “Quando o sarjador desce dilacerando, o que se vê primeiro são simples linhas brancas. Mas elas prontamente escurecem, depois brilham de repente em tons rubros e afinal jorram sangue pela cara, pelos peitos, pelos braços” (RIBEIRO, 2001, p. 121). Do branco ao escuro ao vermelho, a pele dos mairuns transita pelas três cores alquímicas do branco e preto, afirmação e negação, para o vermelho final, de união dos opostos, quando então jorra o líquido representativo da vida animal. Maria Luiza Ramos vê no próprio ato de superdominação do cadáver de Anacã um “ato canibalesco” e “incestuoso”, a condição de “um-só-corpo da relação mãe-filho”, pois, enquanto é absorvido pela respiração, o miasma de Anacã passa a fazer parte de outro corpo, desrespeitando “os limites do domínio corporal do outro”. Então, “a função paterna cede lugar à função materna, ao estágio dual em que o corpo assume um papel predominante. Não a pele, em que a lei se escreve, mas o próprio corpo, em que a catinga de Anacã se inscreve” (RAMOS, 2000, p. 169-170). Temos, portanto, em Huasipungo e em Maíra, visões opostas da morte, uma marcada pelo imaginário patriarcal e outra por um imaginário, por assim dizer, feminino. O biólogo e historiador das culturas Humberto R. Maturana, da Escola de Santiago, explica que o patriarcado e a cultura pré-patriarcal, que ele chama “matrística”1, caracterizam-se por Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:28 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza “modos diferentes de viver as relações humanas” (2004, p. 35). Maturana e Verden-Zöller (2004, p. 18-21) afirmam que, quando a humanidade nasceu, há mais ou menos três milhões de anos, vivia, de forma natural e sem reflexões ou artificialismos, em redes de conversações que “envolviam a colaboração dos sexos na vida cotidiana, por meio do compartilhamento de alimentos, da ternura e da sensualidade”. No mundo matrístico, “é crível que as conversações de tal rede fossem de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 42). O pensamento não distingue as coisas entre si, mas as concebe integradas num todo harmônico. Na cultura matrística “o pensamento humano talvez tenha sido naturalmente sistêmico, lidando com um mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo era o que era em suas conexões com tudo mais” (MATURANA, 2004, p. 46). A cultura pré-patriarcal foi destruída por povos pastores indo-europeus. Maturana explica que, dentre os povos paleolíticos de há mais de 20 mil anos, alguns foram “sedentários, coletores e agricultores”, e outros seguiram as migrações de animais selvagens. No rastro desses animais, aparece, em determinado momento, a necessidade de proteger os grupos perseguidos do ataque de outros predadores. Na opinião de Maturana, a cultura do pastoreio surge justamente “quando os membros de uma comunidade humana, que vive seguindo alguma manada específica de animais migratórios, começa a restringir o acesso a eles de outros comensais naturais, como os lobos” (MATURANA, 2004, p. 52-53). Ocorre, a partir dessa nova atividade, um emocionar diferente, e uma das primeiras emoções modificadas diz respeito à relação do sujeito com a morte. Nas sociedades matrísticas, o mundo era a deusa e a terra era a mãe universal, dotada dos atributos femininos de proteção e nutrição. Como afirma Campbell (2002b, p. 115), “há uma estreita e evidente correspondência entre a atitude da criança com relação à mãe e a do adulto com relação ao mundo material circundante”. A vida é um processo em que cada criatura vive em função da morte de outra, num fluxo contínuo de transferência de energia de um ser a outro, que mantém a eternidade do universo. O caçador primitivo, quando matava um animal para se alimentar, entendia que praticava um ato sagrado, integrado à harmonia do cosmo, segundo a qual a morte existe para gerar a vida. Com a apropriação dos rebanhos e o estabelecimento de fronteiras entre o espaço central de ação humana e o espaço periférico da ação de outros predadores, os grupos pastoris tiveram certamente que matar os rivais na caça. Caçar para alimentar-se “e matar um animal restringindo-lhe o acesso a seu alimento natural – e agir assim de modo sistemático – são Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 153 153 6/11/2007 14:26:28 Gragoatá Paulo Sérgio Marques ações que surgem sob emoções diferentes”, comenta Maturana (2004, p. 54). “No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindose diretamente à eliminação da vida do animal que mata”, isto é, a vida do animal não serve a outra vida, mas é, ao contrário, dispensada, expurgada, eliminada, para que um outro sujeito exerça sua supremacia sobre o mundo e as coisas. “Essa matança não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra possa prosseguir”, observa o autor. “Aqui, uma vida é suprimida para conservar uma propriedade, que fica definida como tal nesse mesmo ato.” As emoções despertadas por um e outro ato são, portanto, opostas. No caso do caçador, o animal caçado é um ser sagrado, divino como qualquer parte de uma natureza divina, que é sacrificado para manter o equilíbrio da existência e desperta, por isso, no caçador um sentimento de gratidão e de respeito pela morte; contudo, para o pastor, matar constitui antes um puro assassinato, para manter, não uma harmonia natural, mas uma ordem artificial, edificada no ato da delimitação e apropriação de um espaço natural, o rebanho: “Na ação de caça o animal caçado é um amigo, enquanto que na ação de matar o animal morto é um inimigo”. Na origem do pastoreio surge, portanto, o antagonista mítico, “aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa” (MATURANA, 2004, p. 56). Assim, se o caçador respeitava e aceitava a morte como uma condição mútua de sobrevivência entre duas espécies, a partir da experiência pastoril, ao contrário de um bem que traz a vida, a morte é vista como um mal, que conduz à perda e ao fim. No emocionar do caçador, se o animal pode ser morto para alimentá-lo, também é natural que um caçador o seja ocasionalmente, para a manutenção do equilíbrio cósmico; na visão do pastor, o Outro, animal predador ou homem de outro clã, é um inimigo que ameaça, e o imperativo é matá-lo antes de ser morto. A morte, que na visão matrística iguala as criaturas, no patriarcado submete-se, então, a um conceito hierárquico. Por outro lado, como o emocionar e a ação dos desejos nunca se limitam a apenas uma esfera da existência, mas estão sempre lá onde está o sujeito, se as conversações de apropriação e hostilidade surgem e são aprendidas no trabalho do pastoreio, logo se estendem a todas as demais atividades da vida social, como o trato da terra e o domínio das idéias e das crenças, estabelecendo três outras mudanças: “o desejo constante por mais, numa interminável acumulação de coisas que proporcionavam segurança; a valorização da procriação como forma de obter segurança mediante o crescimento do rebanho ou manada; e o temor da morte como fonte de dor e perda total” (MATURANA, 2004, p. 59-60). O homem da cultura pastoril e patriarcal sente, 154 Gragoata 22.indb 154 Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:28 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza assim, desejo de aumentar as fronteiras artificialmente demarcadas para cada vez mais eliminar os riscos periféricos – é lei da geometria: reduz-se a periferia aumentando as margens do centro. A cultura patriarcal européia surge, pois, “como uma alteração na configuração do emocionar” de onde “resultou uma mudança” nas formas de pensar, agir, desejar ou relacionar-se (MATURANA, 2004, p. 12). Trata-se de uma cultura que “valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação dos recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade” (MATURANA, 2004, p. 37). Existem, pois, no imaginário antropológico, duas posturas diferentes diante da morte, conforme ela surja de um emocionar patriarcal ou de um emocionar matrístico. Campbell (2002a, p. 91) define a postura das culturas pastoris, própria dos povos civilizadores, como “negativa em relação à morte e positiva em relação ao ego” e a das sociedades agrícolas ou dos “plantadores tropicais”, característica dos povos ameríndios, como “negativa em relação ao ego e positiva em relação à morte”. Para este, a morte está na vida; para o outro, a vida exige a morte. As imagens benfazejas da morte compõem o que Gilbert Durand denominou o “Regime Noturno” do imaginário, caracterizado por uma inversão da hostilidade própria do herói solar do Regime Diurno. No Regime Noturno, o mal instituído pela visão separatista de um ego acentuado converte-se em bem e o sujeito repousa num modelo materno da morte (DURAND, 2002, p. 197-198). A queda é vista como descida, num processo que Bachelard chamou “complexo de Jonas”, aludindo ao profeta bíblico que passou três dias no ventre da baleia e foi vomitado vivo. Por meio desse complexo, a urna funerária converte-se em ventre: “Sair do ventre é nascer, sair de um sarcófago é renascer. Jonas, que permanece no ventre da baleia três dias como Cristo permanece no túmulo, é pois uma imagem de ressurreição”, comenta Bachelard, para quem a essa imagem associa-se o “tema da Morte maternal”, o “tema da crisálida”, isto é, a urna de carne, o ventre. As imagens da crisálida e do sarcófago “têm o mesmo centro de interesse: um ser encerrado, um ser protegido, um ser escondido, um ser restituído à profundidade de seu mistério. Este ser sairá, este ser renascerá. Há aí um destino da imagem que exige essa ressurreição” (BACHELARD, 2003, p. 139, grifos do autor). Por isso, enquanto a imaginação diurna e patriarcal quer limpar o indivíduo, purificá-lo de todos os resíduos de sua mortalidade terrena, a matrística e noturna quer, ao contrário, misturá-lo à terra, torná-lo ao barro imemorial de onde a vida sempre ressurge. “Debía ir al viaje eterno limpia como llegó a la vida”, diz o narrador de Huasipungo do cadáver de Cunshi, descrevendo a preparação do corpo para o velório (ICAZA, 1975, Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 155 155 6/11/2007 14:26:28 Gragoatá Paulo Sérgio Marques p. 163). Aqui o indivíduo deve separar-se do mundo para viver puro na eternidade. Anacã, ao contrário, deve fundir-se à Terra Mãe, sua cova é regada como um canteiro e sua “alma” é o barro que anuncia nova vida: O aroe [...] estende então os dois braços em toda a extensão para os lados, os aproxima depois lentamente, um do outro, junta as mãos espalmadas e as baixa, simultaneamente, afundando-as na terra mole da cova. As enterra juntas, devagar, e começa a afastar a crosta de barro para os lados. Descobre, assim, por debaixo, uma camada de lama mole escura, de onde sai um cheiro intensíssimo, terrível. Trabalha, agora, com as mãos retirando aquela lama debaixo e escorrendo com uma cuia o líquido verde, espesso, gordo, em que se desfizeram as carnes de Anacã. A caveira começa a aparecer cinzenta, sobre o fundo da cova, brilhando à luz da manhã. (RIBEIRO, 2001, p. 120) Para o narrador da exumação de Anacã, importa mais sentir nas mãos o húmus vital em que se transformou a carne do tuxaua, cujo crânio surge do barro verde da cova, reluzindo na manhã como um sol nascente. Da mesma forma, enquanto, em Huasipungo, “la muerta, en cambio, con su olor nauseabundo pedía sepultura a gritos” (ICAZA, 1975, p. 168), isto é, conclamava a urgência de separar-se dos vivos, o cheiro de Anacã, como vimos, é “doce” e, na morte, está “eternamente presente”. Essas diferenças nas imagens da morte veiculadas nos dois romances devem-se à predominância, em um ou outro, da visão patriarcal ou matrística, respectivamente do civilizador ou da cultura tropical. No romance de Icaza, a cultura do civilizador é hegemônica também no enredo, e os indígenas permanecem como que sem voz. Na representação do conflito entre o projeto civilizador e os anseios indígenas, estes aparecem esmagados e subsumidos pela cultura dominante e sobressaem-se “a ignorância, a ingenuidade e o primitivismo dos índios em relação à esperteza do latifundiário, que incentiva o modus-vivendi do indígena, com rasgos animalescos, repugnantes, explorado por todos os poderes” (JOZEF, 1986, p. 123). Daí a predominância da caricatura, a aparência grotesca de muitas cenas, como a da mercantilização do cemitério, e a ausência de elementos culturais autóctones que tantas vezes se criticou no autor. Tudo o que se apontou como falha em Icaza é, na verdade, recurso estilístico para servir “a la representación de una realidad atroz” (POLAR, 1993, p. 731). Se a cultura indígena está pouco manifesta, é porque os valores colonizadores são onipresentes: El lector siempre quedará insatisfecho por la falta de profundidad del conjunto de la representación narrativa. Tal se advierte, en especial, en la ausencia de contenidos culturales en la caracterización del pueblo indígena [...] y en la captación de su accionar en términos fundamentalmente reactivos, casi como pura respuesta a la brutal agresión de los poderosos. [...] Huasipungo describe e condena el estado de opresión que 156 Gragoata 22.indb 156 Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:28 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza sufren los campesinos indios, explica y también condena el sistema que ejerce la explotación, y los mecanismos que usa, avala la justicia de la rebelión indígena, que propone como solución al problema de la discriminación y la expoliación que soportan los indios, pero su mundo interior, los valores de su cultura, quedan difuminados y en algunos casos hasta puestos en cuestión, como si el dominio social que los oprime hubiera también liquidado sus modos de entender el mundo y la vida, incluyendo la propia. (POLAR, 1993, p. 732) O episódio do cemitério é, pois, eloqüente com respeito à dominância do imaginário civilizador no livro de Icaza: é o homem branco que ordena este mundo, por isso a morte é concebida na hierarquia. Para o indígena, a morte no patriarcado é absoluta, pois ele está relegado à margem do sistema estratificado. Então, o leitor de Huasipungo “siente indignación frente a los abusos de los terratenientes, que el narrador condena una y otra vez, pero con respecto al pueblo indígena es poco probable que sienta otra cosa que piedad y conmiseración. Parece destruido para siempre” (POLAR, 1993, p. 729). Por isso, para Polar, apesar de sua estratégia política “endeudada del positivismo”, com vistas a “condenar la crueldad de los terratenientes”, o romance de Icaza é o “que comprende mejor la índole del problema andino” (POLAR, 1993, p. 731). Enquanto, porém, Huasipungo é o relato de um extermínio, numa batalha à qual apenas uma cultura poderá sobreviver, Maíra narra a transformação cultural para esta mesma sobrevivência e sua trama mostra a transfiguração étnica do povo mairum para adaptar-se à situação de conflito desencadeada pelo encontro com uma cultura mais agressiva. Darcy Ribeiro defendia que, às comunidades indígenas cabem três formas de reação à invasão civilizadora: a “fuga para territórios ermos”, num adiamento do combate frontal; a “reação hostil aos invasores”, que envolve a vida tribal num estado de guerra contínua; ou a “aceitação do convívio”, uma “fatalidade inelutável” a que, mais cedo ou mais tarde, todas as tribos se conformam (RIBEIRO, 1982, p. 220). Estas três reações são as que freqüentemente se vêem representadas no romance indigenista do século XX. A primeira reação é a da comunidade de Rosendo Maqui, no romance de Ciro Alegría, O mundo é grande e estranho; a segunda figura na conclusão do Huasipungo, de Jorge Icaza; a terceira, finalmente, constitui o tema do Maíra, de Darcy Ribeiro. É que o terceiro problema talvez tenha tomado maior relevo aos olhos dos brasileiros do século XX. Quando, diante da nova investida republicana para o interior, o indígena reage, a sociedade urbana divide-se ao posicionar-se diante dos dois lados do conflito. Com a literatura romântica de José de Alencar e Gonçalves Dias, o índio tinha passado a fazer parte do “sentimento de uma nacionalidade Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 157 157 6/11/2007 14:26:29 Gragoatá Paulo Sérgio Marques brasileira” (GOMES, 2000, p. 26). A população urbana, cuja visão da questão indígena era vista através dos olhos daqueles autores, não se identificava com os interesses dos novos colonizadores e não aceitava o tratamento hostil às tribos: Abria-se um abismo entre a mentalidade das cidades e a dos sertões. Enquanto, para os primeiros, o índio era personagem idílico de romances no estilo de José de Alencar ou dos poemas ao gosto de Gonçalves Dias, ou ainda, o ancestral generoso e longínquo, que afastava toda suspeita de negritude; para o sertão, o índio era a fera indomada que detinha a terra virgem; era o inimigo imediato que o pioneiro precisava imaginar feroz e inumano, a fim de justificar, a seus próprios olhos, a própria ferocidade. (RIBEIRO, 1982, p. 128-129) Nesse momento surge o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI), criado juridicamente pelo Decreto nº 8.072, de 20 de julho de 1910, e inaugurado em 7 de setembro do mesmo ano. Com a criação do SPI, são fixadas novas linhas para a política indigenista brasileira, cujo princípio era “o respeito às tribos indígenas como povos que tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças, de viver segundo o único modo que sabiam fazê-lo: aquele que aprenderam de seus antepassados e que só lentamente podia mudar” (RIBEIRO, 1982, p. 138). A medida foi tão inovadora que, segundo Darcy Ribeiro, a 39ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 1956, em Genebra, inspirou-se em grande parte na legislação brasileira para orientar políticas indigenistas de outros países (RIBEIRO, 1982, p. 141). O que Darcy Ribeiro e seus companheiros do SPI propunham não era nem extinção nem isolamento, mas condições de convivência nas diferenças: “O indigenismo brasileiro, superando essas atitudes extremadas, propugna por medidas que, resguardando o índio da extinção, o preparem paulatinamente para interagir em igualdade de condições com os demais brasileiros” (RIBEIRO, 1982, p. 195). Por isso a recusa da assimilação, que não pode ser admitida porque a sociedade assimiladora ocidental não é modelar, é exclusivista e segregacionista (RIBEIRO, 1982, p. 197). Huasipungo é um romance da assimilação: ali, o povo quíchua já aparece integrado ao sistema econômico capitalista, na qualidade de mão-de-obra servil. Por outro lado, enquanto Huasipungo concentra-se mais sobre a questão material da terra, Maíra discorre sobre os efeitos culturais do conflito. Darcy Ribeiro observa que o encontro das duas culturas resulta sempre na “marginalidade sóciopsicológica das tribos indígenas”, cuja cultura organizada é sobrepujada pela dominante e relegada às margens desta como elemento alterizado. Dentre as causas desta marginalização, o autor aponta duas principais: 158 Gragoata 22.indb 158 Niterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:29 Visões da morte no indigenismo de Darcy Ribeiro e Jorge Icaza – o engajamento compulsório dos índios em nosso sistema econômico, para cuja competição não estão preparados e que só lhes pode assegurar um padrão de vida ainda mais miserável que o dos mais pobres seringueiros, lavradores ou vaqueiros; isto é, condições de vida que dariam cabo de qualquer população; – a traumatização da cultura tribal ao impacto com uma sociedade dotada de equipamento material esmagadoramente superior, que assume tamanho prestígio aos olhos dos índios que determina um colapso no corpo de crenças e de valores através dos quais eles explicam o mundo e seu lugar nele e encontram motivo para viver e amar a existência. (RIBEIRO, 1982, p. 212-213) O romance de Jorge Icaza detém-se principalmente sobre a primeira causa e aborda os problemas da assimilação; o de Darcy Ribeiro concentra-se na segunda e tematiza o processo de transfiguração étnica, conceito com o qual o autor define a luta de uma etnia pela sobrevivência ao contato com sociedades nacionais hegemônicas, através da alteração contínua de sua biologia e cultura, para adaptar-se à condição de convívio. No Brasil, mais do que a assimilação, “o que prevalece é uma acomodação penosa que concilia certa participação na vida nacional com a perpetuação da identidade étnica discrepante” (RIBEIRO, 1982, p. 428). Por isso, enquanto a narrativa de Icaza fala de uma morte absoluta, a do índio marginalizado pela assimilação ao sistema hegemônico civilizador, o romance de Ribeiro aponta para uma morte relativa, uma morte escolhida como a de Anacã, na tentativa de fazer sobreviver algo maior. Daí as posições opostas em que a morte aparece em cada uma das estruturas narrativas: em Huasipungo, a cena do cemitério antecede o conflito final entre o civilizador e os quíchuas, apontando para a morte como conclusão da trama; mas em Maíra ela surge nos capítulos iniciais, como um pressuposto do enredo, de maneira que a impressão final do romance é a de uma vitória sobre a morte. Em Icaza a morte é absoluta e restritiva, porque a situação retratada só permite a visão civilizadora; já em Ribeiro, onde o indígena ainda tem voz, a morte revela sua qualidade de processo integrador das diferenças. É característica da literatura indigenista, brasileira ou andina, tentar o relato da civilização pelos olhos do Outro, pela recusa e denúncia do caráter excludente de toda ordem, da vontade de negar que move o sujeito civilizador. Em Huasipungo, o latifúndio do campo santo é o mundo hierarquizado onde vale mais o que está ordenado pela mão do homem; para gozar do privilégio de pertencer a esta ordem, o indivíduo precisa pagar um preço. Este é o princípio da alteridade: toda ordem é má, porque é excludente; a ordem é um exercício do poder; depois de servi-la, os índios são afastadas de seu gozo. É que, na cosmoNiterói, n. 22, p. 145-161, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 159 159 6/11/2007 14:26:29 Gragoatá Paulo Sérgio Marques visão patriarcal, a morte do Outro é condição para a sobrevida do sujeito; para o índio, a morte é antes uma passagem ao corpo cósmico e coletivo: morrer é viver no Outro. Abstract One objective of this comparative study between two scenes of death in the indigenous novels Maíra, by Brazilian Darcy Ribeiro, and Huasipungo, by Ecuadorian Jorge Icaza, is to disclose differing notions of death: the white European culture’s and the American native’s. Another objective is to show the way they expresses a peculiar weltanschuung to each culture: the Christian and pagan, and the settlers and settled. The settlers’ views about death in Icaza’s Huasipungo perform as objects of separation and hierarchy, while the natives’ views in Ribeiro’s Maíra appear as processes of communion and participation. Comparisons between each conception make use of anthropological and archetypal criticism methodologies from the theories of Humberto Maturana, Gilbert Durand, and Joseph Campbell, among others. Keywords: Brazilian Literature; HispanicAmerican Literature; indigenous; myth and narrative. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CAMPBELL, Joseph. Mitologia na vida moderna.. Tradução de Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002a. ______. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. 7. ed. 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Neste artigo, excepcionalmente, as notas de texto, por serem extensas, aparecem no final. * Gragoatá Gragoata 22.indb 163 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:30 Gragoatá Graciela Ravetti “Me interesa reflexionar un momento sobre cómo y por qué la búsqueda de la identidad, que suele estar asociada a la construcción de imágenes de espacios sólidos y coherentes, capaces de enhebrar vastas redes sociales de pertenencia y legitimidad, dio lugar al desasosegado lamento o la inquieta celebración de nuestra configuración diversa y múltiplemente conflictiva” (Antonio Cornejo Polar. Escribir en el aire) Pensar o transgênero performático1 implica decifrar arquivos que contêm performances que estão aí para nos desafiar, que nos chamam e nos cominam a tornar inteligível parte do que não pode ser formulado explicitamente pela escrita. Não se trata de anular o que de movimento tem a performance, embora, às vezes, quando a relacionamos de maneira intensa com a escrita, possa dar a impressão que pretendemos imobilizar o que deve sempre circular, de que tencionamos consolidar aquilo do que perdura, por definição, seu caráter incorpóreo. Flexibilidade, leveza, mas ao mesmo tempo continuidade e preservação, são os termos do desafio ao crítico e ao teórico da literatura quando esta apresenta seu viés de performática. Minha hipótese é que podemos reler e reescrever a história da literatura de América Latina da perspectiva do transgênero performático, e com isso, revelar outros saberes e competências, deslindar saberes culturais e poéticos. Poderia, assim, iniciar-se a descrição e o movimento de outro tipo de arquivo, para fundar uma nova autoridade no manejo desse arquivo. Neste ensaio trata-se de pensar entre épocas, para utilizar a feliz expressão de Nicolás Casullo (2004), com as dificuldades e impossibilidades que isso implica, ainda mais em se tratando dos anos 60 e 70 na Argentina — e por extensão em toda América Latina — em que o ideário da revolução armada enfrentou ditaduras e exércitos pseudo oficiais e a literatura foi umas das arenas onde os imaginários sociais se digladiaram. Pensando que a modernidade, mais do que um conceito, seria, como propõe Raúl Antelo (2006, p. 82 et seq.), uma categoria narrativa e que o que nos desafia é, na verdade, uma série de relatos de modernidade, podemos trazer à tona narrativas que foram sendo ocultadas por uma dinâmica de desaparecimento do problemático, mas que esses esquecidos voltam. Como afirma Rancière (1995, p. 238) A época que declarou terminadas as formas da aparência e do litígio do povo, que expulsou do visível até os “mitos” da fábrica e do operário e proclamou o reino do con-senso indiferente, vê reaparecer brutalmente a diferença do in-diferente. O operário “mito”, “mítico” reaparece sob a forma inominável do outro absoluto, do imigrante, que ocupa tanto mais espaço no real quanto ele perdeu, junto com seu nome de operário, seu lugar na aparência do povo. 164 Gragoata 22.indb 164 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:30 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti Um dos relatos perdidos é o da revolução socialista que, da teoria e da prática, no século XX, impulsionou e foi gerado por estruturas argumentativas nítidas cuja estabilização e permanência nos paradigmas hegemônicos não teve lugar. Esses movimentos de militância política, intelectuais e artísticos acabaram ocupando um lugar ambíguo e tranqüilizador na história, o das utopias fracassadas por impossíveis, ficaram como discursos e práticas museificados e estudados como fragmentos e ruínas exemplares do desvio, considerados como ruínas sem potencial para a revitalização do presente e que tendem a voltar com uma roupagem romantizada de glamour cinematográfico e histórias açucaradas de aventuras. A literatura, em particular, funciona, nesses casos, como um repertório de projetos descartados que tiveram seu momento — fugaz — de experimentação. Nestes tempos de reinado do mercado, os resíduos que exigem restituição podem vir a ser despidos de sua conceitualização de anacrônicos e pensados novamente, na simples tentativa de entender. A escrita performática dá subsídios para essa tentativa. O performático encontra-se com facilidade em muitas obras dos antigos gêneros e produtos das distintas escolas históricas e, ao destacar essa característica, minha percepção dos gêneros e das modalidades se modifica. O que passa a ter relevância para uma classificação de tipo genérico são as variantes derivadas da presença ou não da performance, das maneiras como essas formas são registradas e trabalhadas, sem que por isso desapareça o que caracteriza os gêneros. Ou seja, os textos podem continuar sendo estudados como romances, poemas, peças de teatro – dos períodos romântico, barroco, clássico, etc. – se for da necessidade do pesquisador, só que agora pensados a partir da performance. A intenção da mistura e da contaminação é muito evidente na noção de transgênero, não apenas por incluir formas e conteúdos diversos, mas por trazer signos provenientes de outras linguagens convocadas, de tecnologias não escriturais que se introduzem de algum modo na escrita, de vozes e de ritmos, de dança, de magia, de mitologias orais e de formas artísticas não lingüísticas, como, no caso de Mascaró, el cazador americano, o romance de Haroldo Conti, que, como resíduo vivo, resiste a seu momento de criação — anos 70 — e nos permite o encontro com projetos e práticas que foram-se dissolvendo no esquecimento e nos rótulos que (des)potencializam: de criações artísticas populares circenses e de performances políticas e culturais. O transgênero performático privilegia a voz, quer mostrar o movimento, registrar a ação e produzir efeitos de sensações2 que, de algum modo, produzem uma convergência de aspectos irredutíveis do passado, aspectos que nenhum documento pode atualizar em sua integralidade. Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 165 165 6/11/2007 14:26:30 Gragoatá Graciela Ravetti Sintoma de nossa época, o comportamento performático nas artes em geral e na literatura em particular restaura abismos pela própria teimosia em estar aí, fora do tempo e do espaço prefixados, e por obrigar o indivíduo a deparar-se com os mitos que o constituem e o ligam a uma ou a mais de uma comunidade, a um tempo-memória que funciona como um duplo do tempo linear e homogêneo e o convida a render-se à interpretação e ao entendimento da força de ações, cerimônias e rituais que podem entregar novos sentidos ou ajudar a criá-los. A princípio, as práticas performáticas são geradoras de contextos e os contextos são efeitos de transformações e movimentos gerativos de outros contextos. Os contextos são produzidos por práticas discursivas e não discursivas e os elementos que os compõem e integram são explícitos e implícitos, visíveis e invisíveis, conscientes ou não, e tudo isso exige uma teoria da cultura onde a performance tem reservado um lugar de importância ainda não quantificado nem ponderado devidamente. Por sua natureza (pelo menos de acordo com minha própria definição e descrição) a performance revela experiências que fazem o percurso do pessoal ao comunitário e vice-versa. Esse trânsito está fortalecido por um impulso de resistência à dissolução de componentes culturais e ideológicos que atuam como resíduos culturais que integram as pessoas a uma região, a uma paisagem, e que passam a ser pele, olhos, roupa, gestos, fala, em partituras que se percebem como restos de algo maior e irrecuperável, reproduzível e passível de ser reescrito, mas que de alguma forma deve ser restituído a um passado e, ao mesmo tempo, transmitido ao futuro e relido no presente. Pode-se pensar que cada performance, de algum modo, implica outras performances, anteriores (do passado) e sincrônicas (do presente). Por um lado, a cada efêmera prática — efêmera, mas nem por isso aleatória ou sem sentido para a história e a memória — emerge um significante novo (outra possibilidade performática) com o qual é possível que os grupos se identifiquem. E esse significante novo, transcriado, vai inscrevendo a performance em novos saberes históricos, transbordando os nacionalismos e tribalismos fundamentalistas. Constrói-se, assim, uma história que tenderá não à amnésia, como advertia Adorno falando da fossilização da memória histórica oficializada e imobilizada, mas à procura de novos saberes que promovem uma constante recuperação e apresentação do passado com vistas à comunidade por vir. Qual é, então, a economia de leitura que se pode derivar das estratégias performáticas de misturar os signos e transformar o texto em registro de ações visualizáveis, pela descrição de ações corporais espetaculares, do mundo do trabalho e da militância política própria dos anos 60 e 70, especialmente a guerrilha? Tomando a performance como chave de leitura abor166 Gragoata 22.indb 166 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:30 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti damos os romances de Haroldo Conti, em especial Mascaró, el cazador americano3 e a primeira constatação que fazemos é que seus narradores pertencem a um tipo de conhecedor daqueles de quem fala Walter Benjamin (1987, p. 197-221): sabem tanto dar conselhos quanto expressar opiniões a partir da substância viva da experiência. São narradores que exercitam a arte de contar histórias de que foram testemunhas diretas ou se apresentam como mediadores do testemunho de outros, precisamente como o autor, que conjugou uma maneira de viver com uma de escrever e de morrer4. É evidente que se trata de uma escrita na qual prevalece o desejo de relacionar o concreto e material do vivido criando vetores que apontam não só para o político, mas também para o poético narrativo, que é visto como uma das ferramentas articuladoras de novas formas epistemológicas e heurísticas de pensar e entender o mundo. Os romances de Conti, atravessados por outros saberes, resgatam práticas performáticas populares que passam, via a escrita, a fazer parte de arquivos que dependem dos consignatários — representantes ou depositários — para serem decodificados e atualizados, quer dizer, aguardam pelas miradas e leituras que a crítica e a criação contemporâneas possam realizar de um passado esfumado. Não se trata de falar a língua dos mortos e sim de não matar o que ainda vive. O que denomino performance neste trabalho responde a novas reflexões sobre o assunto, que venho trabalhando há algum tempo já.5 Nossos modos de saber, escrever e fazer arte e política estão imbricados em complexas redes de vozes e gestualidades que excedem a linguagem — o arquivo foucaultiano6 — dos quais só conhecemos e identificamos, até então, algumas. A performance pode ser entendida como algo que se percebe no âmago da tensão contemporânea entre a singularidade (o performático, a memória) e a representação consensual e disseminada da cultura (a tradição, a história): sem a singularidade que se debate a contrapelo do mainstream oficial e/ou consensual não existe palavra nova, e sem a absorção dessas palavras novas não pode haver continuidade. A singularidade, quando consegue ser (re)conhecida como representação e testemunho7, é deglutida pela cultura que familiariza, divulga e domestica.8 Talvez na Idade Média e na época que precede a eclosão da modernidade (esse mar de histórias), a tranqüila sensação de compreender e ser compreendido por uma totalidade universal tornava desnecessária a reflexão sobre a performance, tão dentro do modo de ser humano ela estava e tão constitutiva do que significava ser-no-mundo. Inclusive o aparecimento da dissonância, esse estado de inquietação da cultura que percebe Luckács no seu célebre ensaio sobre o romance moderno, e o conseqüente paradoxo instalado na consciência de dilaceramento do eu e da angústia provocada pela percepção da distância entre o eu e o mundo, não deu margem a uma reflexão sobre o tema (no sentido em que estamos pensando performance hoje) já que são Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 167 167 6/11/2007 14:26:30 Gragoatá Graciela Ravetti outros os caminhos de reflexão hegemônicos, vias que passam muito mais por desvendar as disparidades entre construtos como alma e corpo, pensamento e ação, espírito e matéria, arte e representação, arte e sociedade, arte e nação. Esses condicionamentos do pensamento não arrefeceram a inquietação pelo não visível, o sombrio e o incompreensível que sempre perturbou as pessoas e que vai desaguar nos conhecidos sentimentos de fragmentação, solidão e incompletude que se desenvolveram nos últimos séculos até chegar a sua eclosão, no final do século XX, e que deram feição ao que, para dar um nome, acabamos denominando pós-modernidade. As narrativas performáticas e a própria performance colocam-se como resistência à melancolia e à sensação de impotência derivadas daquela dissonância. Benjamin afirma que foi a difusão da informação que socavou a paciência artesanal e demorada que estava na origem da arte de narrar. Nos romances de Conti, sem didatismo moralista, recopilando histórias de homens e mulheres ignorados, dessa nação “abstrata” que é a Argentina para o autor9, os narradores e os personagens — quando são interpelados pela narração ou nos momentos em que tomam a palavra — preenchem vazios, dão voz aos que nunca a tiveram na cultura letrada, apresentam tipos que não tinham sido descritos nem narrados até então, inscreve agenciamentos individuais e coletivos em lugares no mapa cultural latino-americano que hoje constituem topografias do terror. A narrativa cumpre assim dois papéis: informação, por um lado, e formação, por outro, enquanto transforma as percepções e a imaginação apresentando novas bases e acepções a noções antigas. A Argentina é, também, esse mundo raro e oculto que Conti apresenta. Como o Leskov de Benjamin, Conti considerava-se um artesão, e os vestígios de sua experiência estão à vista: os detalhes com que descreve seus amigos moradores das ilhas, vagabundos, viajantes, seus diários de viagens, as leituras, os amigos escritores, os artistas de circo, os guerrilheiros. Se, como afirma Jameson (JAMESON, 1991, p. 96), o lugar último dos subtextos é o da contradição social, observamos que precisamente um dos desafios dos processos de produção de sentido na ficção de Conti é elaborar um texto ficcional a partir de um material de extrema riqueza e complexidade: os homens imersos nas relações de poder, confrontando-se em suas posições de classe, confiando suas vocações mais íntimas às ínfimas possibilidades que o sistema, às vezes, deixa em aberto. Tipos como os inventores, neste universo, aparecem como pilares da sociedade a que pertencem o escritor e seus leitores; surgem como imagens acreditáveis que podemos analisar como esquemas simbólicos do imaginário social dos anos 60 e 70, colados aos dados sobre o crescimento do país, a sua industrialização, a sua realização como parte de um mundo ao qual a Argentina só poderia se in168 Gragoata 22.indb 168 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:31 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti tegrar como observadora marginal, salvo se exercesse a rebeldia radical a que estava sendo chamada nesse momento histórico. Ou os loucos desvairados que são, no romance, os que trazem à tona a força da imaginação e dos sonhos que a sociedade não pode aceitar embora, paradoxalmente, não possa abandonar as esperanças de inventar um mundo novo no qual viesse a existir, além do trabalho e das obrigações, a felicidade do tempo à toa, da liberdade criativa, da igualdade e, sobretudo, da fraternidade. Afirma Conti naqueles anos: A esta altura de las cosas la literatura se me aparece como un destino (no un fin en sí mismo), mi particular manera de vivir y consistir. Por lo menos he tratado de que sea así, buscando juntar la vida y la literatura, hacer una sola cosa. No aquí la vida y allí la literatura. Tal vez en ese sentido el viejo Hemingway dijo que el talento reside en cómo uno vive la vida [...] Por supuesto, como vida, esto es, como totalidad, no se reduce al solitario hecho de escribir sino a una actitud general, una especie de revelación, por mi lado, y por el otro, el del lector y aun el del mero espectador, a un tipo de participación que curiosamente me lleva a un despojamiento cada vez mayor de lo personal [...] para que los demás asuman mis historias, como actos más que como relatos, cual si fueran propias, las participen, que es algo más que leer, y las incorporen a sus vidas. Así, a través de mis personajes soy yo el que me vivo. Me vivo en historias que fueron o pudieron ser, no importa su correspondencia efectiva en el tiempo porque después de todo el tiempo sin nosotros es nada. Y todo lo que pretendo, porque queda por ver si efectivamente lo he logrado, es que otros, la mayoría de los cuales no llegaré a conocer, se vivan a partir de esa minúscula sucesión de signos que mientras alguien no los anima, apenas son un trazo de tinta. (Apud RESTRITIVO, SANCHEZ, 1986) Nesses desdobramentos é que se elabora o espaço literário dos romances de Conti. Suas experiências pessoais lhe forneciam elementos de pesquisa lingüística e cultural que podem ser avaliados em toda sua obra e permitem uma reflexão sobre os processos de transposição literária do real à literatura, assim como dão lugar para se pensar como essa obra é testemunha do tempo em que foi escrita, no qual o debate sobre a função da literatura e do intelectual foi crucial. Nos 60 e 70, parte da esquerda na América Latina acreditou encontrar uma síntese entre a revolução cubana, o 68 francês, a revolução chinesa e a noção de Terceiro Mundo, e tudo isso deu fôlego aos movimentos de liberação nacionais e internacionalistas ao compasso de revoluções terceiro-mundistas de outros territórios, não só americanos. Movimentos que, entre outras coisas, trouxeram a legitimação da violência política, a crença na violência como forma de alcançar a liberdade, a igualdade, outra fraternidade (CASSULLO, 2004, p. 34). Nesse marco procuraram-se novas formas de relação entre a cultura e a política, valorizou-se a Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 169 169 6/11/2007 14:26:31 Gragoatá Graciela Ravetti cultura popular e se estabeleceram redes de comunicação entre intelectuais e setores populares através de trabalhos em bairros pobres, funções teatrais para e com o povo, circo, teatro campesino, cinema de liberação, e, ao mesmo tempo, as novidades do que podemos chamar a “cena performática”. Neste contexto, nas décadas de 60 e 70, a performance foi uma ferramenta cujas características a faziam adequada aos lemas e aos programas de forte impacto da época: intangível, não deixava pegadas e não podia ser vendida ou comprada, ao mesmo tempo em que reduzia a alienação entre intérprete e espectador. O body art e suas variadas manifestações levaram à produção de uma linha de obras de tipo autobiográfico já que o conteúdo dessas performances utilizava aspectos da história pessoal do performer. Essa reconstrução da memória privada teve seu complemento na obra de muitos artistas que começaram a trabalhar a memória coletiva (rituais e cerimônias, ritmos, fazeres artesanais, modos tradicionais de cultivar a terra e de criar animais, modos de transformar a natureza em alimento, o tratamento “natural” do corpo, etc.) na qual eram recuperadas formas esquecidas pela história oficial. Outra característica importante do uso político da performance foram as estratégias que conduziram à participação ativa do público, que era obrigado a pensar, por exemplo, nos limites da arte, na relação da vida cotidiana com o imaginário, no simbólico popular e na política, nas linhas de força que iam da filosofia à vida e à arte e, sobretudo, em questões relacionadas com o desejo de emancipação. Assim, uma performance do silêncio e da negatividade, instaurada pelos que acreditaram numa forma de luta contra o sistema, integrou-se à performance do nomadismo que, em suas variadas formas, implodiu os tradicionalismos ferrenhos. Só à guisa de exemplo podemos citar o filme de Fernando Solanas La hora de los hornos (1969) e Tucumán arde, instalação coletiva de arte (1968), as performances do grupo chileno C.A.D.A., a influente teoria e prática de Augusto Boal, assim como a ênfase no procedimento teatral conhecido como criação coletiva. A respeito, explica Sara Rojo: O teatro dos anos sessenta, na América Latina, acompanhou as mudanças democráticas que se produziam no mundo, procurou encontrar-se com as problemáticas sociais e aproximar-se de um público popular. Dessas grandes transformações, surge uma metodologia que revolucionou o processo produtivo de uma montagem: a criação coletiva. Essa prática expandiu-se por toda a América latina e foi propiciada pelos criadores, como os colombianos Enrique Buenaventura [...] e Santiago García [...] Essa forma de trabalho vinculava-se, diretamente, a uma perspectiva ideológica de ver o mundo, que buscava uma maneira democrática par realizar a produção do evento artístico com o objetivo de gerar, até mesmo em forma de construção, uma sociedade em que ocorresse o mesmo. (ROJO, 170 Gragoata 22.indb 170 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:31 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti 2005, p. 98) As duas famílias de narradores de que fala Benjamin aparecem na narrativa contiana: os que andam pelo mundo e possuem saberes de terras distantes e os sedentários que ficam como sentinelas dos saberes do passado, convertidos já em tradição. Seu entrecruzamento define óticas e objetos modificados ao longo do tempo, tal como aconteceu com as perspectivas de vida e militância de Conti, com as relações de produção e os modos de conformação da sociedade na Argentina e, por conseqüência, com os imaginários sociais, com os quais Mascaró... possui uma profunda dívida e aos quais acrescentou elementos. Os nômades trazem a boa nova da revolução e os sedentários podem falar de tradições libertárias das comunidades que ficaram no esquecimento. Cada canto do país tem sua história de heróis, de mártires e de filósofos populares que deixaram sua marca na areia da memória coletiva, rememorada e reinventada a cada dia. Haroldo Conti nasceu em Chacabuco, uma cidade pequena do interior da província de Buenos Aires. Foi seminarista, motorista de caminhão, professor de latim. Gostava de viajar; adorava o Delta do Río de la Plata, a região do Tigre, as viagens por mar percorrendo a costa pouco explorada do litoral argentino, uruguaio e brasileiro. De cada lugar, seu interesse privilegiava as pessoas e seus modos de sobrevivência: como viviam, trabalhavam, divertiam-se. Fazia amigos entre os moradores das ilhas e sempre voltava para compartilhar experiências, conversar com eles, pegar de algum modo seu fazer performático. Assim, foi conhecendo todo tipo de pessoas especiais, raras, diferentes, que foram a base da construção dos personagens de seus contos, romances e trabalhos jornalísticos. Esses excêntricos, na verdade, foram parte fundamental de tudo aquilo que permaneceu oculto nas representações da nação e que, no mundo de Mascaró, é um espaço povoado por sujeitos e suas práticas, homens e mulheres, seus trabalhos e ofícios, seus sonhos e projetos, seus pensamentos e esperanças, mas que como não foram privilegiados nas representações literárias, acabaram sendo, por isso, lidos como estranhos, diferentes, engraçados. Entretanto, as práticas performáticas, como defendemos neste ensaio, quando se articulam umas com as outras, conseguem alcançar o status de fatores de historização — ou seja, vão-se inscrevendo no conjunto maior e exterior do local, tanto devido ao que a performance tem de resistência ao efêmero através de seu aspecto de execução ritualizada quanto pelo que a performance tem, precisamente, de efêmero, por ter, cada realização, caráter único e irreproduzível. Por um lado, revela-se uma gênese, uma origem de origens, às vezes a ficção de uma origem e, por outro, essa articulação traz o mistério do arcano, Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 171 171 6/11/2007 14:26:31 Gragoatá Graciela Ravetti do que vem de antes, de um espaço residual, delineado pela memória corporal e afetiva, emocional, espaço convocado pela memória performática, atávica e sempre atualizada. A genealogia performática na qual inscrevo a obra de Haroldo Conti permite vislumbrar outros escritores da mesma tradição, amorosa em seu trato com o popular como resistência ao estabelecido como norma: Roberto Arlt, Manuel Puig, Jorge Luis Borges, Juan L. Ortiz e Juan José Saer, dentre outros. O circo: Treme o mistério!10 O fato de o circo — que ocupa um lugar central em Mascaró, el cazador americano — ter como característica básica o encontro concreto entre pessoas, de ser um tipo de experiência cultural não mediada, possibilita refletir sobre as diferenças de experiência estética entre o que produz a imagem projetada — no cinema, por exemplo — que só pode jogar imagens do passado, feitas antes, em qualquer tipo de tela, e o embate corpo a corpo sob a tenda do circo que parece inclinar-se a combater a reificação da vida moderna, a desumanização do cotidiano, a monadização que caracterizam as relações sociais do capitalismo tardio. A prática de atos improvisados e, portanto, irreproduzíveis, atos únicos, característicos do circo, permitem elaborar conceitos inesperados e desenvolver imagens sobre possibilidades de mudanças. O tipo de práxis que lemos em Mascaró... corresponde à desenvolvida por um circo pobre, pelos caminhos do interior, nos anos 70, no qual o espectador oferece-se a si mesmo como parte do espetáculo deixando de ser um mero observador. Este simples fato é de enorme importância porque permite a desconstrução, em cadeia, de outras séries interdependentes, que alinhavam a lógica em vigor: pode-se começar a pensar de outro modo, já que é possível atuar de outro modo. Viver é fazer e fazer é possível. O que consagra a festa pública, o encontro vivo entre pessoas, é a proximidade e a presença transformadoras. Enquanto a trupe que protagoniza o romance trilha as rotas do interior, a areia obnubila o olhar, o deserto está povoado de figuras amedrontadas, que vivem quase sepultadas. De algumas das cidadezinhas sobrou só o nome: Esquecimento, Morte. A toponímia da pobreza é também a que baliza o percurso tanto da troupe circense, dirigida pelo Príncipe, quanto o do grupo guerrilheiro, orientado por Mascaró. Nessa paisagem, as únicas palavras-chave são: ruína e decadência, os despojos da civilização, onde o que se vê pode ser uma miragem. A distorção da percepção estabelece uma nova relação entre realidade e fantasia, entre verdade e ficção. No deserto, espaço ao qual nada chega, a presença, primeiro da troupe do circo, mais tarde a dos guerrilheiros e, finalmente, a das forças do governo, chega a beirar o fantástico. Os povoados e os seres fantasmagóricos 172 Gragoata 22.indb 172 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:32 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti descobrem nova vida, novas expectativas nascem, novas ações, novas palavras. O que está escondido nas dunas de areia, no meio do vazio desértico não é a barbárie, é a vida mesma em toda sua riqueza. Trazer à literatura a teatralidade popular, no sentido de produzida e consumida pelo povo, como é o uso do circo em Mascaró, responde a um esforço maior do programa estético de Conti, que é a apresentação literária de formas de cultura popular para integrá-las em um projeto que é, ao mesmo tempo, uma proposta estética e um postulado ideológico do autor, envolvendo um projeto de resolução de conflitos sociais. O conceito de cultura popular que se manejava nos anos em que Conti escreve este romance derivava fundamentalmente dos escritos de Gramsci, para quem o popular não é simplesmente um critério quantitativo — a cultura multiplicada, aquilo amplamente divulgado e conhecido —e sim o que a cultura tem a ver com uma qualidade ativa de coordenação e de ordem intelectual e moral. O popular tinha também o sentido de luta pela construção de uma cultura. Refiro-me, com a palavra cultura, à interpretação desse desenho incorpóreo, dessa figura maior na qual se expressam simbolicamente os conteúdos que têm a ver com a comunidade por vir, essa comunidade que é sempre um projeto de realização iminente e que se constitui no motor de atos coletivos à procura de novas formas de convivência. Como se sabe, os grupos de poder têm tido especial cuidado em conter e, inclusive em exterminar movimentos que carreguem germes de transformação. Geralmente, a história não tem prestado muita atenção aos cômicos ambulantes que são reconhecidos ambiguamente como pertencentes a algum compartimento ingênuo e inofensivo da teatralidade popular. É por isso que acaba sendo um ângulo de visão interessante focalizar os pontos de contato entre os modos de teatralidade popular e o referencial político-social, no caso deste romance, dos anos 60-70 na América Latina. Pesquisando a vida dos homens pobres, marginalizados pelo centro, Conti encontra e focaliza espaços onde podem vir a ter lugar instáveis e conflitivas relações povo- instituições governamentais – arte, como é o caso do circo de Mascaró onde coincidem cidadãos marginais sedentários e artistas nômades perseguidos pelas forças institucionais. As perguntas são: em que medida o circo se opõe à cultura oficial? como contribui com uma construção diferente da comunidade? de que maneira o circo e sua influência afetam os imaginários individuais e o conjunto maior dos imaginários sociais? Lembremos que o circo foi, desde épocas imemoriais, considerado um espaço de diversão sem maiores compromissos com a arte e com a política, e muito menos com representações realistas ou simplesmente verossímeis. Seu reino foi sempre um espaço difícil de precisar e, por esse motivo, permaneceu a salvo dos Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 173 173 6/11/2007 14:26:32 Gragoatá Graciela Ravetti discursos racionalizadores oficiais. Esse não comprometimento com o real e o verossímil tem permitido certa liberdade, que o tornou escorregadio para os censores até pelo fato de falar uma linguagem menos codificada que o teatro, mais performática. Marginal como expressão, marginais seus atores e seu público. Não chega às cidades para educar ou difundir uma moral ou um espírito de ordem. Pelo contrário, o circo estimula rupturas com os comportamentos ditos civilizados, cria um espaço simbólico de ação onde o imaginário se relaciona com o real com leis próprias embora sua linguagem responda, em grande parte, a práticas performáticas milenares: o equilibrista, o palhaço, os dançarinos, os cantores, os animais e suas destrezas, os trapezistas, o homem de borracha, os ilusionistas, os ginastas, os apresentadores. A produção e a recepção da teatralidade popular, sobretudo em ambientes realmente pobres e carentes de infra-estrutura, pode pensar-se no marco de uma resposta de setores culturalmente postergados frente aos setores dominantes. Essa resposta é produto de uma necessidade: afirmar a identidade para evitar a destruição da dignidade pessoal e dar forma aos próprios princípios do prazer e do desejo, ainda que essa afirmação da identidade implique processos de reinvenção continuada de formas de identificação. No momento em que, no romance, Mascaró, o líder popular, decide entrar no circo para se esconder de seus perseguidores e se apresenta como Joselito Bembé, el cazador americano, fazendo um número de tiro ao alvo, a política invade o circo. Quando os integrantes da trupe do circo decidem abandonar suas funções e se dedicar em cheio à política e utilizar suas destrezas na guerrilha, então é a arte que se desloca em direção à política. Mascaró pode ser lido a partir de alguns dos sentidos mais característicos da modernidade: o nomadismo e a metamorfose. Não se trata de fazer proselitismo nem de aberta politização. A questão é resgatar novos modos de produzir cultura, tornando visível o que está subsumido ou oculto, o que se considerava perdido ou inexistente, focalizando as práticas performáticas que sustentam a forma pela qual essa nova produção se apresenta. Por essa via são transgredidos os limites disciplinários e as estruturas hierárquicas dentro das quais o conhecimento e a experiência são organizados e se concretiza a possibilidade de cooperação entre os seres humanos e de novas formas de cultura. O lazer, que se torna valor e não um mero desperdício, faz parte da revolução da consciência que concede relevância ao poder da imaginação e da fantasia de minar o sistema que oprime e escraviza as classes espoliadas. Quando o circo chega, no romance, a uma cidadezinha ínfima, Tapado, revela-se a imagem da terra dormida sob a areia, como se o deserto, longe de ser um espaço despovoado, fosse 174 Gragoata 22.indb 174 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:32 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti o lugar do escondido, mas que pode ser manifestado. Como se pela simples presença do circo, com suas artimanhas, o povo de repente adquirisse o poder de levantar vôo, de se elevar da terra para assumir um ponto de observação privilegiado do qual as pessoas, agora sim, poderiam ver, enxergar, ter acesso a uma percepção diferente de como tinham sido até então suas vidas. El Príncipe, que a esa hora revivía y se llenaba de humores, mandó encender las luces y el pueblo de Tapado se detuvo un momento, dejó de envejecer, porque la carpa se iluminó por dentro y todos vieron que era algo hermoso sobre la tierra, aunque no pasara nada más que eso y estuviese allí encendida toda la noche, mera figura, a ratos sacudida por una brisa, como si consistiera viva y fuese a remontar vuelo igual que un globo, y todos, tan livianos, despegaran también de aquella tierra dormida bajo la arena y pudiesen ver desde arriba, medio pajarito, ese agujero en el desierto donde había transcurrido su vida. (Conti, 1984, p. 158) Como podemos ver, a simples presença do circo já é uma via de reflexão, produz uma suspensão do tempo produtivo. A chegada do circo cria, primeiro, a inquietação das pessoas que querem ver o novo, observar os mistérios que o circo sugere. Depois, chega a possibilidade de participação e o desejo de mudar bruscamente os rumos da vida particular ou até as das comunidades. Todos sentem a fascinação dos artistas e se altera profundamente o ritmo da vida diária. A arte como performance — como mito, imaginação criadora, memória comunitária, delírio, alucinação, paródia — é vista em Mascaró como uma celebração da vida, que leva a descobrir seu sentido último; assim como a guerra, a guerrilha é um modo de representação social e como tal carregada de simbologia. O circo é o curso de uma prática social; uma práxis que se apresenta como equação para resolver dilemas que a oposição política-cultura impunha na época. A situação inicial do romance apresenta o personagem protagonista, Oreste, sem rumo, perdido, mas com uma única obsessão: o caminho. A cena final traz um Oreste que acaba de reconhecer “seu” caminho e esse caminho já não é vago e indeterminado: é o da luta armada e essa é a proposta que o romance coloca como via de saída de toda uma comunidade. Esse movimento de desconstrução do esquema sociológico vigente até então pretende se colocar na perspectiva dos pobres, no sentido de serem grupos humanos, comunidades, totalmente afastadas dos centros de poder, sem meios genuínos de subsistência, sem possibilidades de trabalhar conjuntamente com a sociedade urbana no desenho de um país mais coerente. Esses desaparecidos do discurso e da representação social voltam por seus direitos. Revelam-se problemas específicos do mundo dual em que se transformou a sociedade dos países rotulados, na Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 175 175 6/11/2007 14:26:32 Gragoatá Graciela Ravetti época, de “terceiro mundo”, nos quais, junto a problemas típicos de sociedades capitalistas desenvolvidas, coexistem problemas típicos das sociedades arcaicas, de base agrária e colonial, extremamente dependentes dos centros hegemônicos e corroídos pelos males do latifúndio. Fica, para a crítica do século XXI, o desafio do que Nicolás Casullo chamou “pensar entre épocas”, fazer o esforço de tentar entender um momento histórico que, como todo passado, teima em se ocultar e não se revela de todo. Que subjetividade foi essa das vanguardas revolucionárias, cujo tempo íntimo entrou em dissolução há muito tempo e que foi nomeado como “utópico” quando, na verdade, falava-se de projetos de cuja possibilidade não se duvidava, nunca de utopia, se é que utopia nomeia o que não pode realizar-se? Por que chamar de utópica uma batalha perdida?, poderíamos perguntar-nos. Por que rotular de utópico um movimento que tentou uma operação de reconciliação entre política e estética com vetores tanto em direção de uma politização da arte quanto de uma estetização de política? O romance de Haroldo Conti é subsidiário tanto da romantização do universo político que coloca a arte como o braço que tem a força inatingível e incorpórea, performática, de produzir a revolução quanto da politização da arte. Abstract This essay addresses questions related to the performatic transgenre, considering a piece of fiction by Haroldo Conti, Mascaró, el cazador americano. From an understanding of how performance and writing interrelate themselves, the essay researches a critical and theoretical clue that allows for new perspectives of cultural analysis. Keywords: Argentinian Literature; Performance; Narrative; Contemporary fiction. Referências AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz: el archivo y el testigo: Homo Sacer III. Valencia: Pre-Textos, 2005. ANTELO, Raúl. (Org.). Crítica e ficção, ainda. Florianópolis: Pallotti, 2006. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 176 Gragoata 22.indb 176 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:32 Saberes performáticos nas ficções de Haroldo Conti BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. CASULLO, Nicolás. Pensar entre épocas: memória, sujetos y crítica intelectual. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004. CONTI, Haroldo. Alrededor de la jaula. 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Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 177 177 6/11/2007 14:26:33 Gragoatá Graciela Ravetti Melendez (2001, p. 542), citando Vanden Heuvel, diz que o discurso da performance “tenta rebelar-se contra a visão fechada do texto, procura quebrar as distinções tradicionais entre arte e vida, defende a primazia do ator/performer frente ao autor, e deseja privilegiar a voz humana sobre a palavra escrita”. (“intenta rebelarse contra la visión cerrada del texto, procura quebrar las distinciones tradicionales entre arte y vida, defiende la primacía del actor/ performer frente al autor, y desea privilegiar la voz humana por sobre la palabra escrita”). 3 Haroldo Conti, escritor argentino. Os romances de nosso corpus são: Sudeste, Alrededor de la jaula, En vida e Mascaró, el cazador americano. 4 Haroldo Conti foi seqüestrado por forças parapoliciais. Desaparecido, foi dado como morto em 1976 em Buenos Aires. Testemunhas detalharam horrendas torturas às quais Conti foi submetido, que nós, hoje, não podemos senão assimilar à situação do “muçulmano” dos campos de concentração na Alemanha. Ver sobre o tema Agamben (2005). 5 Na bibliografia constam algumas referências a tais trabalhos: Ravetti (2001a, 2001b, 2002). 6 Agamben (2005, p. 150). Foucault llama “archivo” a la dimensión positiva que corresponde al plano de la enunciación, al “sistema general de la formación y de la transformación de los enunciados” [Foucault, p. 171] ¿En qué forma debemos concebir esta dimensión, si no corresponde al archivo en sentido estricto — es decir, al depósito que cataloga las huellas de lo ya dicho para consignarlas a la memoria futura — ni a la babélica biblioteca que recoge el polvo de los enunciados para permitir su resurrección bajo la mirada del historiador? En cuanto conjunto de reglas que definen los acontecimientos de discurso, el archivo se sitúa entre la langue, como sistema de construcción de las frases posibles — o sea, de la posibilidad de decir — y el corpus que reúne el conjunto de lo ya dicho, de las palabras que han sido efectivamente pronunciadas o escritas. El archivo es, pues, la masa de lo no semántico inscrita en cada discurso significante como función de su enunciación, el margen oscuro que circunda y delimita cada toma concreta de palabra. Entre la memoria obsesiva de la tradición, que conoce sólo lo ya dicho, y la excesiva desenvoltura del olvido, que se entrega en exclusiva a lo nunca dicho, el archivo es lo no dicho o lo decible que está inscrito en todo lo dicho por el simple hecho de haber sido enunciado, el fragmento de memoria que da olvidado en cada momento en el acto de decir yo. 7 Para o testemunho performático acho interessantes as contribuições de Agamben (2005). Entre outras fundamentais reflexões Agamben coloca: ...podemos decir que testimoniar significa ponerse en relación con la propia lengua en la situación de los que la han perdido, instalarse en un alengua viva como si estuviera muerta o en una lengua muerta como si estuviera viva, mas, en cualquier caso, fuera tanto del archivo como del corpus [...] Significa más bien que la palabra poética es la que se sitúa siempre en posición de resto, y puede, de este modo, testimoniar. Los poetas — los testigos — fundan la lengua como lo que resta, lo que sobrevive en acto a la posibilidad — o a la imposibilidad de hablar (p. 168). 8 Em outro artigo sobre o tema, defino esses termos da seguinte forma: “Haveria, então, duas expressões complementares: “narrativas performáticas” e “vínculos performativos”. As primeiras — as narrativas performáticas — poderiam vir a ser decisivas no momento do questionamento e da resistência aos segundos — os vínculos performativos — nascidos a instâncias do poder estabelecido. Acredito que encontramos estes critérios anunciados já em Freud, quando ele dizia que um sujeito é o efeito de um conjunto de marcas materiais e não uma entidade espiritual que se debate entre os enganos dos sentidos. E, ainda, que o sujeito se constitua em uma atribuição respeito de essas marcas. Considero performativa a narrativa que apresenta um cenário no qual um (ou mais) sujeito(s) aparece(m) em processos de atribuição, com referentes explícitos à realidade material, sendo, por isso, identificáveis, mas nas quais os comportamentos narrados (afinal trata-se de comportamentos sociais) são, no mínimo, transgressores quanto à norma social vigente. O poder performativo do discurso oficial, assim como o das teorias culturais de qualquer signo — sobretudo quando estas alcançam um lugar legitimado e se fazem escutar — reside, por um lado, na faculdade que esses discursos têm de definir, com antecipação, a condição de existência dos sujeitos de uma sociedade dada: definem, por exemplo, o que é efetivamente o latino-americano, o feminino, etc. Neste caso, a sobredeterminação dos discursos obstaculiza a possibilidade de assumir posições identitárias não condicionadas de antemão pelo poder, ou seja, impede atos de emancipação efetiva. Entretanto, podemos trabalhar com a hipótese de que a tomada de consciência sobre a existência dessa faculdade performativa do discurso do poder, da qual os sujeitos são objeto, é já um passo no caminho de assumir novas estratégias, dentre as quais observo: os atos performativos ilocutórios — sérios, no sentido da teoria dos atos de fala —, dirigidos e conscientes, públicos ou privados; e os atos performativos paródicos (aos que se referem, entre outros e de diferentes maneiras Judith Butler, Bhabha e Fanon). Esses dois tipos de atos performativos possuem um alto valor de eficiência para encontrar e assinalar pontos de fuga do círculo oclusivo da imposição de identidades e, conseqüentemente, de comportamentos. Um dos lugares privilegiados para “programar” esses atos é a literatura” (RAVETTI, 2OO2, p. 31-32). 9 “Toda esa Argentina que creo constantemente, porque para nosotros la Argentina todavía es una abstracción”. Haroldo Conti em entrevista à revista Atlántida, citada em Restivo; Sánchez (1986, p. 169). 10 Rama (1976, p. 151), aplica o ditado do flamenco (Tiembla el misterio) à situação em que se produz o encontro entre atores e público no teatro. 2 178 Gragoata 22.indb 178 Niterói, n. 22, p. 163-178, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:33 Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo Recebido 10, jan. 2007/Aprovado 9, abr. 2007 Resumo O artigo apresenta uma tendência da narrativa latino-americana contemporânea que consiste na mistura de gêneros e no uso da crítica literária ficcional na construção de romances e livros de contos híbridos. Tomando como estudo de caso a obra do escritor chileno Roberto Bolaño (19532003), o artigo mostra as principais características deste tipo de narrativa e faz um paralelo com outros exemplos recentes de escritores da América Latina. Finalmente propõe algumas hipóteses teóricas para tentar situar o fenômeno na tradição literária latino-americana, e analisa sua relação com as transformações recentes no campo das humanidades e das ciências sociais. Palavras-chave: Literatura latino-americana contemporânea; Roberto Bolaño; Romances híbridos; Crítica ficcional. Gragoatá Gragoata 22.indb 179 Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:33 Gragoatá Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo “Bolaño compartía con Nabokov la idea de la escri- turacomo simulacro que acepta las condiciones de lo real sólo en la medida en que puede reinventarlas” (Juan Villoro) 1. Auxilio Lacouture, poeta uruguaia que fica presa nos banheiros da Universidade Autônoma de México durante o “masacre de Tlatelolco”1, é a protagonista do romance Amuleto, de Roberto Bolaño, publicado em 1999. Na parte final do romance, Auxilio fala com uma misteriosa voz, que parece ser a voz de seu anjo da guarda. Ela sonha com profecias e a voz lhe pergunta sobre o que pode ver: “El futuro”, lhe diz Auxilio, “puedo ver el futuro de los libros del siglo XX” (BOLAÑO, 1999, p. 133). A partir desse momento, Auxilio começa a fazer conjecturas sobre os mais diversos autores: Vladimir Maiakovski volverá a estar de moda allá por el año 2150. James Joyce se reencarnará en un niño chino en el año 2124. Thomas Mann se convertirá en un farmaceútico ecuatoriano en el año 2101... César Vallejo será leído en los túneles en el año 2045. Jorge Luis Borges será leído en los túneles en el año 2045. Vicente Huidobro será un poeta de masas en el año 2045... Arno Schmidt resurgirá de sus cenizas en el año 2085. Franz Kafka volverá a ser leído en todos los túneles de Latinoamérica en el año 2101. Witold Gombrowicz gozará de gran predicamento en los extramuros del Río de la Plata allá por el año 2098. (BOLAÑO, 1999, p. 134-135) No dia 2 de outubro de 1968 uma passeata pacífica de estudantes na praça de Tlatelolco em México D.F. terminou de forma violenta quando as forças militares do governo de Díaz Ordaz dispararam de forma indiscriminada contra a multidão. Nunca houve uma investigação ou explicação convincente por parte das autoridades civis ou militares sobre a tragé1 180 Gragoata 22.indb 180 Em tom sério ou burlesco, às vezes sarcástico, às vezes demolidor, uma forma particular de crítica literária aparece de forma constante na obra ficcional de Roberto Bolaño. Grande parte da obra deste escritor chileno tem como tema central a própria literatura. Suas histórias são habitadas por poetas, escritores, editores, leitores compulsivos e professores de literatura. Assim, não é estranho que um tipo de crítica literária também faça parte integral de sua ficção. Mas, quais são as principais características desse tipo de crítica ficcional, e o que se esconde por trás desse procedimento? E, por outro lado, a que tradição se vincula e como relacioná-la com a obra de outros escritores latino-americanos contemporâneos? 2. Existem, no conjunto da obra de Bolaño, textos de crítica literária concebidos fora de sua obra ficcional, e outros que aparecem no interior de seus textos de ficção, embora as diferenças entre eles sejam muito tênues, quase invisíveis. Os textos propriamente críticos foram recopilados por seu amigo Ignacio Echavarría, e publicados postumamente em um livro intitulado Entre paréntesis (2004). O livro reúne artigos de jornal, prólogos dispersos, os discursos e conferências pronunciados por Bolaño ao longo de sua vida, assim como sua última entrevista, concedida à edição mexicana da revista Playboy e publicada em julho de 2003. Nestes textos é possível perceber uma das principais Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:33 Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño Livro que continua a tradição latino-americana iniciada com “Los raros” de Ruben Darío em 1905, seguida por Alfonso Reyes com seus “Relatos reales o imaginarios”, por Jorge Luis Borges com sua “Historia universal de la infamia” e pelo próprio Bolaño em “La literatura nazi en América” (1996). 2 características da escrita de Bolaño: sua mobilidade entre gêneros, sua busca permanente de uma escrita sempre literária, inclusive no campo da crítica. Essa mobilidade que aparece na obra de Bolaño parece confirmar a hipótese de Derrida, segundo a qual “um texto não pertence a algum gênero. Todo texto participa em um ou vários gêneros” (DERRIDA, 1992, p. 230, grifos do autor, tradução própria). Alguns dos textos críticos de Bolaño, por exemplo, aparecem com poucas modificações dentro de sua obra ficcional, como o conto “Jim”, escrito originariamente como uma crônica de jornal e incluído, posteriormente, em seu livro de contos El gaucho insufrible (2003). Com poucas exceções, todos seus textos críticos tratam de literatura e estão escritos da mesma forma que muitos de seus relatos de corte mais autobiográfico, como “Carnet de baile”, ou “Encuentros con Enrique Lihn”, contos que fazem parte do livro Putas asesinas (2001). 3. No prólogo de Entre paréntesis, Ignacio Echavarría faz um paralelo entre este livro de Bolaño e outros dois livros recentes: Formas breves (2000), do argentino Ricardo Piglia, e El arte de la fuga (1997), do mexicano Sergio Pitol. O que caracteriza estes livros é uma certa mistura entre crítica e autobiografia, ou de crítica e ficção. Precisamente Piglia, em Formas Breves, afirma que “a crítica é a forma moderna da autobiografia” (PIGLIA, 2000, p. 117). O próprio Bolaño, comentando o livro do espanhol Enrique Vila-Matas, Bartleby & Compañía (2000), escrevia que “tal vez estamos ante una novela del siglo XXI, es decir una novela híbrida, que recoge lo mejor del cuento y del periodismo y la crónica y el diario de vida” (BOLAÑO, 2004, p. 287). Essas obras híbridas fazem parte também do repertório de outros autores latino-americanos contemporâneos, como o colombiano Fernando Vallejo, que faz a biografia do poeta José Asunción Silva, Chapolas negras (1995), misturando os dados de uma exaustiva pesquisa com as opiniões sarcásticas do próprio narrador; e o argentino César Aira, numa obra como Las tres fechas (2001), catálogo de escritores raros2 que explora a relação entre vida e obra, ou história e literatura, como fazia notar recentemente Graciela Montaldo (MONTALDO, 2005, p. 151). Essa tendência à hibridez, por outro lado, não é exclusiva de autores hispano-americanos, sendo possível encontrá-la nas obras de escritores contemporâneos de outras latitudes como o alemão W.G. Sebald, por exemplo, que combina elementos da crônica, da fotografia e do ensaio em obras como Os anéis de Saturno (1999) ou Austerlitz (2001); ou o triestino Claudio Magris, que usa formas da história e da análise cultural para narrar a vida do rio Danúbio, da nascente até a foz, no romance Danúbio (1986). No contexto brasileiro, Marilene Weinhardt (1998) destaca a presença de um conjunto de narrativas contemporâneas que: “optam pelos recursos da tendência que se vem chamando de pós-modernista, calcada no reaproveitamento e no deslocamento de personagens históricas e/ ou ficcionais, questionando, pela paródia, o estatuto do ficcional e do histórico” (WEINHARDT, 1998, p. 104). Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 181 181 6/11/2007 14:26:34 Gragoatá Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo A tendência analisada por Weinhardt, com exemplos como Em liberdade, de Silviano Santiago, ou Boca do inferno, de Ana Miranda, embora diferente do movimento que procuro analisar, encontra um ponto de ligação ao tratar-se de obras que usam a literatura -neste caso os próprios escritores- como personagens ficcionais e como base central de seu discurso narrativo, questionando também, como ela afirma, as fronteiras tradicionais entre o ficcional e o histórico ou real. 4. No último livro de contos de Bolaño, El gaucho insufrible, aparecem duas de suas conferências sobre literatura: “Literatura + enfermedad = enfermedad” e “Los mitos de Cthulhu”. A primeira, uma reflexão sobre as relações entre doença e criação literária, relação que Bolaño conhecia bem, pois ele mesmo sofreu uma grave doença hepática no final de sua vida; a segunda, uma invectiva sarcástica, comum nos escritos de Bolaño, contra a situação da literatura latino-americana contemporânea. Reproduzidas sem nenhum anúncio prévio, as conferências se juntam aos contos numa tentativa de fazer desaparecer os limites entre crítica e ficção dentro de um mesmo livro, misturando os gêneros e deslocando seus lugares tradicionalmente separados. Essa tentativa não é nova na obra de Bolaño, já se insinuava em seus primeiros escritos e aparece de forma clara em “La literatura nazi en América” (1996), livro de difícil classificação, que se apresenta como um dicionário de escritores do continente americano que tiveram alguma relação com o nazismo e o fascismo. O livro inclui 30 biografias de escritores e escritoras, além de um “Epílogo para monstruos” (BOLAÑO, 1996b, p. 201-227) que contém a relação de outros personagens da literatura nazista na América; uma lista de revistas e periódicos que publicavam seus escritos; assim como uma extensa lista com os títulos que fazem parte desta tradição literária. Sem a indicação que aparece na contracapa do livro, neste caso a edição da Biblioteca Breve de Seix Barral, o leitor não poderia ter certeza de que se trata de um romance. Nesse sentido, Derrida se pergunta: “Pode-se identificar um trabalho de arte, de qualquer tipo, mas especialmente um trabalho de arte discursiva, se ele não sustentar a marca de um gênero, se ele não sinalizar ou mencionar isto de algum modo?” (DERRIDA, 1992, p. 229, tradução própria). 5. Um dos aspectos interessantes deste romance, que o torna ainda mais inclassificável dentro de um gênero fechado, encontra-se no último verbete do dicionário, que corresponde ao chileno “Carlos Ramírez Hoffman”, apelidado de o infame. Em princípio, a biografia do escritor é similar às outras do dicionário, com uma breve apresentação do personagem e sua história literária. Porém, um pouco mais adiante e de forma imprevista, aparece o narrador em primeira pessoa como participante da história de Hoffman. O narrador, que até aquele momento se 182 Gragoata 22.indb 182 Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:34 Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño ocultava por trás de uma prosa aparentemente objetiva e enciclopedista, entra na história de forma subjetiva: En aquellos días, mientras se desmantelaba la pobre estructura de poder de la Unidad Popular, caí preso. Las circunstancias que me llevaron al centro de detención son banales, cuando no grotrescas, pero me permitieron presenciar el primer acto poético de Ramírez Hoffman, aunque por entonces yo no sabía quien era Ramírez Hoffman. (BOLAÑO, 1996b, p. 180) O nome Bolaño ou a inicial B., usada pelo narrador em muitos dos contos e romances de Bolaño, criam também um “efeito de realidade”, gerando no leitor a sensação de estar sempre no espaço da autobiografia. 4 Histórias e personagens que pulam de um livro a outro são parte característica da obra de Bolaño. A história de Auxilio Lacouture, por exemplo, aparece na segunda parte de Los detectives salvajes, e posteriormente se transforma no romance Amuleto; um poema visual que é elemento central na trama de Los detectives salvajes, já havia aparecido em outro romance Amberes (2002); e o título de seu romance póstumo 2666 (2005) havia sido sugerido na parte final do romance Amuleto. 3 A partir desse momento, o dicionário de escritores se transforma em outra coisa (conto, trecho de um romance, autobiografia?). A história de Ramírez Hoffman se confunde com a história do próprio narrador, que também se chama Bolaño3, e se prolonga por 23 páginas até o final do livro. Essa mesma história será recontada com maior fôlego e densidade num romance posterior de Bolaño, Estrella distante (1996a), aparecerá de forma breve no romance Los detectives salvajes (1998) e também no conto “Joana Silvestri” do livro Llamadas telefónicas (1997)4. 6. “1. Mi madre nos leía a Neruda en Quilpué, en Cauquenes, en Los Ángeles. 2. Un único livro: Veinte poemas de amor y una canción desesperada” (BOLAÑO, 2001, p. 207). Assim começa o conto “Carnet de baile”, do livro Putas asesinas. Escrito em forma autobiográfica, o conto descreve a relação, primeiro apaixonada e depois conflituosa, entre o narrador e a obra de Neruda. Essa história literária se mistura à história de vida do narrador durante o início da ditadura chilena. História de coragem juvenil e, ao mesmo tempo, história de formação literária. A literatura funciona neste conto, como em quase toda a obra de Bolaño, como catalizador, como fio condutor da narrativa. O conto desenha o trajeto de leitura do narrador Bolaño, começando com Neruda e depois passando por Vallejo, Huidobro, Borges, De Rokha, Girondo, até chegar a Nicanor Parra, que será uma de suas influências mais marcantes. A citação de escritores é comum em Bolaño e vai construindo uma cadeia de influências e gostos literários que o próprio escritor revela e que serve de ponte para aproximar-se a sua obra ficcional e crítica. Também sua poesia se insere neste movimento de relações literárias; o exemplo mais evidente seria o poema “Un paseo por la literatura”, incluído em seu livro Tres (2000), definido por Alejandro Zambra como uma “extravagante serie de instantáneas cuyo tema probablemente sea la promiscua cohabitación de autores y lecturas en la cabeza del escritor” (ZAMBRA, 2002, p. 187). No poema, o personagem Bolaño visita Alonso de Ercilla, reúne-se com Gabriela Mistral numa aldeia africana, tem um affaire com Anaïs Nin e Carson McCullers e trabalha para Mark Twain num caso estranho: salvar a vida de um homem sem rosto. A obra poética de Bolaño transita também, e de forma natural, pelas fronteiras entre gêneros literários, confundindo e apagando seus falsos limites. Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 183 183 6/11/2007 14:26:34 Gragoatá Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo 7. No final de “Carnet de baile”, escreve Bolaño: 59. Preguntas para antes de dormir. ¿Por qué a Neruda no le gustaba Kafka? ¿Por qué a Neruda no le gustaba Rilke? ¿Por qué a Neruda no le gustaba De Rokha? 60. ¿Barbuse le gustaba? Todo hace pensar que sí. Y Shólojov. Y Alberti. Y Octavio Paz. Extraña compañía para viajar por el purgatorio. 61. Pero también le gustaba Éluard, que escribía poemas de amor. 62. Si Neruda hubiera sido cocainómano, heroinómano, si lo hubiera matado un cascote en el Madrid sitiado del 36, si hubiera sido amante de Lorca y se hubiera suicidado tras la muerte de éste, otra sería la historia. (BOLAÑO, 2001, p. 215) Este é um exemplo do tipo de crítica literária que aparece na obra ficcional de Bolaño. Uma crítica que não se refere de forma direta à obra de um escritor, neste caso à obra do poeta chileno Pablo Neruda, mas que elabora um discurso crítico através das próprias eleições literárias do autor. Esse procedimento mostra que, para Bolaño, como para seu grande antecessor, Jorge Luis Borges, a leitura precede e é mais importante que a escrita. Bolaño compartilha a idéia de que, em sentido estrito, a escrita não tem originalidade, sendo na realidade uma modulação particular das leituras prévias do escritor. Assim o confirma uma breve declaração que fez durante a entrega do Prêmio Rómulo Gallegos, por seu romance Los detectives salvajes, em 1999, na Venezuela: “Soy mucho más feliz leyendo que escribiendo” (BOLAÑO, 2004b, p. 20), declaração que lembra as palavras de Borges, que se orgulhava mais dos livros que havia lido do que dos livros que havia escrito (BORGES, 1974, p. 289). 8. Outra das formas em que a crítica literária se apresenta nos textos ficcionais de Bolaño é através da elaboração de teorias por parte de seus personagens. Assim, por exemplo, Amalfitano, professor de filosofia e protagonista da segunda parte de 2666 (2004a), depois de conversar com um jovem farmacêutico mexicano sobre seus gostos literários, diz: Escogía La metamorfosis en lugar de El proceso, escogía Bartleby en lugar de Moby Dick, escogía Un corazón simple en lugar de Bouvard y Pécuchet, y Un cuento de navidad en lugar de Historia de dos ciudades o de El club Pickwick. Qué triste paradoja... Ya ni los farmacéuticos ilustrados se atreven con las grandes obras, imperfectas, torrenciales, las que abren camino en lo desconocido. (BOLAÑO, 2004a, p. 289) As palavras de Amalfitano poderiam funcionar perfeitamente para descrever os romances de Bolaño, Los detectives salvajes e 2666, eles mesmos imperfeitos, torrenciais e que abrem caminho para o desconhecido. Como diz Piglia: “Escrever ficção muda o modo de ler, e a crítica que um escritor escreve é o espelho secreto de sua obra” (PIGLIA, 2000, p. 117). Da mesma forma que Amalfitano, Joaquin Font, uma das vozes da segunda parte de Los detectives salvajes, elabora suas 184 Gragoata 22.indb 184 Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:35 Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño próprias teorias literárias na clínica para tratamento de doentes mentais “El reposo”, situada na periferia da Cidade do México, onde se encontra internado. Entre outros achados teóricos, Joaquin faz uma classificação das obras literárias segundo os estados de ânimo do possível leitor: Hay una literatura para cuando estás aburrido. Abunda.”, disse Font, “Hay una literatura para cuando estás calmado. Ésta es la mejor literatura, creo yo. También hay una literatura para cuando estás triste. Y hay una literatura para cuando estás alegre. Hay una literatura para cuando estás ávido de conocimiento. Y hay una literatura para cuando estás desesperado. (BOLAÑO, 1998, p. 201) Alter ego de Roberto Bolaño. 5 A última classificação corresponde, segundo Font, à literatura feita por Arturo Belano5 e Ulises Lima, poetas protagonistas do romance. Ela corresponde também, a meu ver, a grande parte da literatura feita pelo próprio Bolaño: uma literatura do mal, do horror, situada sempre no limite do abismo. Assim, novamente, Bolaño parece deixar as pistas do enigma de sua obra nas elaborações teóricas e na crítica literária que fazem seus personagens ficcionais. 9. Literatura da literatura, literatura sobre a própria literatura, história literária escrita como se fosse ficção, mistura de gêneros: a que obedece esse procedimento estético usado por Bolaño e por muitos outros escritores contemporâneos? Como surgem essas obras híbridas e a que tradição se vinculam? Parece-me que várias respostas e linhas de análise são possíveis. Na própria tradição literária podemos encontrar múltiplos antecedentes de obras que misturam diversos gêneros. No clássico Guerra e Paz, por exemplo, Tolstoi já mistura a história ficcional com seus comentários e propostas políticas e sociais; Robert Musil, em O homem sem qualidades, constrói uma obra que usa o ensaio científico como forma narrativa; mais recentemente, Milan Kundera propõe histórias que se misturam a reflexões filosóficas, em romances como A insustentável leveza do ser ou A imortalidade. No contexto latino-americano, Borges é uma referência central, talvez o escritor que levou mais longe as possibilidades da própria crítica literária como instrumento da escrita ficcional e como “metáfora da realidade” (JOZEF, 1974, p. 38). Não por acaso, Borges é um dos escritores preferidos de Bolaño e, para ele, o centro do cânone latino-americano. 10. A literatura da literatura, que incorpora a crítica dentro de seus artefatos ficcionais, além de pertencer a uma linha específica da tradição literária ocidental moderna, está relacionada, em minha opinião, a dois movimentos importantes: 1. O grau de autonomia alcançado pela arte a partir do alto modernismo; 2. As mudanças recentes no campo das ciências, especialmente das ciências humanas. Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 185 185 6/11/2007 14:26:35 Gragoatá Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo Com relação ao primeiro aspecto, Michel Foucault, em As palavras e as coisas (1987) e em Isto não é um cachimbo (1989), mostrou as mudanças apresentadas nos diferentes regimes de representação desde a Renascença até o modernismo e o alto modernismo. Os diferentes regimes partiram, em linhas gerais, de uma representação baseada na semelhança entre realidade e signo — como na Renascença com Da Vinci, Bosch e Brueguel, por exemplo — e progressivamente foram abandonando as referências externas para, por um lado, pôr em evidência o próprio processo de representação -como no famoso quadro As meninas, de Velásquez- e, por outro, fazer da própria linguagem artística o campo privilegiado da arte, concedendo-lhe um grau total de autonomia; processo que começa, para Foucault, com Paul Klee e alcança seu auge com o Magritte de Isto não é um cachimbo. Magritte, segundo Foucault, faz uma ruptura total com os dois princípios centrais do regime de representação dos 500 anos anteriores: 1. A separação entre imagem e palavra; 2. A procura de semelhança entre realidade e signo. A partir do alto modernismo, a semelhança deixa seu lugar central para a similitude, onde não existe dicotomia entre original e cópia; a obra de arte não remete a uma realidade exterior, mas às representações anteriores, num mundo serial onde não há hierarquias: o mundo do simulacro. A literatura também se insere nesta mudança de paradigma: abandonando a pretensão de ser uma cópia da realidade, procura seu próprio desenvolvimento a partir de outros signos, a partir da própria literatura, criando um mundo autônomo que não remete, necessariamente, a uma realidade exterior. Penso que nesse movimento de autoreferencialidade — que não é uma auto-referencialidade como em Hamlet ou Dom Quixote, pois nestes textos ainda existe uma realidade que pode ser alterada pela ficção —, é possível inserir o elemento de crítica ficcional, presente na obra de Roberto Bolaño e de outros escritores contemporâneos. A literatura se volta sobre si mesma, suas referências já não se encontram em uma suposta realidade objetiva, mas nas próprias representações literárias: é o livro que vira ‘realidade’ e não a realidade transformada num livro. 11. Entre as múltiplas transformações das ciências sociais nas últimas décadas, interessa-me, no contexto deste trabalho, destacar somente dois aspectos: a. A recuperação do eu e da subjetividade; b. A problematização da linguagem. a.Reconhece-se atualmente que o conhecimento da realidade absoluta, independente de qualquer cognição, não existe para o ser humano. Por essa razão é impossível alcançar ‘objetividade’ no sentido de um acesso direto aos objetos ou fatos, sem qualquer mediação. O que podemos fazer é estabelecer intersubjetividades baseadas no 186 Gragoata 22.indb 186 Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:36 Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño Acredito que Bolaño ficaria feliz se seu livro, “La literatura Nazi en América”, fosse colocado na estante da biblioteca correspondente aos manuais de história literária, e com isso, Borges ficaria orgulhoso de seu discípulo. 6 paralelismo de nossas estruturas, operações e domínios cognitivos, e exigir a formação de esferas consensuais. Consequentemente, a ‘verdade’, em sentido absoluto, é humanamente impossível. O conhecimento científico depende necessariamente do sujeito. Sua ‘objetividade’ e intersubjetividade não são funções de sua adequação à ‘realidade’, mas produtos da homogeneidade cultural dos cientistas, que chegaram a um consenso em relação a determinadas categorias destinadas a julgar as construções consideradas científicas e que outros indivíduos socializam no mesmo sentido. Essa necessária subjetividade do conhecimento e da ‘realidade objetiva’ desestabiliza o lugar e a distância tradicional existentes entre objeto e sujeito, confundindo as fronteiras do que, no contexto literário, seriam a realidade e a ficção. Se, em sentido estrito, não há uma realidade objetiva fora da percepção subjetiva, o que pode diferenciar a história literária escrita por um historiador da literatura, da história literária escrita por um escritor dentro de seus livros de ficção?6. b. Anteriormente, a linguagem era considerada unívoca, pensava-se que cada palavra tinha somente um significado, o que seria a base de uma transmissão precisa das mensagens. A linguagem era considerada representacional e se constituía em veículo para comunicar alguma coisa que estava fora, o objeto da ciência. Atualmente, a linguagem é uma coisa muito diferente, a univocidade desapareceu, a linguagem já não representa o mundo mas o constitui, o cria. A função primordial da linguagem não é transmitir mensagens de um lugar a outro, mas construir a realidade. Por este caminho, a nova ciência se aproxima do romance, que tem conservado, na sua vertente mais afastada do realismo, a idéia da linguagem como geradora da realidade romanesca. A ciência, então, especialmente a ciência social contemporânea, começa a se constituir ela mesma como uma história, como uma narração, como um romance. A ficção se parece com a história literária, e a história literária começa a parecerse com a ficção. O próprio Bolaño considerava a crítica como um gênero literário entre outros, fato evidente nos textos que fazem parte de seu livro Entre paréntesis, assim como em grande parte de sua obra ficcional —escrita, ela mesma, à maneira da crítica e da história literária. No mesmo sentido, Emir Rodríguez Monegal, em sua análise da obra de Borges, afirma: “Borges já demonstrou seu enfoque: todo julgamento é relativo, e crítica é também uma atividade tão imaginária quanto a ficção e a poesia” (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1980, p. 80) Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 187 187 6/11/2007 14:26:36 Gragoatá Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo 12. Quero deixar, como outra hipótese de trabalho, para explicar essa ‘volta à literatura’ que se observa em certos escritores contemporâneos da América hispânica, assim como de outros países, a possibilidade de uma reação contra a “volta do real” (FOSTER, 1996), que se evidencia, no campo literário, pelo boom de biografias, autobiografias e diversas narrativas testemunhais, escritas sobretudo por pessoas normalmente excluídas do meio literário (criminosos, prostitutas, presos etc.), assim como no sucesso de uma literatura sobre crimes, violência, ou aspectos marginalizados da sociedade, que estariam mostrando, segundo alguns, a “verdadeira realidade”7. Se o boom latino-americano dos anos 60 e 70 foi uma resposta ao realismo e ao naturalismo de finais do século XIX e começos do XX, dando prioridade ao uso de elementos mágicos e fantásticos na narrativa, a ‘volta à literatura’ dos últimos anos seria uma reação contra um realismo exacerbado, traumático, que vem aparecendo de forma forte no cenário literário, e que é motivado também pelos interesses econômicos da indústria cultural globalizada. Se, por um lado, a tendência do real se afasta de forma radical do mundo literário, inclusive adquirindo um tom e uma linguagem mais próximos do jornalístico, o movimento contrário mergulha de forma profunda na própria literatura. Na obra de Bolaño, por exemplo, os personagens são, quase sempre, escritores, ou leitores, ou críticos; as histórias se constroem em torno de mistérios literários: a procura de um escritor ou escritora desaparecida, ou de algum manuscrito perdido; escritores reais e imaginários aparecem nos sonhos de narradores e personagens; inclusive sua crítica literária parece ficção e, com freqüência, aparece dentro de sua ficção, e às vezes, sua ficção se escreve como crítica ou história literária. Finalmente, como diria Bolaño, ou Piglia, ou Vila-Matas, ou algum de seus personagens: tudo é literatura. Abstract Penso em romances recentes como Satanás, do colombiano Mario Mendoza, sobre a história “verdadeira” de um famoso assassino bogotano, ou romances como Cidade de Deus de Paulo Lins e Estação Carandiru de Drauzio Varella. 7 188 Gragoata 22.indb 188 This article presents a tendency in contemporary Latin-American literature to mix genres and use fictional literary criticism in the construction of hybrid novels and short stories. With Chilean writer Roberto Bolaño (1953-2003) as an exemplar, the article presents the main elements of this type of narrative, and establishes a parallel with other contemporary writers from Latin America. Finally, on offer is a theoretical hypothesis designed to explain this tendency in relation to the Latin-American literary tradition and the recent transformations in the Humanities and Social Sciences. Niterói, n. 22, p. 179-190, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:36 Romances híbridos e crítica ficcional na narrativa contemporânea latino-americana: o caso de Roberto Bolaño Keywords: Contemporary Latin-American Literature; Roberto Bolaño; Hybrid novels; Fictional criticism. Referências BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004a. ______. Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999. ______. El gaucho insufrible. Barcelona: Anagrama, 2003. ______. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004b. ______. Estrella distante. Barcelona: Anagrama, 1996a. ______. Llamadas telefónicas. Barcelona: Anagrama, 1997. ______. La literatura nazi en América. Barcelona: Seix Barral, 1996b. ______. Los detectives salvajes. Barcelona: Anagrama, 1998. ______. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das letras, 2006. ______. Putas asesinas. Barcelona: Anagrama, 2001. ______. Tres. Barcelona: Acantilado, 2000. BORGES, Jorge Luiz. Prólogo à primeira edição de “Historia Universal de la Infamia”. In: ______. 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Gragoatá Gragoata 22.indb 191 Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:37 Gragoatá Olga Valeska “Houve um tempo em que os sábios sabiam; um tempo em que Marcelin Berthelot, por exemplo, do alto a pirâmide social escrevia (em 1887): ‘o universo não tem mais mistério’. Essa certeza está morta.” (AUDOUZE) 1 Em Novais (1999). 192 Gragoata 22.indb 192 Mas o que busca o sábio? Quem seria o sábio na atualidade? Ele existiria no mundo contemporâneo? Na verdade, estas interrogações convergem em uma única indagação que se refere à crise dos discursos autorizados, legitimados com a aura do saber/poder. A ciência clássica, consolidada no século XIX, concebia a realidade como uma instância constituída por objetos diferenciados e regidos por sólidas leis de causa e efeito. Nessa perspectiva, caberia ao sujeito buscar um conhecimento imanente ao próprio objeto: descobrir e explicitar as leis existentes na natureza. Atualmente, essa concepção de realidade entra em crise e o próprio conceito de “conhecimento objetivo” é problematizado. Como afirma o roteirista de cinema Jean-Claude Carrière, em um diálogo com os astrofísicos Jean Audouze e Michel Cassé: “O conhecimento aprendeu uma coisa sobre si mesmo: que é, antes de tudo, movimento. No mesmo instante a estátua do sábio desmoronou” (AUDOUZE, 1991, p. 19). Na atualidade, as certezas apoiadas pelo racionalismo estão sendo questionadas em todos os campos do conhecimento, gerando um quadro que alguns autores chamam de “crise da razão”. Para Bento Prado Júnior (1999), em Erro, ilusão, loucura1, a idéia de razão surgiu na Grécia, já em crise, juntamente com a idéia de filosofia. Assim, crise e razão são duas instâncias inseparáveis: “Crisis perennis ou crise datada? Se datada, de quando? É certo que razão e filosofia nascem juntas, na Grécia, já em crise. Um pouco como se o verme fosse co-natural à maçã” (p. 111). Dessa maneira, pode-se dizer até que a palavra “razão” já estaria, por definição, ligada ao sentido etimológico da palavra “crise” que, derivada do verbo “krino”, significa decidir, escolher, julgar, separar, distinguir, etc. De fato, os períodos em que predominou o culto à dimensão racional da humanidade são períodos de intensa crítica a todas as verdades instituídas. Assim, para observar os traços da atual crise da razão, é necessário observar a maneira como a razão é posta em exame na atualidade, juntamente com todas as nossas concepções de mundo e de homem, passando por nossas idéias de tempo, espaço e sociedade. Mediante a importância de se refletir sobre as questões apresentadas acima, proponho, neste ensaio, uma discussão sobre o lugar da poesia e da literatura no atual contexto de mudança epistemológica. Dentro desse campo de discussão, focalizo a minha análise na obra ensaística do poeta mexicano, Octavio Paz, colocando-a em diálogo com outros discursos. Essa escolha se deve ao fato de que uma parte significativa da Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:37 El sueño de la razón... obra desse autor está empenhada em uma discussão sobre as questões do conhecimento na atualidade e sobre o lugar da poesia dentro dessas questões. Esse autor, na verdade, lida como poucos com a relação entre a poesia e a sociedade, dialogando sempre de maneira explícita com as inquietações que movem os discursos tanto filosóficos, quanto científicos. Pode-se dizer até que o pensamento paziano representaria uma voz, talvez uma das mais eminentes, que responderia a tais inquietações a partir do lugar da poesia. Como afirma o filósofo colombiano, Javier Gonzáles (1990): Paz es consciente de la difícil tarea del poeta en las actuales condiciones de banalización y agotamiento de la razón. En nuestros días los temas cruciales de la condición humana y del destino del Universo vuelven a formar parte de la imaginación artística. De acuerdo con Nietzsche, el poeta mexicano afirma que “en nuestro tiempo lo que cuenta es el arte [y la poesía] y no la verdad. (p. 33) Cf. RAZÃO. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998; LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 2 Nessa perspectiva, no presente trabalho, eu analiso o lugar do discurso poético diante dos diversos discursos que tentam refletir sobre o atual contexto de crise da razão. Ora, a palavra “razão”, ao longo da história da filosofia moderna, teve diversos significados2. Dentre eles selecionei três que me interessam de perto: o primeiro apresenta a razão em sua dimensão ética, como guia da conduta humana no exercício de sua vontade: “força que permite a liberação dos apetites que o homem tem em comum com os animais, submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida” (ABBAGNANO,1998, p. 824). Este primeiro sentido associa-se a uma idéia de homem que, separado do mundo animal, teria, na razão, uma ancoragem para a liberdade moral de superar seus próprios instintos. A segunda concepção, mais abrangente, apresenta a razão associada ao intelecto humano: uma razão analítica, vinculada à capacidade humana de compreender e analisar o mundo e agir segundo o seu próprio discernimento: “força que liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões falsas e das aparências, permitindo estabelecer um critério universal ou comum para a conduta humana em todos os campos” (ABBAGNANO, 1998, p. 824). Derivada desta última, pode-se observar um tipo de razão cientificista que se centra na separação sujeito/objeto, buscando um conhecimento objetivo do mundo e o controle da natureza. Não cabe aqui uma discussão muito ampla acerca do conceito de razão. Basta, para meus propósitos, ressaltar que esse conceito, de uma maneira geral, apresenta uma imagem universalista de homem: “homem como ser racional”, além de apontar a faculdade da razão como uma referência confiável para guiar a conduta do homem no mundo, ancorando o seu entendimento e a sua ação na sociedade e frente à natureza. Um dado interessante seria que, a partir desses conceitos universalistas Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 193 193 6/11/2007 14:26:37 Gragoatá Olga Valeska de razão, foi possível conceber uma imagem de natureza como um sistema lógico dotado de uma ordem necessária. A natureza, sábia, evoluiria em uma progressão que visaria a um fim e a um sentido. E a história, que seria fruto de uma ação racional do homem, chegaria, no futuro, a um desenvolvimento ideal da sociedade, ainda que atravessando dificuldades e crises. Observa-se, assim, que a idéia de necessidade no devir do mundo e da história fica atrelada à idéia de justiça: as coisas não só têm causas lógicas, mas essas causas obedecem a critérios justos. Justiça e razão são aproximadas, não só quando a razão é pensada como guia do homem no mundo, mas também quando a ordem cósmica é pensada como algo racional e provido de um fim. Essa visão otimista3 do devir da natureza e da história está associada a uma idéia de tempo progressivo e a uma perspectiva evolucionista de mundo. Porém, essa perspectiva, segundo Octavio Paz, abre espaço, no decurso da história, para uma identificação entre progresso e tecnologia. E a razão, que antes ocupava um lugar central na definição de homem e era apontada como um guia universal de conduta, passa a ser identificada, cada vez mais, com um racionalismo vinculado a uma função utilitária: o desenvolvimento tecnológico. A razão, paulatinamente, afasta-se do seu papel ético e moral para ser um meio de aquisição de tecnologia. Nesse contexto, existe uma identificação clara entre o progresso de uma cultura e o desenvolvimento tecnológico, incluindo, claro, a tecnologia bélica. O domínio da técnica marcaria de maneira positiva uma cultura que seria, assim, considerada avançada, desenvolvida. Essa identificação coloca em evidência o discurso científico que é, na modernidade, cada vez mais valorizado como detentor de saber/poder, passando a ocupar um lugar central também na explicação do funcionamento do universo. Como afirma o poeta mexicano: Importa ressalta r que essa perspectiva otimista frente ao devir da história não constitui uma unanimidade. Ao longo da história, vários filósofos adotaram uma visão cética frente às cosmologias construídas a partir da idéia de “ordem necessária” e frente à idéia de razão como guia ético e definidora da condição humana. Cf. As filosofias do mundo, de David Cooper (2002). 3 194 Gragoata 22.indb 194 el mundo es mi mundo: esto se manifiesta por el hecho de que los límites del lenguaje significan los límites de mi mundo... Yo soy mi mundo”. Sólo que ese “yo soy” no es el cuerpo sino mi lenguaje – el lenguaje. Un lenguaje que cada vez es menos mío: es de la ciencia. (PAZ, 1996, v. 10, p.183) Porém, o papel da ciência na configuração dessas cosmologias é contraditório: de fato, sempre existiu um interesse do discurso científico em observar e analisar o mundo, e isso o aproximaria do discurso filosófico. Porém, a intensa valorização da ciência e da perspectiva tecnicista da razão ajuda, e muito, a aprofundar o quadro da atual crise da razão: “Nada nos puede decir la técnica sobre todo esto. Su virtud filosófica consiste, por decirlo así, en su ausencia de filosofía” (PAZ,1998, p. 265). Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:38 El sueño de la razón... Em resumo, segundo Paz, a concepção de homem como ator da história leva à situação atual de radicalização dessa função: o homem transforma a natureza abrindo espaço para a tecnologia que, por sua vez, é incapaz de dar sentido ao mundo porque constitui-se como uma atividade cujo fruto está destinado à sua própria negação. O poeta mexicano chamou esse quadro conjuntural de “perda da imagem do mundo”: Para la técnica el mundo no es ni imagen sensible ni un modelo cósmico: es un obstáculo que debemos vencer y modificar. El mundo como imagen desaparece y en su lugar se levanta la realidad de la técnica, frágil a pesar de su solidez ya que están condenadas a ser negadas por nuevas realidades. (PAZ, 1999, v. 1, p.303) O período moderno, para esse autor, tem início no século XVIII e se encontra, atualmente, em sua fase final ou em um período de renovação: “La modernidad está herida de muerte: el sol del progreso desaparece en el horizonte y todavía no vislumbramos la nueva estrella intelectual que há de guiar a los hombres. No sabemos siquiera si vivimos un crepúsculo o un alba.” (OC.,v.1, p.514) 4 Para Octavio Paz, o cosmos, em culturas mais tradicionais, era provido de imagens estáveis. Os mitos narravam a história do universo, povoando-o de deuses. Essas cosmologias, além de dar um desenho para o mundo, ainda justificavam a existência humana, dando a ela uma função dentro do universo, uma função mais preservadora que transformadora do cosmos: “En la Antigüedad el universo tenía una forma y un centro; su movimiento estaba regido por un ritmo cíclico y esa figura rítmica fue durante siglos el arquetipo de la ciudad, las leyes y las obras” (PAZ, 1998, p. 260). O período que Octavio Paz chama de moderno4, por outro lado, se caracterizaria por uma crítica sistemática à religião e às mitologias. As cosmologias que passaram a predominar, nesse contexto, estariam ligadas à idéia de progresso e à razão. E o homem, pensado como “sujeito da história”, assume uma dimensão abstrata: uma humanidade incorpórea, que teria uma função transformadora do mundo. O tempo histórico, em seu aspecto teleológico e evolucionista, projeta para o futuro uma imagem utópica de mundo, um futuro ideal que poderia ser pensado como paradisíaco. A perda da imagem do mundo, na atualidade, coincide, para Paz, com o fim das utopias e com a crítica da concepção de tempo histórico, progressivo. O futuro estaria marcado pela possibilidade iminente da catástrofe. “Pensar que el mundo se puede acabar en cualquier momento y perder la fe en el futuro, son rasgos no-modernos y que niegan los presupuestos que fundaron a la edad moderna en el siglo XVIII.”(PAZ, 1999, v. 1, p. 308) Para esse autor, se a catástrofe nas sociedades tradicionais tinha um papel de “renovatio”, na modernidade ela também poderia ser pensada dentro da perspectiva da “revolução” transformadora da sociedade. Porém, na atualidade, a catástrofe estaria destituída de qualquer sentido, ela seria um simples fruto da contingência da ação humana ou um fato determinado pelo Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 195 195 6/11/2007 14:26:38 Gragoatá 5 Em Novais (1999). 196 Gragoata 22.indb 196 Olga Valeska Acidente: “[...] para nosotros la imagen de la catástrofe cósmica asume la forma a un tiempo atroz y grotesca del Accidente.” (PAZ, 1999, v. 1, p. 309) Nesse contexto, existe uma relação interessante entre o procedimento crítico da razão, o tempo linear e a entropia. O devir do tempo não se apóia, como acontecia nas sociedades tradicionais, em uma preservação do mundo, mas em sua mudança. Atualmente, a visão da entropia como resultado da ação humana no mundo leva à crítica de todas as utopias ligadas à visão de um tempo progressivo, de todas as idéias evolucionistas da história e da própria eficácia da razão como condutora da humanidade. Assim, a perda da imagem do mundo estaria associada à crítica da história, do humanismo e da própria razão humana. Conseqüentemente, associa-se também a uma crítica das construções de imagens de mundo elaboradas pelo homem e que legitimaram suas ações e deram sentido ao devir da história nos últimos séculos. Nesse aspecto, pode-se dizer que, para Octavio Paz, as imagens de mundo, na atualidade, encontram-se em um impasse: caos e cosmos coincidem de maneira desconcertante. E uma pergunta parece atravessar grande parte de sua obra: “es posible edificar algo sobre las perpetuas arenas movedizas del presente?” (PAZ, 1999, v. 1, p. 316) Frente a essa indagação, o poeta mexicano é otimista e contesta: “¿Por qué no?” Observando o contexto da “crise da razão”, Sergio Rouanet, em um artigo intitulado “A deusa razão”5, analisa a obra de Goya “El sueño de la razón produce monstruos”. Nessa análise, Rouanet, explorando a ambigüidade da palavra “sueño” em espanhol (que significa tanto sono quanto sonho), faz uma crítica dos “sonhos” do racionalismo, que criaram monstros de pesadelo em sua escalada na história. Muitos exemplos poderiam ser citados, desde o Terror do período revolucionário francês até o sonho nazista de uma sociedade perfeita. Na verdade o lugar da razão na história da humanidade é ambíguo. Como já foi dito, a relação razão/ética pressupõe que a ação livre do homem visa ao bem e à ordem. Nesse sentido, a razão humana, respaldando uma visão universalista de homem, teria a função de proteger a ordem do universo da violência da aleatoriedade e do niilismo ético. Por outro lado, a idéia da existência mesma de uma Razão universal pode resultar em uma visão totalizadora da verdade. E esta última situação serviria para justificar um tipo de hegemonia que poderia esmagar outros tipos de verdade: “La razón crea cárceles más oscuras que la teología. El enemigo del hombre se llama Urizel (la Razón), el dios de los sistemas, el prisionero de sí mismo.” (PAZ, 1998, p. 237) Nessa perspectiva, é possível observar uma outra contradição no que se refere ao papel da ciência no quadro de crise Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:38 El sueño de la razón... que marca a atualidade: a razão científica, ligada a uma visão de tempo linear e progressivo, fica atrelada a um desenvolvimento tecnológico, que se diferencia do racionalismo discriminativo, normativo e ético. A perda da imagem do mundo, assim, somase a uma crise de ordem ética bastante complexa: a razão passa a ser pensada como uma faculdade mecânica, desumanizada, porém livre de uma idéia de Verdade absoluta que supostamente poderia organizar o mundo humano, em sua totalidade. A razão também se liberta de sistemas de pensamento fechados, como alguns sistemas metafísicos. Em contrapartida, essa liberdade traz em seu rastro um aprofundamento da reificação do mundo e do homem que já estava em curso em períodos anteriores. Em outras palavras, a ordem do mundo, que se referia ao humano, à razão humana, passa a ser estabelecida pela chamada razão instrumental, utilitária, mecânica. E, se a técnica libera o mundo da opressão das metafísicas ortodoxas, seria somente para gerar outros tipos de relação de poder, não menos opressores. Saber e poder interagem, nesse contexto, como instâncias inseparáveis. Segundo Octavio Paz, os monstros sonhados pela razão, na atualidade, não têm imagem. A complexidade do mundo atual, espaço dilatado pelo excesso tecnológico e pela amplitude da rede de comunicação e informação, torna a tarefa de dar sentido ao mundo cada vez mais árdua. Além disso, como já foi observado, a razão, quando ligada ao desenvolvimento tecnológico, deixa de ocupar um lugar central na ética e na própria definição de humano para desempenhar um papel utilitário no processo de produção. A técnica não mantém, como o artesanato, os vestígios do gesto criativo, pessoal, de seu criador, mas é, ela mesma, vestígio da ação humana no mundo, um gesto desprovido de sentido simbólico: molda o mundo a partir de um objetivo utilitário, sem concebê-lo como imagem: La técnica no es ni una imagen ni una visión de mundo; no es una imagen porque no tiene por objeto representar o reproducir a la realidad; no es una visión porque no concibe al mundo como figura sino como algo más o menos maleable para la voluntad humana. Para la técnica el mundo se presenta como resistencia, no como arquetipo: tiene realidad, no figura. Esa realidad no se puede reducir a ninguna imagen y es, al pie de la letra, inimaginable. (PAZ, 1998, p. 262) Assim, o dado sensível se desprende, paradoxalmente, também da cosmologia materialista configurada pela razão mecanicista, porque a ciência constitui um mundo de abstrações que tiram de foco a forma e a qualidade associadas à matéria sensível. Para Octavio Paz, o mundo, nesse contexto, acaba por se configurar a partir de um tipo paradoxal de “materialismo abstrato”: Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 197 197 6/11/2007 14:26:38 Gragoatá Olga Valeska Para conocer a la naturaleza – en realidad: para dominarla- la hemos cambiado; ha cesado de ser presencia corpórea para transformarse en una relación. La naturaleza se ha vuelto, hasta cierto punto, inteligible; también se ha vuelto intangible. Ya no es cuerpo es equación. (PAZ, 1996, v. 10, p.182-3) A visão do mundo material como objeto de estudos e controle tem seu similar na visão científica do corpo humano, que é estudado como matéria inerte. Assim, não só o mundo perde a sua imagem e se mantém como um espaço a ser compreendido para ser melhor dominado, como também o corpo é colocado sob controle diante do olhar analítico da ciência, que o fragmenta em partes e o separa do seu contexto sócio-cultural. Essa visão desencarna também a história, para transformá-la em um conjunto de fatores abstratos, alheios ao próprio homem em sua “corporeidad”. Assim, juntamente com a perda da imagem do mundo, a imagem do homem também se perde. Cambios en la genealogía del hombre: primero criatura de Dios; después, resultado de la evolución de las células primigenias; e ahora mecanismo. La inquietante ascensión de la máquina como arquetipo del ser humano dibuja una interrogación sobre el porvenir de nuestra especie. [...] La persona humana sobrevivió a dos totalitarismos: ¿sobrevivirá a la tecnificación del mundo? (PAZ, 1996, v. 10, p. 338-9) Em resumo, para o poeta mexicano, a separação corpo/ não-corpo, empreendida pela metafísica ocidental, tem ecos importantes no contexto do mundo atravessado pela tecnologia. Essa situação é denominada por ele de “materialismo abstrato”, um materialismo que, tomando a natureza como objeto a ser estudado e utilizado, cria, no entanto, uma configuração abstrata, incorpórea, do mundo e do homem. De qualquer maneira, a perda da imagem do mundo, apontada por Paz, estaria vinculada a todo um contexto em que predomina uma perspectiva racionalista associada à técnica. Essa visão contamina toda a cosmologia configurada em períodos recentes, obrigando a um alijamento da imaginação humana, seja mítica ou poética. Para Octavio Paz, a lógica utilitarista da razão é problemática por vários motivos, mas, principalmente, porque contamina a postura do homem diante da natureza, de si mesmo e também diante da própria linguagem. Ora, essa perspectiva concebe a linguagem como meio de representação (objetiva) da realidade: a palavra, transparente, torna-se um veículo incorpóreo que transmite um sentido afastado da experiência do mundo físico. Assim, Octavio Paz assinala a cisão da palavra entre o uso prosaico e o poético: Todas nuestras versiones de lo real – silogismos, descripciones, fórmulas científicas, comentarios de orden práctico, etc. – no recrean aquello que intentan expresar. Se limitan a representarlo o describirlo.[...] El verso la frase-ritmo evoca, resucita, 198 Gragoata 22.indb 198 Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:39 El sueño de la razón... despierta, recrea. O como decía Machado: no representa, sino presenta. (PAZ, 1998, p. 109) Surge, dessa forma, um terceiro protagonista no quadro atual da crise da razão: o discurso poético que também participa, juntamente com o discurso filosófico e científico, da conjuntura que enfrenta, atualmente, a perda da imagem do mundo. Nesse contexto, a poesia definida por Paz como “geradora de imagens”, ocupa um lugar paradoxal: “Pues bien, la poesía se enfrenta ahora a la pérdida de la imagen del mundo. Por eso aparece como una configuración de signos en dispersión: imagen de un mundo sin imagen” (PAZ, 1999, v. 1, p. 302). O lugar da poesia, no quadro descrito acima, merece uma explicação mais detalhada: como já foi afirmado, para Octavio Paz, a modernidade leva o homem à experiência da aceleração do tempo, que é vivenciada na vacuidade do rompimento contínuo com o passado e a perda da dimensão do presente. Essa experiência, denominada “superstição do progresso”, leva à crença em uma linha evolutiva infinita que, identificada com o transcurso temporal, acaba reduzindo o “agora” a um sentido de incompletude e insuficiência. Essa vivência de uma temporalidade magnetizada pelo futuro não se prende somente à renovação tecnológica, mas a uma valorização, no campo da arte e da poesia, do novo. Paz assinala o início desse procedimento, chamado “tradição da ruptura”, no período do Romantismo. De fato, o poeta romântico parece espelhar-se na imagem de um Prometeu que rouba o fogo do saber e da arte, rompendo com toda uma estética baseada no gosto clássico: “Fue la primera y más osada de las revoluciones poéticas. La primera que explora los dominios subterránea del sueño, el pensamiento inconsciente y el erotismo; la primera, asimismo, que hace de la nostalgia del pasado una estética y una política” (PAZ, 1999, v. 1, p. 368). De uma maneira resumida pode-se afirmar que, para Octavio Paz, o poeta moderno será levado a esgrimir-se com a espinha dorsal da modernidade: o tempo linear, homogêneo e vazio. Porém, contraditoriamente, acaba por confirmá-lo porque cada poética ganha, a seu tempo, as marcas do efêmero e do contingente: A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tradição, que por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. (PAZ, [19--], p. 18) Em outro aspecto, quando o poeta rompe com a ordem presente, ele retoma elementos do antigo, remodulando-os como novidade. Assim, ao mesmo tempo em que se insere na Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 199 199 6/11/2007 14:26:39 Gragoatá Olga Valeska temporalidade evolutiva linear, ele rompe com esta, forçando a convivência paradoxal do tempo linear com um tipo de circularidade temporal. Sobre essa questão, Maria Esther Maciel (1999) em “Vôo Transverso” afirma: “[...] recusa paradoxal das idéias modernas de futuro e de progresso, visível na controvertida tese de Valéry segundo a qual o poeta moderno “entra no futuro em marcha ré.” (p. 56) Ressalte-se que o artista moderno, mesmo em seu radicalismo vanguardista, ao tentar romper com uma estética, era somente para buscar fixar outra, considerada melhor que a anterior. Dessa forma, pode-se dizer que as propostas estéticas na modernidade mantinham, pelo menos nesse aspecto, uma visão de mundo essencialista e evolucionista que, apesar de não deixar cristalizar nenhuma convenção, não deixava de reconhecê-las em seus antagonismos. Ora, uma oposição polarizada, muitas vezes, não representa ausência de valor estético, mas seu recrudescimento. E a estética da ruptura é, a meu ver, uma confirmação contraditória disso: um artista só pode romper com aquilo que possui, para ele, um desenho claro. Por outro lado, ele só pode defender a superação de uma estética se acredita numa linearidade evolucionista, se acredita na superação do presente pelo futuro. Assim, pode-se afirmar que a tradição da ruptura relativiza os valores estéticos, não por uma descrença nesses valores, mas pela repetição exaustiva do gesto de romper com eles. Esse gesto contraditório acaba revelando, não uma ausência de valor, mas sua relatividade móvel e sua pluralidade. Para Octavio Paz, as constantes rupturas no período das vanguardas teria levado à experiência de um tempo fragmentado e espacializado que caracteriza a atualidade: “No fim da modernidade, o ocaso do futuro, manifesta-se na arte e na poesia como uma aceleração que dissolve tanto a noção de futuro como a de mudança” (PAZ, [19--], p.198). Tal disposição força a convivência de várias temporalidades que acabam por confundir-se com um presente fixo e móvel a um só tempo: “A poesia que começa agora, sem começar, busca a interseção dos tempos, o ponto de convergência. Afirma que, entre o passado confuso e o futuro desabitado, a poesia é o presente” (p. 204). Assim, a ruptura ritualizada pelas vanguardas passa a constituir-se como uma tradição: o gesto de negar passa a ser mimetizado pelas mãos de todos os artistas. E o fazer poético passa a vivenciar o impasse de um Prometeu que, livre da cadeia que o prendia no monte Cáucaso, descobre-se aprisionado nos labirintos de uma liberdade quase ilimitada. E essa liberdade lega à posteridade o que se pode chamar de certeza da incerteza estética: a mescla, tão atual, entre arte e artifício. Dessa forma, acredito que um dado importante para pensar o fazer artístico (e poético), na atualidade, não seria tanto, como apontam muitos 200 Gragoata 22.indb 200 Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:39 El sueño de la razón... autores, a relativização dos valores estéticos. Tal relativização também marcava a visão moderna de arte. O que diferencia, de maneira mais nítida, a nossa época e o período chamado “moderno” seria a descrença na linearidade evolutiva que tornaria impossível um retorno à estética da ruptura. A partir dessas reflexões, pode-se observar que a atual crise da razão também afeta profundamente o campo da poesia. Ora, a objetividade cientificista que fundamenta a técnica criticada por Octavio Paz é avessa, por princípio, à ambigüidade poética. O status de verdade do discurso científico frente aos demais discursos advém dos resultados práticos e econômicos obtidos pelo desenvolvimento tecnológico e da valorização do conhecimento cumulativo, objetivo e universal. Nesse contexto, a comprovação de uma verdade se dá pela possibilidade de um experimento ser repetido por toda a comunidade científica, obtendo resultados iguais. Isso não quer dizer que as metáforas e as imagens não tenham sido usadas nos diversos campos da ciência, seja como forma de expressão ou como forma de construção de conhecimento. Vários são os exemplos da presença de imagens envolvendo a criatividade humana e as grandes descobertas científicas. De acordo com esse ponto de vista, Octavio Paz também pensa o conhecimento de um modo geral como algo ligado à experiência da forma: baseado no lingüista Whorf, ele parte da premissa de que “a referência é a parte menor do sentido, e o poder configurativo a maior” (PAZ, 1991, p. 42). Porém, se as imagens são usadas, no campo da ciência, com um determinado fim, para auxiliar a compreensão ou mesmo para produzir conhecimento, na poesia as imagens são a sua matéria mesma, sua força e sua vitalidade, o que não impede a geração de um tipo de saber que surgiria de um tipo de “lógica concreta”, uma outra lógica diferente da racionalista. Como afirma Paz: “El eje de esta lógica es la relación entre lo sensible y lo inteligible, lo particular y lo universal, lo concreto y lo abstracto [...]. Es una lógica concreta porque para ella lo sensible es significativo [...]” (PAZ, 1996, v. 10, p. 530) Como já foi observado, um saber como o mencionado acima não daria ao mundo um sentido unívoco, como desejaria a ciência clássica: a imagem poética, que se estrutura a partir dessa “lógica concreta”, faz convergir no corpo da linguagem uma possibilidade infinita de gerar sentidos: “Todas ellas [todos los tipos de imágenes] tienen en común el preservar la pluralidad de significados de contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimirlos” (PAZ, 1998, p. 98). Ressalta-se que o conceito de “imagem poética”, definida pelo poeta como: “toda forma verbal, frase o conjunto de frases, que el poeta dice y que unidas componen un poema” (PAZ, 1998, p. 98), inclui os sons, as metáforas, os ritmos e as formas, Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 201 201 6/11/2007 14:26:39 Gragoatá Olga Valeska assim como representa uma interação entre palavra, homem e mundo. Essa perspectiva possibilita vislumbrar uma visão de mundo em que a linguagem que a veicula não seria pensada em seu caráter referencial, mas em sua dimensão analógica: um conjunto de relações: La poesía concibe al lenguaje como un universo animado, recorrido por una doble corriente de atracción y repulsión. [...] Cada poema, cualquiera que sea su tema, su forma y las ideas que lo informan, es ante todo un pequeño cosmos animado. El poema refleja la solidaridad de las “diez mil cosas que componen el universo. (PAZ,1999, v. 1, p. 592) Octavio Paz faz uma distinção entre linguagem verbal (da poesia enquanto gênero, por exemplo), e linguagem não verbal (das artes plásticas, da música, da dança, etc). Porém, para o poeta mexicano, a poesia também se articula através da linguagem não verbal, na medida em que participa da dimensão sensível dessas outras artes, através do ritmo, da forma, etc. 6 202 Gragoata 22.indb 202 Ora, para o poeta mexicano, o conhecimento humano é plasmado a partir da matéria da linguagem6. Existe, assim uma imanência recíproca entre a linguagem e a visão de mundo que podemos ter: a linguagem que usamos é fruto, meio, limite e a matéria do nosso horizonte de conhecimento. A apreensão que temos do mundo é algo intrínseco à linguagem, indissociável dela. Mesmo o homem é pensado, nesse contexto, como uma metáfora: “El hombre es hombre gracias al lenguaje, gracias a la metáfora original que lo hizo ser otro y lo separó del mundo natural. El hombre es un ser que se ha creado a sí mismo al crear un lenguaje. Por la palabra, el hombre es una metáfora de si mismo.” (PAZ, 1998, p. 34). Nesse aspecto, a linguagem poética em sua dimensão analógica é também o próprio mundo e um mundo em si mesmo. Além disso, a partir do jogo de similitudes e assimilações metafóricas, a poesia também atua na alquimia das coisas, participa do “ser” das coisas, porque compreender é também ser. Assim, a “cosmologia poética”, observada em Octavio Paz, segue uma “outra lógica” além da razão, porém, sem deixar de participar desta. Ela estabelece, na linguagem, uma ligação entre o abstrato do sentido e sua dimensão sensível: corpo e não-corpo se enlaçam. Coerente com esse ponto de vista, ao tentar responder à pergunta: “es posible edificar algo sobre las perpetuas arenas movedizas del presente?” (PAZ, 1999, v. 1, p. 592), Octavio Paz dá à poesia um papel central: “La poesía es el antídoto de la técnica y del mercado. A eso se reduce lo que podría ser, en nuestro tiempo y en el que llega, la función de la poesía. ¿Nada más? Nada menos.” (PAZ, 1999, v. 1, p. 592). “La analogía es el nexo” mas é também jogo, dança de signos que nos conta uma história de mundo, porém uma história em que não existe sentido fixo: os nexos são variáveis e efêmeros. A ironia está sempre no centro da analogia e marca a potencialidade infinita da rotação dos signos: “Poema: ideograma de un mundo que busca su sentido, su orientación, no un punto fijo sino en la rotación de los puntos y en la movilidad de los signos” (PAZ, 1999, v. 1, p. 301). Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:39 El sueño de la razón... A partir dessas observações, fica claro que o conceito de “poesia”, para o poeta mexicano, não se reduz somente ao campo da escrita: é uma experiência vital, corpórea, e também uma “outra lógica”, uma “outra voz” que transcende qualquer definição de gênero literário. A poética de Octavio Paz não pode ser, assim, desvinculada de uma crítica da própria razão utilitária, objetivista e desencarnada: La imagen no explica: invita a recrear-la y literalmente, a revivirla.[...] El universo deja de ser un vasto almacén de cosas heterogéneas. Astros, zapatos, lágrimas, locomotoras, sauces, mujeres, diccionarios, todo se comunica y se transforma sin cesar, una misma sangre corre por todas las formas. (PAZ, 1999, v. 1, p. 113) Ressalte-se que Octavio Paz, quando pensa a função da poesia no mundo sem imagem, não nos propõe, como se poderia pensar em um primeiro momento, uma nova utopia política ou uma nova República platônica, dessa vez povoada por poetas, mas afirma uma lógica poética, num sentido amplo da palavra, como forma de saber no mundo: um saber alicerçado, não num conhecimento puramente abstrato, mas também no corpo (da linguagem, do homem e do mundo): uma sagesse que se refere a uma compreensão que vai além de uma reflexão racional, desencarnada: como já foi observado, corpo e não-corpo convergem. Como afirma Gonzalez Javier (1990), em El cuerpo y la letra: “En el cuadro de la crisis y del retorno a lo sensible el arte [y la poesía] deviene el modelo de la nueva epistemología. Es desde esta perspectiva que deben considerarse las ideas filosóficas del poeta mexicano” (p.18). Importa observar que esse quadro que Octavio Paz chama de perda da imagem do mundo, também está vinculado à proliferação do “eu” que se dá em vários níveis: em primeiro lugar, se dá na cristalização da idéia de pessoa nos limites do individualismo; em segundo lugar, na negação, no âmbito das sociedades, do “outro” em benefício do “mesmo”; e, finalmente, na rasura da lógica poética, metafórica, do seio da nossa compreensão de mundo, em favor de uma suposta razão universal. Analisando o Don Quixote de Cervantes, Octavio Paz aponta a opção da modernidade no sentido de negar o “outro” e essa “outra lógica” representada pela loucura poética de Quixote: “Al expulsar a don Quijote, paradigma del lenguaje como irrealidad, se desterró a lo que llamamos imaginación, poesía, palabra sagrada, voz de otro mundo” (PAZ, 1999, v. 1, p. 312). A oposição Don Quijote/Don Quijano, mais que uma crítica aos romances de cavalaria, representa, para o poeta mexicano, uma cisão no centro da própria linguagem (e na lógica que guia a compreensão moderna de mundo): a palavra poética (louca, imaginativa); e a palavra racional (prosaica, prática, realista, Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 203 203 6/11/2007 14:26:40 Gragoatá Olga Valeska objetiva). Assim, juntamente com a morte de Quixote, ocorre um alijamento de toda uma visão imaginativa, poética, de mundo: ou ocorre uma marginalização da poesia por meio de um processo de auratização, o que a impediria de tocar, participar da matéria do mundo; e/ou ocorre uma negação do tipo de “saber” que ela veicula. Nota-se que a otredad, no contexto paziano, assinala possibilidades de mudança que incidiriam em vários níveis da sociedade: na idéia de pessoa, para além de si mesma; uma proposta ética de aceitação das diferenças culturais, sexuais e sociais; e, principalmente, a aceitação da lógica poética como instrumento gerador de um “saber sobre o mundo” a partir de uma lógica inclusiva: “isso é aquilo”; “isso e aquilo”: La imaginación poética no es invención sino descubrimiento de la presencia. Descubrir la imagen del mundo en lo que emerge como fragmento y dispersión, percibir en lo uno lo otro, será devolverle al lenguaje su virtud metafórica: darle presencia a los otros. La poesía: búsqueda de los otros, descubrimiento de la otredad. (PAZ, 1998, p. 261) Assim, pode-se dizer que a otredad, em seu movimento contraditório em direção ao outro, “ser outro sem deixar de ser si mesmo”, representa uma resposta possível a uma demanda tradutória, em um sentido amplo da palavra que, como vimos, se encontra no centro das questões enfrentadas pela sociedade contemporânea: a proliferação do “eu” isolado, a aliedad. Seguindo uma perspectiva analógica de mundo, a otredad abre espaço para uma possibilidade de enlace entre as diferenças: uma compreensão do “outro”: “[...] estoy solo y estoy contigo, en un no sé dónde que es siempre aquí. Contigo y aquí:¿quién eres tú, quién soy yo, en dónde estamos cuando estamos aquí?” (PAZ, 1998, p. 266) Em outro aspecto, esse conceito também pode ser pensado como um procedimento metafórico que torna irrisória uma opção entre ser/não-ser; verdade/mentira; sujeito/objeto; realidade/ imaginação; etc. Essa irrisão não significa uma fusão, ou indistinção de termos, mas uma tensão que mantém as polaridades em movimento num “ponto de crise”. As polaridades são intercambiáveis, mas não são redutíveis a uma unidade fixa. Um ponto de crise, nesse contexto, constitui um lugar proliferante, onde se torna possível a emissão de uma multiplicidade de sentidos: a presença inclusiva de sentidos paradoxais advindos dos enlaces metafóricos: “[...]a analogia opõe, não a unidade impossível mas a mediação de uma metáfora. Analogia é o recurso da poesia para enfrentar a alteridade.” (PAZ, [19--], p.100) Essa idéia atravessa toda a obra paziana e pode ser exemplificada pela recorrência de títulos que evocam tais tensões: “Convergencias y divergencias”; “El arco y la lira”; “Corriente alterna”, etc. 204 Gragoata 22.indb 204 Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:40 El sueño de la razón... Assim, para Octavio Paz, a imagem poética é também otredad: um saber advindo de uma “lógica poética” imanizada por um movimento em direção ao “outro”. Tal saber abarca e incorpora, desse modo, o sentimento vertiginoso de uma tradução que é paixão e conhecimento, que é reflexão e entrega: o “e” que enlaça as metáforas que desenham o mundo a partir de um tempo escandido na intensidade viva do aqui/agora: na experiência da agoridad. “Metáfora del cambio, el ahora disuelve al pasado y al futuro y así se disuelve a si mismo. Disolución del tiempo, no en una eternidad incomensurable sino en una vivacidad igualmente sin medida.” (PAZ, 1999, v. 1, p. 316) Para o poeta mexicano, o tempo é o fundamento da configuração de uma imagem de mundo: “Todas las sociedades poseen lo que comúnmente se llama una ‘imagen de mundo’.Esa imagen hunde sus raíces en la estructura inconsciente de la sociedad y la nutre una concepción particular del tiempo.[...]El tiempo es el depositario del sentido” (PAZ, 1999, v. 1, p. 301). E o que diria o tempo da agoridad a um mundo cujo sentido se resolve em dispersão: um mundo sem imagem? Octavio Paz opõe a perda de imagem do mundo (e do homem) à imagem poética. Esta última atrelada aos conceitos de otredad, agoridad e corporeidad, possibilitaria uma reversão do quadro de dispersão, constituindo uma outra lógica, nem nova nem única, estabelecida na dinâmica da interexistência entre o todo e as partes, e entre as partes mesmas: el abrazo de los cuerpos y la metáfora poética. En el primero: unión de la sensación y de la imagen, el fragmento aprehendido como cifra de la totalidad y la totalidad repartida en las caricias que transforman a los cuerpos en un surtidor de correspondencias instantáneas. En la segunda: fusión del sonido y del sentido, nupcias de lo inteligible y lo sensible. (PAZ, 1999, v. 1, p. 316) Em síntese, o conceito paziano de “imagem poética” nos permite pensar uma cosmologia poética, não como um substituto dos grandes discursos que buscavam dar um sentido unificador ao mundo. Mas como configuração de imagens múltiplas capazes de proporcionar outras possibilidades de compreensão das contradições paradoxais da atualidade. Assim, pode-se dizer que a imagem poética, fundamentada no tempo do aqui/agora, nos diz sobre um salto epistemológico para a superação do impasse do mundo sem imagem. A cosmologia poética desenha o mundo como forma em movimento, fluxo em transformação, é um agora experimentado no deslimite de um infinito de possibilidades. É nesse sentido que Paz observa o lugar da poesia no contexto atual de crise da razão: a imagem poética configura um espaço compartilhado por Don Quijote e Don Quijano a partir do qual não (re)surgiria O Mundo ou O Homem, mas uma outra lógica capaz de pensá-los. Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 205 205 6/11/2007 14:26:40 Gragoatá Olga Valeska Abstract This essay is a reflection on the place of poetry and literature in the context of current epistemological changes. From this point of view, the analysis focuses on essays by Mexican poet Octavio Paz, promoting a dialogue with discourses from several knowledge areas. Keywords: Octavio Paz; Poetry; Reason crisis; Cosmology; Technology; Science; Nce. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 1999. AUDOUZE, Jean; CARRIERE, Jean-Claude; CASSE, Michel. Conversas sobre o invisível. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Martins Fontes, 1991. COOPER, David E. 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México: Fondo de la Cultura Económica, 1996. 206 Gragoata 22.indb 206 Niterói, n. 22, p. 191-206, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:40 O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade Andréa Lúcia Padrão Ângelo Recebido 9, jan. 2007/Aprovado 9, abr. 2007 Resumo A obra de Jorge Luis Borges teve influência decisiva na definição do perfil do século XX, especialmente nas questões referentes ao mundo das letras. Escritor consagrado, demonstra inegável preferência pela literatura marginal, pelo texto fora das tradições canônicas. O presente trabalho enfoca dois contos de Borges em um gênero ainda considerado “menor”, o policial. Mostra, também, como essas narrativas aparecem vinculadas a preocupações que ultrapassam o gênero, abrangendo elementos comuns ao universo borgiano: filosóficos, teológicos, místicos, míticos, metafísicos e históricos. Palavras-chave: Borges; Cânone; Transgressão; Policial. Gragoatá Gragoata 22.indb 207 Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:40 Gragoatá O marginal pode ser entendido como o comentário sobre textos existentes, o texto excêntrico, fora das tradições consagradas (BALDERSTON, 1984, p. 11). 2 Na década de 20, o termo ‘orillas’ referiase a bairros afastados e pobres, limítrofes com a cidade (SARLO, 2003, p. 48). 1 208 Gragoata 22.indb 208 Andréa Lúcia Padrão Ângelo Se observarmos o perfil do nosso tempo, é possível verificar que a obra de Jorge Luis Borges tem nele influência decisiva, principalmente no que diz respeito às questões de literatura. Dentre os escritores da América Latina é certamente um dos mais lidos, discutidos e traduzidos no mundo todo; sua obra vem marcar um novo lugar para a recepção da literatura que aqui se produz, inclusive para a nossa maneira de falar. Em conseqüência do diálogo que provocou com autores europeus ou americanos, levou as especificidades da cultura latino-americana a diversas partes do mundo. Apesar de escritor consagrado e de fazer chegar o nome da Argentina e da sua Buenos Aires às diversas línguas para as quais sua obra é traduzida, peculiarmente demonstra uma notória preferência pela literatura marginal. Borges ultraísta afirma que “o marginal é o mais belo”, já em 1921. Essa estranha preferência de Borges pela literatura marginal1 inicia na juventude não só nos seus próprios textos, mas também se acha presente na seleção de seus autores preferidos, como Stevenson, De Quincey, Chesterton. Para Balderston, a excêntrica avaliação de Borges de que, por exemplo, Robert Louis Stevenson é uma das figuras mais amoráveis da literatura inglesa constitui uma “traição” ao chamado corpo canônico da língua inglesa. E ao analisar a identificação de Borges com os citados autores, transformando-os em pontos centrais da tradição de língua inglesa, declara que o escritor argentino cria novos precursores, reescrevendo a tradição inglesa a partir de Buenos Aires, a partir de sua perspectiva de “mero sudamericano” (BALDERSTON, 1984, p. 11). Pensamento semelhante é compartilhado por Sarlo, ao afirmar que Borges delineia um dos paradigmas da literatura argentina, ao construí-la no cruzamento da cultura européia com a “inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal” (SARLO, 2003, p. 47). Assim, é possível observar, em parte de sua obra, a convivência de temas universais com a tradição dos compadritos e dos orilleros, das milongas e dos duelos com punhais. As orillas, “espacio imaginario que se contrapone, como um espejo infiel a la ciudad moderna despojada de qualidades estéticas e metafísicas” (SARLO, 2003, p. 48), constituem a periferia que Borges explora com seus orilleros; constituem o lugar onde o campo e a cidade se encontram e se desmancham, se destroem. Borges, dessa forma, libera “las orillas”2 do estigma social que as identificava, e faz delas um espaço literário, definindo ali um território original que lhe permite não só dialogar em pé de igualdade com a literatura ocidental, mas também implantar sua própria diferença em relação ao resto da literatura argentina. Ao fazer da margem uma estética pode-se dizer que Borges reafirma a especificidade, a argentinidade de sua literatura. Assim, a estética de margens, de que fala a crítica argentina, refere-se àquele aspecto da literatura de Borges em que os limites se confundem: “[...] ciudad estética Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:41 O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade No segundo volume dessa antologia estão publicados doze contos de autores de língua inglesa: nove britânicos e três norte-americanos. Tal fato certamente confirma, no gênero, a superioridade atribuída por Borges à literatura anglo-saxônica. 3 sin centro, construida totalmente sobre la matriz de un margen” (SARLO, 2003, p. 51). Apesar de serem margens, contêm um manancial, capaz de dar origem, de gerar. E é a partir dessas margens que Borges constrói sua literatura de fronteiras, uma poética que muitas vezes se alimenta da diferença, por exemplo, entre o heterogêneo, o “gênero menor” e a erudição universalista dos seus contos e ensaios; uma poética que se alimenta da mescla do marginal e do popular com o consagrado. Um gênero considerado “menor” a que Borges se dedica durante grande parte de sua vida literária é a narrativa policial, que se faz presente na sua formação desde a infância e atravessa sua maturidade literária como centro contínuo de interesse. Esse interesse deve-se, em parte, à influência exercida sobre ele pela literatura de língua inglesa, berço da narrativa policial. Impregnada com o tempo mágico, com o tema do duplo, com o sonho, com o pesadelo ou com uma realidade que freqüentemente se apresenta misteriosa, fantástica ou irreal, é principalmente na Grã-Bretanha que se realiza uma aproximação do sobrenatural com o gênero policial. Tal fato ocorre principalmente na obra de Chesterton, mas também na de outros escritores como Stevenson, autor de numerosas narrativas fantásticas como The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde e New Arabian Nights, que nos revela uma Londres fantástica, antecipatória das atmosferas policiais típicas de Chesterton. O especial interesse que Borges sente pela narrativa policial não se limita aos clássicos do gênero, que leu avidamente (de Poe a Chesterton), mas estende-se a escritores que considera de menor densidade literária, como Conan Doyle e Agatha Christie. Sua Antologia do conto policial, compilada em colaboração com Adolfo Bioy Casares, e publicada em dois volumes, em 1943 e 1951, com diversas reedições, nos dá testemunho dessa variedade de interesse e leituras.3 Isabel Stratta (1999, p. 55) considera que o interesse demonstrado por Borges por esse gênero literário se deve, em grande parte, a uma necessidade de atacar “o que considerava as tendências caóticas do romance contemporâneo”. Segundo a autora, esse foi um mecanismo freqüentemente utilizado pelo autor argentino: ressaltar os méritos de um escritor ou de um gênero para, por contraste, evidenciar as falhas de outros (ou, ao contrário, atacar um para ressaltar o outro). Assim, ao elogiar a disciplina construtiva do policial, evidencia o que chama de época de desordem da literatura: “el relato policial no prescinde nunca de un principio, de una trama y de un desenlace. Interjecciones y opiniones, incoherencias y confidencias agotan la literatura de nuestro tiempo; el relato policial representa un orden y la obligación de inventar.” (BORGES, 1999a, p. 250). Os contatos mais explícitos do Borges-escritor com o gênero iniciam-se em meados dos anos 30, prolongando-se no começo dos anos 50 (RIVERA, 1995, p. 133). São marcados por alguns Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 209 209 6/11/2007 14:26:41 Gragoatá Outros comentários sobre Chesterton foram feitos em 22 de julho de 1936, também em Sur, no ensaio “Modos de G.K. Chesterton”. E, finalmente, nos Anales de Buenos Aires, n. 20-22, out./dez. 1947, ao publicar uma “Nota sobre Chesterton”. 5 Balderston, Daniel. El asesinato considerado como una de las bellas artes. In: El precursor velado: R.L. Stevenson en la obra de Borges. Tradução de Eduardo Paz Leston. Buenos Aires: Sudamericana, 1985. Disponível em: <http://www.hum. au.dk/romansk/borges/ bsol/db5.htm>. Acesso em: 05 mar. 2005. 4 210 Gragoata 22.indb 210 Andréa Lúcia Padrão Ângelo textos ficcionais e por uma grande quantidade de artigos, resenhas, ensaios e prólogos em que o escritor se dedica a comentar narrativas, narradores e o próprio gênero. Dessa infinidade de textos compostos por Borges de um modo oblíquo e descontínuo, “pero sumamente coherentes” (STRATTA, 1999, p. 55), é possível extrair, além de um código estético que norteia suas composições literárias, uma teoria borgiana do conto policial. Dentre um conjunto de publicações sobre o gênero, destacase o ensaio “Los laberintos policiales y Chesterton” (1999, p. 126-9), surgido em 1935, em Sur, por ocasião do lançamento do quinto e último volume das aventuras do Padre Brown, de Chesterton.4 Nesse ensaio, que pode ser considerado um dos mais importantes estudos de Borges sobre o policial, ele descreve a forma ideal da narrativa policial, distingue o romance do conto policial e propõe seis requisitos para o gênero: 1) “Un límite discrecional de seis personajes”. Assim, as personagens devem ser poucas. 2) “Declaración de todos los términos del problema”. Como um jogo, deve-se oferecer ao leitor todos os elementos necessários à resolução do enigma. 3) “Avara economía en los medios”. Ou seja, os enigmas devem ser simples. 4) “Primacía del cómo sobre el quién...”. Deve prevalecer a originalidade do argumento; dessa forma, a trama importa mais que as personagens. 5) “El pudor de la muerte”. Supressão dos detalhes violentos e desnecessários à trama. 6) “Necesidad y maravilla en la solución”. A resolução do enigma deve surgir quase como uma epifania e maravilhar o leitor. Balderston5 enfatiza a ausência de algumas convenções do gênero no código proposto por Borges. Para o crítico norte-americano, esses princípios, que o escritor argentino estabelece para orientar a narrativa policial, não devem ser encarados como leis canônicas, mas como constantes que dão estrutura a um gênero instável e sujeito a contínuas inovações. O próprio Borges afirma, ao resenhar Excellent Intentions, de Richard Hull: “entiendo que el género policial, como todos los géneros, vive de la continua y delicada infracción de sus leyes” (BORGES, 1996, p. 359, v. IV). Também no prólogo do livro Elogio de la sombra, Borges confessa o que considera uma “astúcia” utilizada em seus relatos: “recordar que las normas anteriores no son obligaciones y que el tiempo se encargará de abolirlas” (BORGES, 1996, p. 353, v.II). Dessa forma, fixando apenas os limites que não devem ser ultrapassados sob pena de perder em rigor e interesse, o escritor sente-se à vontade para inovar em seus próprios contos. É importante ressaltar que, ao lado de autores como Chesterton, Stevenson e Ellery Queen, Poe é uma das mais constantes Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:41 O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade referências na construção da teoria do policial para Borges. De acordo com o autor de Ficciones, a narrativa policial é tributária desse escritor, à medida que ele cria um gênero fantástico da inteligência, fazendo com que a literatura seja considerada “una operación de la mente, no del espíritu”. Assim, “hablar del relato policial es hablar de Edgar Allan Poe, que inventó el género”, sendo a literatura moderna “inconcebible sin Poe” (BORGES, 1997, p. 83-7). Numa conferência sobre o conto policial, proferida em 1978, na Universidade de Belgrano, Borges tem a oportunidade de afirmar que: Poe no quería que el género policial fuera un género realista, quería que fuera un género intelectual, un género fantástico si ustedes quieren, pero un género fantástico de la inteligencia, no de la imaginación solamente, de ambas cosas desde luego, pero sobre todo de la inteligencia. (BORGES, 1997, p. 94) Assim, Borges mostra-se abertamente favorável ao conto policial racional, na sua vertente inglesa, criada pelo americano Poe e seu detetive Dupin.6 Por outro lado, rejeita a vertente americana da chamada série “noire” de Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Na conferência sobre o conto policial, já referida anteriormente, Borges constata que o gênero policial apresenta-se nos Estados Unidos de forma realista, enfocando violência, inclusive de natureza sexual. E destaca o desaparecimento da história policial clássica, com suas características intelectuais, excetuando apenas os autores ingleses que ainda escrevem romances de enredo sóbrio, sem excessivo derramamento de sangue (BORGES, 1997, p. 103-4). Na sua produção ficcional Borges imprimiu nova dimensão ao conto policial contemporâneo, introduzindo nele questões filosóficas e metafísicas e temas recorrentes na estética borgiana. O início da cronologia policial de Borges data de 1936, com a publicação de “El acercamiento a Almotásim”, surgido primeiro como ensaio, em Historia de la eternidad, e depois como conto, em Ficciones; consiste no esboço bibliográfico de um livro fictício, caracterizado pelo que o autor, ironicamente, chama de “la primera novela policial escrita por un nativo de Bombay City” (RIVERA, 1995, p.133). Aqui Borges emprega esse procedimento, tão freqüente em seus ensaios, o de simular que um livro já existe e fazer sobre ele um resumo ou comentário. Em 1941, no Prólogo a “El jardín de senderos que se bifurcan”, Borges afirma: De forma curiosa se pode observar que o conto policial de estilo clássico, ou europeu, admirado por Borges, paradoxalmente nasceu na América, com Poe. 6 Desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros; el de explayar en quinientas páginas una idea cuya perfecta exposición oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario. (BORGES, 1996, p. 429) Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 211 211 6/11/2007 14:26:41 Gragoatá Andréa Lúcia Padrão Ângelo Para Alazraki, esse comportamento, embora atenda ao ideal de economia verbal que confere ao seu estilo solidez e transparência, constitui, também, um dos meios dos quais Borges se utiliza para misturar ou confundir os limites do real e do irreal (ALAZRAKI, 1983, p. 75). Em “El acercamiento a Almotásim” Borges leva o leitor a pressupor a existência de um romance – “la primera novela policial escrita por un nativo de Bombay” – que é resumida e comentada. Ao final, o resumo ou o comentário acaba por impor-nos a realidade do livro imaginado. Trata da história de um estudante de direito de Bombaim, que dedica sua vida à busca do homem de quem procede a claridade que percebera num homem vil. Assim, inicia uma peregrinação que abrange a extensa geografia do Industão. Observa-se, também, que todos os homens dos quais se aproxima e interroga têm uma parcela de Almotásim, origem dessa claridade almejada, e que essa parcela é maior nas pessoas das quais mais se aproxima. No desfecho do conto, o estudante chega a uma galeria e a incrível voz de Almotásim convida-o a entrar. No final de sua nota sobre a narrativa, Borges adiciona uma outra nota, que contém o resumo, agora, de um poema: Mantiq al-Tayr (Colóquio dos pássaros) de Muhammad ibn Ibrahim, místico persa, mais conhecido como Attar. Diz o poema que no centro da China os pássaros encontram uma pluma do Simurg (que significa trinta pássaros), seu rei e resolvem buscá-lo. Depois de inúmeras aventuras, somente trinta pássaros conseguem chegar à montanha do Simurg. “Lo contemplan al fin: perciben que ellos son el Simurg y que el Simurg es cada uno de ellos y todos” (BORGES, 1996, p. 463). Para Alazraki, este poema, que existe e não é uma criação de Borges, explica o final do romance simulado: a identidade do perseguido e do perseguidor. O estudante de Bombaim é Almotásim e Almotásim é o estudante e todos os homens. Da mesma forma, o Simurg é Deus e todos os homens são o Simurg. Ao apresentar as aventuras de um romance policial segundo o modelo de uma alegoria que expressa a crença panteísta do Sufismo, Borges evidencia o valor estético das doutrinas religiosas; aqui, as possibilidades literárias do panteísmo. Assim, quando mistura um resumo do Mantiq al Tayr com um resumo de uma obra fictícia, Borges faz com que o fictício (o romance policial) se encha de realidade e o real (o poema) adquira vislumbres de irrealidade. Também a própria estrutura do conto expressa a idéia panteísta de que tudo é todos, observável na inclusão de uma nota dentro de outra nota, de um resumo dentro de outro e a redução de ambos a versões diferentes de uma mesma doutrina (ALAZRAKI, 1983, p. 77-8). Outro conto do gênero policial, “La muerte y la brújula”, é, certamente, um dos mais celebrados do escritor argentino. Foi publicado em Sur, em maio de 1942, e posteriormente incluído 212 Gragoata 22.indb 212 Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:42 O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade em Ficciones (1944), livro que recebeu o Prêmio Internacional de Literatura, em 1961. Ler “La muerte y la brújula” significa penetrar simultaneamente em muitos mundos borgianos: do relato policial, da erudição livresca, das conjeturas, dos paradoxos, da ironia, de uma metafísica notável, da refutação do racionalismo. Esse conto tem como tema central a briga de sangue entre o detetive racional Erik Lönnrot e o chefe de uma quadrilha, o gângster Red Scharlach el Dândi, numa Buenos Aires visionária que tão freqüentemente é palco dos textos de Borges. Inimigos mortais, como indica a cor vermelha que partilham nos nomes, Lönnrot e Red Scharlach são duplos óbvios. “La muerte y la brújula” gira em torno de uma série de crimes e inicia com um assassinato cometido no Hôtel du Nord, na noite de 3 de dezembro, no Norte da cidade. Encarregados de investigar o crime, um comissário de polícia e o detetive Erik Lönnrot chegam ao local na manhã do dia 4 e são informados de que a vítima é o rabino Marcel Yarmolinsky, representante de Podólsk no Terceiro Congresso Talmúdico. Junto a seu corpo, aberto a faca, uma frase inconclusa: “La primera letra del Nombre ha sido articulada” (BORGES, 1996, p. 500 v.I). Lönnrot, um detetive racional como Dupin de Poe, busca explicações rabínicas para o crime, baseando-se nos livros que o morto carrega consigo: uma monografia sobre o Tetragrámaton, o livro dos Nomes de Deus, uma Vindicación de la cabala, um Examen de la filosofía de Robert Flood, uma tradução literal do Sepher Yezirah, uma Biografía del Baal Shem, uma Historia de la secta de los Hasidim, uma monografia sobre a nomenclatura divina do Pentateuco. Como uma característica da obra de Borges, o conto faz referências a autores e títulos pouco acessíveis ao leitor comum. Poder-se-ia acusar o autor de excesso de cultismo, se essas referências fossem meras citações. A alusão a essas obras esotéricas, entretanto, justifica-se plenamente, uma vez que constitui parte do argumento do conto e a suposta causa dos assassinatos, bem como a ordem em que eles ocorrem, ligam-se diretamente aos princípios esotéricos emanados dos textos. Um segundo crime é cometido em um subúrbio a Oeste da cidade, na noite de 3 de janeiro e forma a segunda letra do nome, conforme algumas palavras garatujadas junto ao cadáver: “La segunda letra del Nombre ha sido articulada” (BORGES, 1996, p. 501, v.I). No Leste da cidade, no dia 3 de fevereiro, ocorre um suposto terceiro assassinato, mas não se descobre cadáver algum. Somente uma mancha de sangue e a previsível frase rabiscada: “La última de las letras del Nombre ha sido articulada.” (BORGES, 1996, p. 502 v. I), o que vai se configurando, para Lönnrot, serem esses assassinatos sacrifícios místicos de uma seita judaica, os Hasidim. A primeiro de março a polícia recebe uma carta avisando que no próximo dia 3 não haveria um quarto crime porque a Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 213 213 6/11/2007 14:26:42 Gragoatá O nome sugere o filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), de origem judaico-holandesa. 8 De acordo com os estudiosos, a Cabala busca uma aproximação do homem a Deus, por intermédio do seu Nome que, na mitologia judaica, pode ser designado pela palavra grega tetragrammaton. Do grego tetra, quatro e gramma, letra, o tetragrama é representado pelas letras YHVH (às quais a tradição acrescentou os sinais vocálicos e chamou de ‘Jeová’ ou ‘Senhor’ em algumas traduções da Bíblia em Português (NASCIMENTO, Lyslei de Souza. Vestígios da tradição judaica: Borges e outros rabinos. 2001. Tese – Curso de Pós Graduação em Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte). 9 Expressão lat i n a, significando “de acordo com os métodos da geomet r ia”, em u ma referência explícita à obra de Spinoza More geométrico demonstrata (FISHBURN; HUGHES 1990, p. 233). 7 214 Gragoata 22.indb 214 Andréa Lúcia Padrão Ângelo localização dos três crimes anteriores, respectivamente no Norte, Oeste e Leste da cidade, formam “los vértices perfectos de un triángulo equilátero y místico”. Junto ao comunicado há um mapa da cidade, no qual está desenhado, em tinta vermelha, um triângulo com os três pontos cardeais. A carta é assinada por um tal “Baruch Spinoza”,7 nome que incita e desafia a racionalidade de Lönnrot. Por outro lado, de acordo com o material recebido, o espaço demarcado por um triângulo e as datas dos crimes (3 de dezembro, 3 de janeiro e 3 de fevereiro) obedeceria a uma ordem que tem por base o número três. Assim, a possibilidade de novos assassinatos estaria descartada para a polícia, mas não para Lönnrot, detetive racional, sagaz e desconfiado. Com a ajuda de uma bússola, de um compasso e da palavra “Tetragrámaton”,8 ele chega à dedução lógica de que a primazia do número três é enganadora. Contra todas as aparências, haverá um quarto crime. Lönnrot baseia-se em algumas evidências (entre elas, o fato de as letras no Tetragrámaton serem quatro e não três) e conclui que a série de crimes não é tríplice, mas quádrupla. Conseqüentemente, a figura geométrica que indica no mapa a localização dos crimes não deve ser um triângulo, mas um losango. Assim, por meio de um procedimento more geometrico,9 e utilizando uma bússola e um compasso, o detetive prevê exatamente o local ao Sul da cidade onde ocorrerá o quarto crime e que define “el punto que determina un rombo perfecto” (BORGES, 1996, p. 507, v. I): a quinta abandonada de Triste-le-Roy. Para lá ele se dirige. Ao percorrer a casa, Lönnrot constata que ela possui muitas “inútiles simetrías”: escadas, terraços, salas, esculturas, espelhos. Dessa forma, a casa é a representação de um labirinto em que tudo é duplo, como a imagem dos espelhos. Lá o inspetor é feito prisioneiro de Red Scharlach, velho inimigo, e só então compreende que ele próprio é a quarta vítima. Antes de matar o inspetor, e para completar seu triunfo, Scharlach revela a razão dos crimes e o labirinto criado para capturar Lönnrot. O último deles, agora iminente, tem como vítima o próprio detetive. Compreendendo, por fim, que foi ludibriado e vai morrer, Lönnrot ainda quer ter a última palavra: – En su laberinto sobran tres líneas – dijo por fin –. Yo sé de un laberinto griego que es una línea única, recta. En esa línea se han perdido tantos filósofos que bien puede perderse un mero detective. Scharlach, cuando en otro avatar usted me dé caza, finja (o cometa) un crimen en A, luego un segundo crimen en B, a 8 kilómetros de A, luego un tercer crimen en C, a 4 kilómetros de A y de B, a mitad de camino entre los dos. Aguárdeme después en D, a 2 kilómetros de A y de C, de nuevo a mitad de camino. Máteme en D, como ahora va a matarme en Triste-le-Roy. (BORGES, 1996, p. 507, v. 1) Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:42 O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade Famosos são os paradoxos de Zenão de Eléia, cujo objetivo era a refutação, por redução ao absurdo, do pluralismo e do mobilismo, procurando mostrar os paradoxos envolvidos na idéia de movimento. O mais famoso desses paradoxos é o de Aquiles e a tartaruga. (Paradoxo. In: JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p.189). Segundo o primeiro deles, Aquiles, o homem mais veloz da Ática, corre contra a tartaruga, o animal mais lento da criação. Arbitrariamente, Zeno estabelece que Aquiles é dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá cem metros de vantagem na corrida. De acordo com essa proposição, quando Aquiles corre os cem metros, a tartaruga avança a décima parte. Quando Aquiles avança os dez metros, a tartaruga avança um metro. Aquiles se adianta um metro e a tartaruga, um centímetro... e, assim, i n t e r m i n ave l m e n t e. Na realidade, Aquiles supera de imediato a tartaruga. Porém, para a razão, essa vitória é impossível e a corrida é infinita. Aquiles pode correr para sempre e nunca alcançar a tartaruga. 11 A imunidade do detetive, como regra do gênero policial clássico, ou de enigma, é enfatizada por Todorov, ao descrever as “espécies” de narrativa policial (TODOROV, 1969, p. 99). 10 Descobrindo que Scharlach baseou seu labirinto em um triângulo e em um quadrilátero, o inspetor lhe propõe outro novo labirinto de uma linha só: o paradoxo de Zeno.10 Citar Zeno é a solução do detetive, para vencer seu inimigo. Ao apresentar esse outro labirinto – que Scharlach aceita – Lönnrot não está apenas propondo mais um jogo intelectual: está também reescrevendo seu destino. É de se supor que Lönnrot, conhecedor das teorias de Zeno, pense que, na subdivisão infinita do espaço, Scharlach nunca poderá alcançá-lo. Segundo Barili, com “La muerte y la brújula” Borges, leitor de policiais, se estabelece na tradição do gênero, desenvolvido principalmente por britânicos e norte-americanos, e, justamente por não ser produto direto dessa cultura, move-se com grande liberdade para inovar, maneja com perícia o legado recebido e altera suas convenções, em uma clara afirmação de sua identidade como escritor latino-americano (BARILI, 1999, p. 188). Pode-se mesmo afirmar que Borges subverte o gênero e dilui suas fronteiras, recriando-o. Uma de suas muitas inovações refere-se às personagens canônicas do gênero: detetive, criminoso, vítima. Na narrativa policial clássica é o detetive quem, no final, esclarece o mistério, depois de desprezar as prosaicas e geralmente falsas soluções do comissário de polícia. Em “La muerte y la brújula”, em uma crucial transgressão, o detetive é assassinado quando lhe é revelado o motivo “de la periódica serie de hechos de sangre” (BORGES, 1996, p. 499 v. I), que não consegue impedir. Assim, inverte-se o binômio criminoso/detetive de forma que o detetive, perseguidor, se transforma na vítima, perseguida. E, inversamente, o perseguido se converte no detetive perseguidor. É o criminoso quem, conhecedor do modo de atuar do detetive, se antecipa aos seus raciocínios e o captura em uma armadilha fatal.11 Ao final, é ele quem fornece a verdadeira explicação dos fatos, baseado no que acredita ser verdadeiro. Parece que Borges, escritor, utiliza as palavras de Scharlach para falar diretamente a seu leitor, explicando-lhe os artifícios de sua escritura, desfamiliarizando-o de uma leitura convencional e propondo-lhe infinitas possibilidades de leitura (BARILI, 1999, p. 200). Assim, ao mostrar ironicamente as convenções e limitações do gênero, Borges, além de subvertê-lo e recriá-lo, obriga o leitor a refletir sobre o que está lendo, tornando-se um colaborador, um escritor do texto, a partir de suas experiências e leituras. A narrativa ambienta-se numa metrópole à qual Borges prefere não dar nome, nem situar geograficamente. No prólogo a Artificios o escritor esclarece: pese a los nombres alemanes o escandinavos, ocurre en un Buenos Aires de sueños: la torcida Rue de Toulon es el Paseo de Julio; Triste-le-Roy, el hotel donde Herbert Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 215 215 6/11/2007 14:26:43 Gragoatá Andréa Lúcia Padrão Ângelo Ashe recibió, y tal vez no leyó, el tomo undécimo de una enciclopedia ilusoria. (BORGES, 1996, p. 483, v. I)12 Também em um diálogo mantido com Alifano, Borges esclarece que coloca, neste conto, muitas das suas recordações de Buenos Aires e seus subúrbios. La Quinta Triste-le-Roy es una versión exaltada y distorsionada del espacioso hotel Las Delicias, de Adrogué, donde yo viví parte de mi juventud. [...] El Hôtel du Nord es el Plaza Hotel. En cuanto al estuario no es otro que el Río de la Plata. (BORGES in ALIFANO, 1988, p. 106) Note-se que o conto não propõe apenas um retrato de Buenos Aires, ainda que alterando-lhe as feições, mas o cenário poderia ser estendido pelo mundo afora, cita Borges no prólogo de Artificios: “Ya redactada esa ficción, he pensado en la conveniencia de amplificar el tiempo y el espacio que abarca: la venganza podría ser heredada; los plazos pod r ía n comput a rse por años, tal vez por siglos; la primera letra del Nombre podría articularse en Islandia; la segunda, en Méjico; la tercera, en el Indostaní” (BORGES, 1996, p. 483 v.I). Nesse sentido, a cidade tornar-se-ia, também, uma réplica do mundo, em outras dimensões. 13 Ao comentar o estilo literário de Borges, ALAZRAKI (1983: 199) enfatiza que ele consegue extrair das coisas comuns sua poesia intrínseca, sem prejuízo da prosa, pois “no se trata de la poesía de las palavras sino de las cosas”. Aponta os traços líricos, que, elucida, tratam-se de “verdaderos puentes poéticos”, nunca de desvios, e são parte integrante da trajetória da narrativa; ocorrem, sobretudo, quando Borges enfoca alguns temas, como a tarde, a planície e a cidade de Buenos Aires. 12 216 Gragoata 22.indb 216 Borges consegue transmitir como que um sentimento de nostalgia pela Buenos Aires de sua juventude, o que, na opinião de alguns críticos, é um dos maiores méritos de “La muerte y la brújula”. Alifano (1988, p. 106), por exemplo, afirma que “ese cuento [...] se sostiene más por su atmósfera que por su trama, aunque su trama es perfecta, inobjetable”. �������������������� Assim, Borges transforma suas próprias vivências em material literário que expressa seu sentir argentino e apesar de não enfocar temas tipicamente argentinos, o conto encerra, como mostra o fragmento abaixo, um sabor de sua cidade natal: A izquierda y a derecha del automóvil, la ciudad se desintegraba; crecía el firmamento y ya importaban poco las casas y mucho un horno de ladrillos o un álamo. Llegaron a su pobre destino: un callejón final de tapias rosadas que parecían reflejar de algún modo la desaforada puesta de sol. (BORGES, 1996, p. 501, v. I).13 Pode-se dizer que essa Buenos Aires “de sueños” não é simplesmente um cenário, em que as personagens vagueiam com desenvoltura, mas uma circunstância, mesmo, dessas personagens. Mais do que o locus, a cidade é também personagem da história. É importante ressaltar que a teoria de que Lönnrot e Scharlach são a mesma pessoa apóia-se na noção panteísta de que um homem é os outros, ou na idéia de que todos os homens são de alguma maneira a mesma pessoa (o que significa a anulação da identidade individual), constante preocupação filosófica de Borges, presente em outros contos, como em “El acercamiento a Almotásim”, já analisado. Outras narrativas de Borges abordam o tema, como “La forma de la espada”: Me abochornaba ese hombre con miedo, como si yo fuera el cobarde, no Vincent Moon. Lo que hace un hombre es como si lo hicieran todos los hombres. Por eso no es injusto que una desobediencia en un jardín contamine al género humano; por eso no es injusto que la crucifixión de un solo judío baste para salvarlo. Acaso Schopenhauer tiene razón; yo soy los otros, cualquier hombre es todos los hombres, Shakespeare es de algún modo el miserable John Vincent Moon. (BORGES, 1996 p. 493, v.I) Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:43 O conto policial de Jorge Luis Borges: cânone e marginalidade O mesmo conceito é utilizado em ”Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”: “Todos los hombres, en el vertiginoso instante del coito, son el mismo hombre. Todos los hombres que repiten una línea de Shakespeare, son William Shakespeare” (BORGES, 1996, p. 438, v.I). Também é recorrente nos contos de Borges a tese de que se alguém participa de uma entidade qualquer, ele é essa entidade; ou que uma circunstância similar, unindo várias pessoas, faz dessas pessoas uma só. No poema “El truco”, de Fervor de Buenos Aires, o conceito é enriquecido, ao aparecer perpetuado no fato de que todos que realizam uma mesma ação básica e ritual perdem a identidade individual e se tornam, de certa forma, imortais. A idéia é a de que os jogadores do passado, mortos, voltam a viver nos jogadores que, hoje, reproduzem as mesmas apostas; assim, a repetição de um ato ritualizado suspende e apaga o tempo histórico e confere eternidade aos que o praticam.14 Assim, neste artigo, procurei mostrar a opção por um gênero literário tradicionalmente considerado “marginal” feita por um dos escritores mais representativos da literatura hispanoamericana. Ao analisar dois contos policiais de Jorge Luis Borges, espero ter conseguido demonstrar que o policial em Borges aparece vinculado a preocupações que ultrapassam o gênero, abrangendo desde questões literárias a metafísicas. Também é possível confirmar nos seus contos policiais a presença de temas que são comuns às suas narrativas, policiais ou não. Dessa forma, verifica-se que a ficção policial que compõe a obra do escritor argentino vai muito além do gênero que ele conseguiu, como foi visto, subverter e até recriar, e merece ser lida como a expressão de um pensamento literário universal. Na verdade, a contribuição de Jorge Luis Borges15 à ficção policial vai mais além: ao se dedicar a um gênero considerado “menor” (hoje menos do que ontem), que despertava pouca atenção da crítica do ponto de vista da estrita literariedade, o escritor como que concorre para sua legitimação, oportunizando estudos mais abrangentes do texto policial, sob uma perspectiva menos preconceituosa. Ver MONEGAL (1987, p. 102) e SABATO (1976, p. 72). 15 E outros escritores que, segundo Vera Lúcia Follain de Figueirado, h istoricamente não se identificam com o universo da cultura de massa, como Mario Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, Rubem Fonseca (FIGUEIREDO, 1998, p. 20). 14 Niterói, n. 22, p. 207-220, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 217 217 6/11/2007 14:26:43 Gragoatá Andréa Lúcia Padrão Ângelo Abstract The work of Jorge Luis Borges had a decisive influence on the profile of the 20th century, especially concerning the literary world. An acclaimed writer, he revealed an undeniable preference for marginal literature, for text outside the canonic traditions. The present work focuses on two tales by Borges that belong to a genre still considered “minor,” the detective story. Also, it shows how these narratives appear tied to concerns that go beyond the genre, encompassing some usual elements of the Borgian universe such as philosophy, theology, mysticism, myth, metaphysics, and history. Keywords: Borges; Canon; Transgression; Detective story. Referências ALAZRAKI, Jaime. La prosa narrativa de Jorge Luis Borges. Madrid: Gredos, 1983. ALIFANO, Roberto. Conversaciones con Borges. Buenos Aires: Torres Agüero, 1994. ÂNGELO, Andréa Lúcia Padrão. Tradição e transgressão no conto policial de Jorge Luis Borges. 2006. 213f. Tese (Doutorado em Literatura)–Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. BALDERSTON, Daniel. El precursor velado: R.L. Stevenson en la obra de Borges. Tradução de Eduardo Paz Leston. Buenos Aires: Sudamericana, 1985. Disponível em: <http://www.hum.au.dk/ romansk/borges/bsol/db5.htm>. Acesso em: 5 mar. 2005. ______. Tradição e traição: Borges e Stevenson. 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Mas, enquanto a historicidade desse texto transparece nas suas entrelinhas, a sua imanente poesia define o seu aspecto de prosa poética, senão de narrativa poética, traços que apontam para um possível hibridismo literário nesse romance. Palavras-chave: Saer; O enteado; Canibalismo; Identidade; Alteridade. Gragoatá Gragoata 22.indb 221 Niterói, n. 22, p. 221-234, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:44 Gragoatá Danilo Luiz Carlos Mical A literatura é considerada um fenômeno estético, mas também uma manifestação cultural e social, utilizada pelo homem para expressar seus anseios e suas visões de mundo. Sendo a cultura o sinal mais evidente da consciência de um povo sobre si mesmo, sobre a sua identidade e o seu destino, a ficção literária se constitui numa possibilidade de registro do movimento que realiza o homem na sua historicidade, o que a tem transformado em objeto de pesquisa na mão dos historiadores. No romance O enteado (2002), de Juan José Saer, deparamo-nos com um velho narrador disposto a contar a sua história, uma experiência que lhe marcou a vida para sempre. O narrador, quando jovem, viajava como membro da tripulação de um navio que costeava a bacia do rio da Prata. Repentinamente, o barco é atacado por índios que assassinam o capitão e os demais tripulantes, com exceção desse narrador-grumete, o único sobrevivente da chacina, o qual, logo em seguida, presencia o suculento banquete preparado com os corpos de seus companheiros, pelos canibais da tribo Colastiné. Passando a conviver com os índios, sem saber ao certo a razão de ter sido poupado, esse narrador observa que a história se repete a cada ano, uma vez que novas vítimas são mortas e devoradas, e surgem novos espectadores. Mas a maneira de viver daqueles índios revelava certas particularidades, pois, além de antropófagos, faziam sexo em grupo (orgias), morriam muito cedo, e a singular linguagem que praticavam possuía palavras com muitos significados, às vezes totalmente opostos, que dificultavam a aprendizagem da língua, e, portanto, da própria cultura. Assim se passam dez anos de uma convivência pacífica do narrador em meio aos índios, quando então é resgatado e regressa para o mundo civilizado da Europa. A princípio, a narrativa lembra um romance de viagem com marcas de relato etnográfico, mas depois se percebe um viés histórico inserido sutilmente nas suas entrelinhas, onde o autor tacitamente retoma o importante debate sobre a Conquista Hispânica da América, dialogando assim com outras vozes autorais e outros vieses – antropológico e sociológico – sobre essa questão, presentes em obras como A conquista da América (1999), de Todorov, e Visão do Paraíso (1994), de Buarque de Holanda. Conforme declarou Saer a respeito dos fatos históricos que o inspiraram a construir o enredo de O enteado, diz ele terse baseado num dado histórico real, qual seja, o naufrágio da expedição de Juan Díaz de Solís na região do Rio de la Plata no ano de 1515. Solís e seus homens foram emboscados e mortos por um grupo de índios, sendo o grumete o único sobrevivente da matança. “Solís desembarcou com um pequeno grupo de marinheiros e imediatamente foram atacados pelos índios que os comeram crus na frente dos outros que estavam no barco e 222 Gragoata 22.indb 222 Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:44 O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana “Solís bajó com un pequeño grupo de marineros e inmediatamente fueron atacados por los índios que se los comieron crudos frente a los otros que estaban em el barco y que miraban la escena asombrados.” 2 “El grumete que los índios habían dejado vivo es um personaje misterioso del que se sabe muy poco. Se sabe simplemente que se llamaba Francisco del Puerto porque era huérfano.” 1 que olhavam a cena assombrados” (SCHWARTZ, 2003, tradução nossa).1 Francisco del Puerto (era o nome do grumete) convive com os índios antropófagos durante dez anos, ao cabo dos quais é resgatado, voltando para a civilização, mas não sem antes revelar a existência e os hábitos gastronômicos daquela tribo, o que teria desencadeado seu extermínio total nas mãos dos conquistadores. Para o autor, o fato de Solís e os outros marinheiros terem sido comidos não é algo tão enigmático ou surpreendente, posto que a antropofagia era praticada pelos índios sul-americanos naquela época. Na verdade, o que parece ter intrigado Saer, provavelmente a ponto de motivá-lo a escrever essa ficção, foi a “adoção” do jovem grumete pelos índios Colastiné, conforme dá a entender nessa entrevista (SCHWARTZ, 2003), quando de sua passagem pelo Brasil: “O grumete que os índios haviam deixado vivo é um personagem misterioso de que se sabe muito pouco. Sabese simplesmente que se chamava Francisco do Porto porque era órfão” (tradução nossa).2 Segundo alguns pesquisadores – Albornoz (2003), e Pons (1997) –, não se tem notícia de nenhum documento no qual o grumete sobrevivente houvesse registrado suas vivências. Por isso a novela de Saer parece escrita sobre um silêncio total, uma vez que do grumete histórico (Francisco do Porto) não ficou nenhum relato, nada escrito sobre sua experiência como cativo e testemunha da antropofagia praticada pelos nativos. Mas há indícios de que existiu realmente uma tribo indígena de nome Colastiné na Argentina, ainda que dela só se conheça o nome. E, dado curioso, vale mencionar que na província de Santa Fé há dois povoados chamados Colastiné Norte e Colastiné Sul, e que Saer viveu no primeiro deles durante uma parte de sua vida. A falta de documentação e de alusões específicas dentro da obra propicia ao autor liberdade para recriar e recontar uma história que sempre se move sobre essa linha brumosa entre o real e o fictício. De acordo com Pons (1997), o romance O enteado aflora na indeterminação entre as referências históricas precisas e o passado real e inequívoco, onde se debate a tensão entre o histórico e o imaginário, tensão esta que, para Albornoz (2003), será fundamental dentro do romance. Por outro lado, não passa despercebida, no nível lingüístico e também no supralingüístico (ou diegético) desse romance, uma importante discussão sobre a maneira de se representar as coisas do mundo, uma vez que se tem não apenas um velho marinheiro que nos conta a sua história, mas um narrador que escreve de forma poética as suas memórias. Ao dar início à narrativa, sessenta anos depois, esse narrador se depara com indícios incertos e recordações duvidosas que afloram no seu discurso sob a forma de aporias. Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 223 223 6/11/2007 14:26:44 Gragoatá Danilo Luiz Carlos Mical Nesse sentido, dois aspectos do fazer literário transparecem concomitantes no discurso do narrador de Saer, quais sejam, a representação e a poeticidade. Poeticidade que talvez permita caracterizar esse velho marinheiro como um narrador-poeta, uma vez que efetua uma representação poética da sua experiência de mundo, numa linguagem narrativa praticamente lírica. É como se o valor verbal e o valor rítmico dessa linguagem “poética” pudessem substituir o conteúdo, a ação, a intriga, e todos os elementos tradicionais da narrativa. Tal como diz Bakhtin, “[o] discurso do sujeito falante no romance não é apenas transmitido ou reproduzido, mas representado artisticamente e, à diferença do drama, representado pelo próprio discurso (do autor)” (BAKHTIN, 2002, p. 135). Conforme se nota pelo excerto seguinte, que reproduz o parágrafo introdutório do romance, o estilo poético saereano chama a atenção desde o início, por já apresentar um certo lirismo que se intensificará no decorrer da narrativa. Dessas costas vazias me restou, sobretudo, a abundância de céu. Mais de uma vez me senti diminuído sob esse azul dilatado: na praia amarela, éramos como formigas no centro de um deserto. E se, agora que sou um velho, passo meus dias nas cidades, é porque nelas a vida é horizontal, porque as cidades dissimulam o céu. Lá, de noite, ao contrário, dormíamos, a céu aberto, quase achatados pelas estrelas. Estavam como ao alcance da mão e eram grandes, inumeráveis, sem muito negrume entre uma e outra, quase faiscantes, como se o céu tivesse sido a parede perfurada de um vulcão em atividade que deixasse entrever, por seus orifícios, a incandescência interna. (SAER, 2002, p. 11) Logo se percebe que o enredo é dominado menos por acontecimentos do que pelo fluxo de consciência do narrador, na descrição intimista de suas experiências. É a partir desse fragmento que o narrador retrocede mais ainda no tempo diegético, dando início ao seu relato autobiográfico. Tal como nos lembra o significado do vocábulo “enteado”, segundo o dicionário da nossa língua – “o filho de matrimônio anterior com relação ao cônjuge atual de seu pai ou de sua mãe” –, o título do romance sugere, à primeira vista, uma relação de parentesco entre personagens da história. E, à medida que o velho narrador compõe o seu relato, isto vem a se confirmar no plano diegético, configurando-se uma incomum relação de adoção, dos índios para com o grumete, que, embora aprisionado nos limites da aldeia, desfruta de uma relativa liberdade, pois, caminha, vê e observa tudo ao redor. Desse modo, a oração que inicia o segundo parágrafo do livro, e que revela a orfandade do protagonista, também já acena com a possibilidade de adoção: “A orfandade me empurrou aos 224 Gragoata 22.indb 224 Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:45 O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana portos” (SAER, 2002, p. 11), diz o narrador. Assim não surpreende o fato de os portos terem ocupado o lugar dos pais que nunca teve, tendo sido criado nas docas – ambiente descrito por imagens e sensações que esse narrador, na época um moleque de recados, guardou na memória todos aqueles anos e que recorda depois de velho. Eis o resto do parágrafo: O odor do mar e do cânhamo umedecido, as velas lentas e rígidas que se afastam e se aproximam, as conversações de velhos marinheiros, perfume múltiplo de especiarias e amontoamento de mercadorias, prostitutas, álcool e capitães, som e movimento: tudo isso foi meu berço, minha casa, me deu uma educação e me ajudou a crescer, ocupando o lugar, até onde alcança minha memória, de um pai e uma mãe. (SAER, 2002, p. 11-12) Pode-se observar no trecho acima um tom nobre na sinédoque “velas”, palavra empregada no lugar de “navios”, que remete vagamente à poesia épica. A forma do significante ajuda a construir o ritmo do discurso narrativo, como se vê pelas assonâncias (afastam/aproximam; especiarias/mercadorias), também presentes no texto em espanhol. Ademais, a presença de conjunções aditivas, assim como a cadência imposta pela pontuação, concorre para compor o ritmo desse trecho. Desse modo, o relato do velho grumete forma, tanto na tradução quanto na língua original, uma imagem em nossa mente, sem abrir mão do ritmo, cuja cadência parece ter-se deslocado para palavras contíguas – (“acunó/ayudó, padre/madre”)3. Dos nove traços que caracterizam a narrativa poética, segundo Massaud Moisés, dois deles se fazem notar no discurso do narrador de Saer, quais sejam: 3) a narrativa é um espetáculo rememorado, por entre névoas de incerteza, ou sutilezas oníricas, como se transcorresse no interior do “eu”: a narrativa desdobra-se na mente de quem a vai tecendo, como se desfiasse o novelo da memória, se abandonasse ao devaneio ou pervagasse os confins do sonho; 4) a vaguidade, ocasionada pela ambigüidade do relato, conduz as reminiscências. (MOISÉS, 2003, p. 29) [...] El olor del mar y del cánãmo humedecido, las velas lentas y rígidas que se alejan y se aproximan, las conversaciones de viejos marineros, perfume múltiple de especias y amontonamiento de mercaderías, prostitutas, alcohol y capitanes, sonido y movimiento: todo eso me acunó, fue mi casa, me dio una educación y me ayudó a crecer, ocupando el lugar, hasta donde llega mi memoria, de un padre y una madre (SAER, 2005, p. 9-10). 3 Por sua vez, Tzvetan Todorov, em As estruturas narrativas, diferencia basicamente a estrutura da poesia e a da ficção, quando diz que a narrativa ficcional se move numa linha horizontal, onde se vê o que “cada acontecimento provoca”, enquanto na poesia, quer-se saber o que “cada acontecimento é”. Para esse autor, numa mesma obra sempre se encontram juntos elementos da ficção e da poesia.“Sabe-se que a poesia se funda essencialmente sobre a simetria, sobre a repetição (sobre uma ordem espacial) enquanto a ficção é construída sobre relações de causalidade (uma ordem lógica) e de sucessão (uma ordem temporal)” (TODOROV, 1969, p. 183). Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 225 225 6/11/2007 14:26:45 Gragoatá Danilo Luiz Carlos Mical Nesse sentido, se diversas passagens de O enteado parecem conter alguma característica da narrativa poética, conforme Moisés (2003), também possuem, ao mesmo tempo, algum traço estrutural da ficcionalidade narrativa, segundo Todorov; tal como o longo trecho a seguir, onde destacamos as linhas nas quais as imagens que transparecem nos dão a impressão de que a ação ocorre a nossa frente (presentificação4): O homem, como que atordoado, ficou olhando a mulher. Não parecia enojado, nem humilhado, pelo que acabava de acontecer. Seu membro, tão peremptório até a poucos momentos, desinchou de repente e desapareceu entre as pernas; seu olhar vidrado se perdeu entre as árvores, mais com distração do que com indiferença. Era evidente que a mulher que, como o norte a bússola, havia estado atraindo o homem, já não ocupava nenhum lugar em seus pensamentos. Também nos meus sua presença era incerta: aparecera, brusca e obscena, diante de meus olhos, na transparência do dia e, depois de desdobrar nela seus gestos inusuais, desaparecera desdenhosa, entre a multidão, não menos incerta dois ou três minutos depois de sua desaparição do que agora, sessenta anos depois, em que a mão frágil de um velho, à luz de uma vela, se empenha em materializar, com a ponta da pluma, as imagens que lhe manda, não se sabe como, nem de onde, nem por que, autônoma, a memória. (SAER, 2002, p. 68, grifo nosso). A noção de presentificação é aqui empregada como “a impressão de estar em presença de um certo real”, de acordo com Lefebve (1980, p. 42). 5 Da mesma forma, a noção de materialização aqui se refere à materialidade do significante, enquanto figura, forma e aparência, conforme Lefebve (1980, p. 46). 4 226 Gragoata 22.indb 226 Segundo Lefebve (1980, p. 82) a intencionalidade literária conduz à materialização5 e ao apelo de sentido do discurso narrativo, fazendo surgir uma relação de alteridade e solidariedade entre a materialização e a presentificação que, por meio das figuras e da conotação reflexiva, produz as imagens do texto. Portanto, as imagens que o texto narrativo evoca em nossa mente dar-se-iam a ver e a ler através de um processo onde concorrem essas etapas, i.e., a intencionalidade literária, a materialização do significante e a presentificação do discurso assim produzido. Entretanto, a narração em primeira pessoa remete à poesia lírica, que possui um forte apelo emotivo, intensificando a poeticidade textual de O enteado, e dando-lhe a aparência de um romance autobiográfico, que registra, sobretudo, a intimidade da experiência vivida pelo grumete – narrador autodiegético, segundo Reis e Lopes (1988, p. 118-121). E, neste sentido, a narrativa se constitui de forma monofônica, pois é sempre o mundo visto pela perspectiva desse narrador-poeta – alguém que reúne os atributos que caracterizam a figura e o modus vivendi do sujeitolírico, conforme Todorov (1980, p. 102), quais sejam: existência bem simples – o velho narrador pouco se alimenta (come apenas pão, azeitonas e vinho), enquanto escreve o seu relato sobre a experiência vivida sessenta anos atrás –, contemplação, reflexão, e interesse pelo espetáculo do mundo, buscando nele a sua essência e o seu sentido. Logo, tudo ao redor do narrador enquanto refém dos índios – espaço que abrange as casas e as árvores da aldeia; o solo; a areia da praia e o leito do rio; e também o céu e Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:45 O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana o sol; a lua e as estrelas –, todo esse entorno se torna simbólico e marcado pela poesia. Mesmo após voltar a viver nas cidades, o espaço que esse narrador percorre ainda possui uma textura poética. Em O enteado, o tempo parece ser conduzido, se alongando ou se encurtando, segundo a vontade do narrador. Isto equivale a dizer que três ou quatro dias transcorridos no mundo diegético rendem cinqüenta, sessenta páginas de relato; dez anos passados na história correspondem a umas poucas páginas da narrativa; e, depois, cinqüenta ou sessenta anos em pouquíssimas páginas. O tempo gasto pelo narrador para contar a sua história na forma de uma autobiografia, compreende um tempo diegético onde presente e passado se misturam, emergindo através dos fluxos de consciência do narrador-protagonista. Embora o enredo não faça menção a quaisquer datas é perceptível um contexto (“pano de fundo”) histórico, qual seja, o tempo da Conquista Espanhola na América Latina, em que ocorrem os fatos diegéticos narrados, i.e., a viagem rumo à Bacia do Prata, o ataque e morte da tripulação do barco, a captura do grumete pelos índios, além das orgias antropofágicas e sexuais. Há ainda, nessa narrativa, marcas do tempo cíclico da natureza, como o devir das estações do ano e o amanhecer e anoitecer na aldeia. Mas esses indícios da passagem do tempo físico também emergem das lembranças fragmentadas do narrador-protagonista, fazendo pensar numa supremacia do tempo interiorizado sobre o tempo cronológico. E talvez coubesse uma pergunta: existe de fato uma história, ou seriam apenas fragmentos que surgem em meio à introspecção do personagem? O intervalo de tempo transcorrido entre o passado da história e o presente da narração é outro fator que caracteriza esse narrador autodiegético. De acordo com o Dicionário de teoria da narrativa (1988), dessa distância temporal também decorre uma distância em relação a princípios éticos, morais, afetivos e ideológicos, pois a pessoa que recorda os episódios já é diferente daquela que os viveu. Eis porque O enteado não se caracteriza como romance de viagem, uma vez que “[e]sse tipo de romance ignora o devir, a evolução do homem”, de acordo com Bakhtin (1992, p. 225), mas como romance biográfico, ou melhor, autobiográfico, em que “[g]raças ao vínculo que [o] liga a um tempo histórico, a uma época, fica possível refletir a realidade de modo mais realista” (BAKHTIN, 1992, p. 233). No mundo ficcional construído pelo narrador de Saer, bastante estranha era aquela linguagem praticada pelos índios, na qual uma mesma palavra significava coisas bem diferentes, o que explicaria por que eles emprestam ao grumete o apelido de def-ghi – seqüência que constitui uma das suas unidades lingüísticas mais significativas, pois se referia a uma multiplicidade de coisas, muitas delas praticamente opostas. Entre outros Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 227 227 6/11/2007 14:26:45 Gragoatá Danilo Luiz Carlos Mical sentidos, usavam a expressão def-ghi para nomear o “homem que se adiantava em uma expedição e retornava para relatar o que tinha visto, ou ao que ia espiar o inimigo e dava todos os detalhes de seus movimentos”. Era também usada para se referir ao “reflexo das coisas na água” (espelho); e também chamavam def-ghi “certos objetos que eram colocados em lugar de uma pessoa ausente e que a representavam nas reuniões, a tal ponto que às vezes lhes davam uma parte de alimento como se fossem comê-la em lugar do homem representado”; def-ghi era ainda o nome de um pássaro de “bico preto e plumagem amarela e verde que às vezes domesticavam e que os fazia rir porque repetia algumas palavras que lhe ensinavam, como se tivesse falado” (SAER, 2002, p. 161). Então, observa-se que as palavras “relatar”, “espiar”, “reflexo”, “representavam” e “repetia” (referir, espiar, reflejo, representaban, repetía), indiciam, no plano da ficção, a representação da realidade pela linguagem. Em vista disso, a estrutura narrativa de O enteado demonstra conter uma série de procedimentos poéticos, que resultam numa linguagem que explora novas formas de representar a presença das coisas no mundo, indiciando, nos dois planos da narrativa, a representação da realidade pela linguagem literária. Desse modo, chega-se ao cerne do sentido da trama de O enteado, do ponto de vista da relação expressa pelo binômio realidade/linguagem, que coloca em causa, através do discurso do narrador, a criação da realidade pela linguagem – a linguagem escrita do narrador, no plano lingüístico do romance; e a linguagem oral praticada pelos índios no plano diegético (supralinguístico) – cuja potencialidade, ao dar voz ao imaginário e nomes aos objetos, faz com que eles passem a existir ou não, tal como registra o narrador de O enteado, na sua incessante busca pelo “entendimento”: Nesse idioma, não há nenhuma palavra equivalente a ser ou estar. A mais próxima significa parecer. Como tampouco têm artigos, se querem dizer que há uma árvore, ou que uma árvore é uma árvore dizem parece árvore. Mas parece tem menos o sentido de similitude que o de desconfiança. É mais um vocábulo negativo que positivo. Implica mais objeção que comparação. Não é que remeta a uma imagem já conhecida mas que tende, antes, a desgastar a percepção e a subtrair contundência. A mesma palavra que designa a aparência, designa o exterior, a mentira, os eclipses, o inimigo. [...] Nesse idioma, liso e rugoso são nomeados com a mesma palavra. Também uma mesma palavra, com variantes de pronúncia, nomeia o presente e o ausente. Para os índios, tudo parece e nada é. E o parecer das coisas se situa, sobretudo, no campo da inexistência. (SAER, 2002, p. 147) Nessa representação poética prevalece quase sempre o sentido denotativo das palavras e frases, o que não quer dizer que 228 Gragoata 22.indb 228 Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:46 O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana inexista linguagem figurada nesse romance. Embora raramente apareça a metáfora stricto sensu – o que seria, talvez, a condição número um (ou sine qua non) para se reconhecer a poeticidade desse texto –, é freqüente a ocorrência da sinédoque (metonímia), como ocorre nas narrativas realistas, até porque um dos temas discutidos no entrecho nada tem de romântico em si, ou seja, a antropofagia. Na passagem seguinte, além dos adjetivos e da conjunção comparativa (como), notam-se semelhanças quanto à sonoridade (aliteração/assonância/paronomásia), de tal forma que as palavras estão ali reunidas tendo em vista padrões de semelhança, oposição, paralelismo, criados não apenas pelo som, mas pelo significado, ritmo e conotações, talvez até mais perceptíveis na tradução do que no texto original. Atribuí isso, no início, a esse sol árido que subia, constante e embrutecedor, no céu sem limites, mas, pouco a pouco, fui compreendendo que o ano que passava arrastava consigo, de um negrume desconhecido, como o fim do dia a febre às entranhas do moribundo, uma multidão de coisas semi-esquecidas, semienterradas, cuja persistência e a existência inclusive nos parecem improváveis e que, quando reaparecem, nos demonstram, com sua presença peremptória, que foram a única realidade de nossas vidas. (SAER, 2002, p. 89, grifo nosso)6 [...] Yo lo atribuí al principio a ese sol árido que iba subiendo constante y embrutecedor, en el cielo sin límites, pero poco a poco fui comprendiendo que el año que pasaba arrastraba consigo, desde una negrura desconocida, como el fin del día la fiebre a las entranãs del moribundo, una muchedumbre de cosas semiolvidadas, semienterradas, cuya persistencia e incluso cuya existencia misma nos parecen improbables y que, cundo reaparecen, nos demuestran, con su presencia perentoria, que habían estado siendo la única realidad de nuestras vidas (SAER, 2005, p. 103-104). 6 Fragmentos como esse dificultam a tarefa de apontar a função da linguagem que predomina nesse romance, considerando que – retomando Jakobson (1969) –, a função poética seja dominante apenas na poesia, arte verbal por excelência. Aliás, vale lembrar o caráter secundário da função poética em outras manifestações verbais (JAKOBSON, 1969, p. 128), como na narrativa ficcional, por exemplo. O romance de Saer não chega a ser um lento relatório de uma vida inteira, mas o relato de uma experiência incomum de vida, onde os acontecimentos que compõem a história rememorada, embora fragmentados, são narrados obedecendo a uma seqüência lógica e natural no tempo cronológico da diegese, uma vez que os dias e meses se passam, as estações do ano se sucedem, e o narrador-grumete envelhece. Portanto, a sucessão dos eventos diegéticos, de certo modo, faculta alguma percepção da historicidade do romance, no qual transparecem as crônicas da conquista espanhola na América (século XVII) e os relatos etnográficos sobre a população indígena sul-americana. Considera-se em geral romance histórico (ESTEVES, 1998), o romance cujo enredo ficcional, ainda que totalmente inventado, seja embasado em fatos históricos reais. Mas, ainda que Francisco do Porto tenha realmente existido, o que, sobretudo, parece emprestar a O enteado uma nuança de romance histórico é justamente o debate que se trava, em segundo plano, sobre a representação da conquista do Novo Mundo e da origem da Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 229 229 6/11/2007 14:26:46 Gragoatá Danilo Luiz Carlos Mical América hispânica. Na verdade, Saer não chega a ficcionalizar aquele fato histórico em particular – a expedição de Juan Díaz de Solis à bacia do Rio da Prata, no ano de 1515 –, mas simplesmente se inspirou nele para construir o seu mundo ficcional, o que talvez enquadrasse esse romance, mais adequadamente, no campo da lenda e do mito do que propriamente no historiográfico. Entretanto, de uma perspectiva moderna ou pós-moderna, sabe-se que, diferentemente da História, a literatura não tem pretensão de reconstruir o passado. De maneira descompromissada, o escritor pode construir a sua visão pessoal de um passado, e sem, necessariamente, referir-se a algum fato histórico específico. E a ficção assim produzida geralmente nos parece não apenas atraente, como mais crível e convincente que o próprio relato historiográfico, o que constitui, aliás, uma das virtudes da ficção literária. Ademais, considerando a atual pluralidade do conceito de “verdade” histórica, nada impede que, ao dizer o que pode (ou poderia) ter acontecido, a ficção diga o que realmente aconteceu de fato. Ao que tudo indica, O enteado faz parte da categoria de romance histórico que se caracteriza pela metaficção historiográfica, onde se confrontam “os paradoxos da representação fictícia/histórica, do particular/geral e do presente/passado”, de acordo com Hutcheon (1991, p. 142), levando-se em conta a criação do seu enredo dentro de um determinado panorama histórico. Se, por um lado, tem-se um “romance histórico” vinculado à colonização espanhola da América – inspirado na existência real daquele marinheiro órfão (Francisco do Porto) –, por outro, tem-se um romance de temática subjetiva, atemporal e universalizante, como são os temas da busca pela identidade, pelo autoconhecimento e pelo sentido da vida. Contudo, esse velho narrador não deixa transparecer, em nenhum momento do seu relato, qualquer tipo de ressentimento para com os índios. Pelo contrário, ao final se percebe uma certa dose de emoção da parte dele, um misto de sentimentos e sensações, que esse narrador-poeta imprime nas últimas linhas da narrativa. Não sendo fácil definir, uma leitura atenta pode revelar mais do que muitas palavras. Diz o último parágrafo do romance: Vindo dos portos, onde há tantos homens que dependem do céu, eu sabia o que era um eclipse. Mas saber não basta. O único certo é o saber que reconhece que sabemos apenas o que se concede a mostrar. Desde aquela noite, as cidades me abrigam. Não é por medo. Dessa vez, quando o negrume atingiu seu extremo, a lua, pouco a pouco, começou de novo a brilhar. Em silêncio, como tinham vindo, os índios se dispersaram, se perderam entre o casario e, quase satisfeitos, foram dormir. Permaneci só na praia. Ao que veio depois, chamo-o anos ou minha vida – rumor de mares, de cidades, de latejos humanos, cuja corrente, como um rio arcaico que arrasta os trastes do 230 Gragoata 22.indb 230 Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:46 O enteado, de Saer: uma percepção poética da Conquista Hispânica Americana visível, me largou numa peça branca, à luz das velas já quase consumidas, balbuciando sobre um encontro casual entre e com, também, certamente, as estrelas. (SAER, 2002, p. 188)7 Por venir de los puertos, em los que hay tantos hombres que dependen del cielo, yo sabía lo que era um eclipse. Pero saber no basta. El único justo es el saber que reconoce que sabemos unicamente lo que condesciende a mostrarse. Desde aquella noche, las ciudades me cobijan. No es por miedo. Por esa vez, cuando la negrura alcanzó su extremo, la luna, poco a poco, empezó de nuevo a brillar. En silencio, como habían venido llegando, los indios se dispersaron, se perdieron entre el caserío y, casi satisfechos, se fueron a dormir. Me quedé solo em la playa. A lo que vino después, lo llamo anos o mi vida – rumor de mares, de ciudades, de latidos humanos, cuya corriente, como un rio arcaico que arrastrara los trastos de lo visible, me dejó em uma pieza blanca, a la luz de las velas ya casi conumidas, balbuceando sobre um encuentro casual entre, y com, también, a ciência cierta, las estrellas (SAER, 2005, p. 223). 7 Talvez, até mais do que outras passagens igualmente poéticas desse romance, esse trecho final contém marcas de poesia, pois o seu ritmo se apresenta sincopado, como se fosse formado de versos de fato, além da ocorrência de um paralelismo (se dispersaram, se perderam) que reforça a sonoridade poética. À semelhança do que ocorreu ao longo de toda a narrativa, também aparece aí a partícula como, marca de comparação ou símile, motivada por um significado análogo e subjetivo: “[...], como um rio arcaico que arrasta os trastes do visível, [...]” (SAER, 2002, p. 188). Além disso, se pensarmos em “as estrelas”, metaforizando “os índios”, contribuiremos para aumentar a poeticidade do texto. Com base nos critérios teóricos visitados, que investigam a poesia na narrativa, pode-se pensar em O enteado como um romance poético, reconhecendo-se o investimento efetuado pelo autor na poeticidade narrativa – fato que, não apenas denota uma originalidade de estilo, mas, principalmente, ajuda a eliminar o mal-entendido de que a relação do texto com a “história” deva se dar, exclusivamente, de forma referencial, ou seja, “realista”. Ao incorporar uma percepção poética de mundo, Juan José Saer constrói uma singular representação da realidade, através do seu melancólico narrador. Quanto à historicidade desse romance, talvez ninguém a defina melhor do que o próprio autor, quando diz que O enteado não reconstrói uma época determinada do passado, mas “simplesmente constrói uma visão do passado, certa imagem ou idéia do passado que é própria do observador e que não diz respeito a nenhum fato histórico preciso” (SAER, 2002, capa). Niterói, n. 22, p. 221-233, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 231 Abstract In “El Entenado” (2002), by Juan José Saer, a narrator of old age tells his story. Traveling in his youth as a grummet on a ship coasting the Plata River Basin, he witnessed the attack and massacre of the boat crew by local Indians. As the only survivor of the slaughter, he is adopted by the natives and lives among them without knowing the real reason for having been saved. From the viewpoint of the narrator, this novel tacitly promotes a discussion about the Hispanic conquest of the Americas that poetically builds his vision of the past without regard for historical precision. Nevertheless, while the historicity of the text becomes evident through the interlinea231 6/11/2007 14:26:47 Gragoatá Danilo Luiz Carlos Mical tions, its intrinsic poetry is the source of poetic prose, or poetic narrative, leading us to see traces of literary hybridism. Keywords: Saer; El Entenado; Cannibalism; Identity; Otherness. Referências ALBORNOZ, María Victoria. Canibales a la carta; mecanismos de incorporacion y digestion del “otro” en O enteado, de Juan Jose Saer. CHASQUI: Revista de Literatura Latinoamericana, [S.l.], v. 32, n. 1, mayo 2003. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira; com revisão de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ______. 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Consciente do irreversível das mudanças pelas quais passavam as sociedades andinas, o cronista índio decide formular por escrito o que conhece ‘de oídas’, o que recolhe à maneira de um ‘etnógrafo’, o que lê nas crônicas espanholas e o seu próprio testemunho sobre os acontecimentos e seus antecedentes históricos. O texto escrito está acompanhado de desenhos que o ilustram, o que dá um caráter iconográfico especial ao documento. Palavras-chave: Crônicas da conquista; Iconografia da conquista; Literatura do Peru. Gragoatá Gragoata 22.indb 235 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:47 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio Em 1615, um índio peruano que assina Felipe Guamán Poma de Ayala escreve uma carta ao monarca espanhol, Felipe III, dando conta do envio de um manuscrito de 1200 páginas, entre as quais 398 desenhos. Não há notícias de que o rei espanhol recebera o documento, mas se sabe que a carta chegou ao Arquivo de Simancas, como parte de toda a documentação administrativa que foi transferida ao Archivo de Indias de Sevilha no século XVIII. O manuscrito teve um outro destino, atualmente se encontra na Biblioteca Real de Dinamarca, possivelmente adquirido pela Coroa Dinamarquesa devido ao interesse das monarquias protestantes na documentação da Inquisição espanhola dos séculos XVI e XVII. Descoberto, em 1908, pelo bibliotecário alemão Richard Pietschmann, o manuscrito foi apresentado pela primeira vez no Congresso de Americanistas. A Nueva Crônica y buen gobierno do peruano Felipe Guamán Poma de Ayala constitui um dos documentos mais significativos sobre a conquista espanhola, escrito por um índio e, ao mesmo tempo, um esforço em registrar dados e versões destinados a construir a memória não só desse momento histórico, mas de um passado étnico ao que a introdução da escrita apresenta riscos. Na carta dirigida ao monarca espanhol apresentando a Crônica, o autor se refere a esta tarefa assim: [...] Muchas veces dudé,... azeptar esta dicha inpresa y muchas veces más me quis volver atrás jusgando temeraria mi intención, no hallando sujeto en mi facultad para acauarla conforme a la que se debia a unas historias cin escriptura nenguna no más de por los quipus e memorias y rrelaciones de los yndios antiguos de muy biejos y biejas sabios testigo de vista para que dé fé de ellos y me valga por ello [...]. Como produto da sociedade colonial americana nos primeiros momentos - séculos XVI e XVII - Guamán Poma é um índio ladino, isto é, descendente de duas estirpes andinas pertencentes ao Tahuantisuyo — Império Incaico — portanto, falante nativo da língua quéchua — variedade Chinchay — mas também com um relativo domínio do espanhol, fruto do contato educativo com o clero, especialmente dentro do marco da catequese. O fenômeno de ladinização é o resultado dos processos de integração pelos quais passam as lideranças andinas e ele se reflete no bilingüismo quechua- castelhano, especialmente dos “curacas”, ‘autoridade local de mando médio’, que são os intermediários das relações produtivas entre índios del común e agentes da conquista. O cronista constrói a sua legitimidade como interlocutor representante do novo mundo, precisamente pela condição de falante nativo de língua quéchua, competente a ponto de conhecer toda a diversidade lingüística e cultural do mundo andino. 236 Gragoata 22.indb 236 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:47 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma Por outro lado, maneja como segunda língua o espanhol, embora com informações do mundo ocidental fragmentadas, conhece muito bem a máquina burocrática hispânica, o que lhe proporciona elementos críticos constitutivos do texto e lhe dá acesso a formas de oratória para argüir e defender as suas teses. A intenção de registro é evidente no gênero escolhido pelo caráter institucional dessa forma. O gênero crônica, que se consolida desde Alfonso X, confere ao discurso histórico um papel relevante na formação discursiva hispânica. A propósito, a historiografia hispano-americana conta com uma profusão de documentação, pois toda e qualquer expedição, incursão, evento bélico ou não, tem registros descrevendo e narrando uma ou mais versões dos acontecimentos. No entanto, o autor se serve do gênero não só para descrever o mundo incaico antes da chegada dos conquistadores, ou para descrever os acontecimentos da conquista desde o ponto de vista andino. O que Guamán Poma pretende, além de documentar, é debater, argumentando, mas, sobretudo contestando e deslegitimando outras versões, a partir do seu lugar ‘nativo’. Ao mesmo tempo, é consciente que essa é uma das poucas formas em que um índio, como ele, poderia fazê-lo, participando da grande polêmica sobre a natureza humana dos nativos americanos, polêmica que agita os meios intelectuais da Europa humanista na discussão sobre o futuro das sociedades conquistadas em franco processo de desagregação. O autor utiliza estratégias retóricas que conhece da sua experiência no meio eclesiástico hispânico e que são fundamentais para o debate teológico, mas ele aporta elementos de sua própria tradição étnica como o uso das línguas andinas, registrando diversas formas literárias da tradição oral não apenas em quéchua, mas também em aymara, outra língua andina importante. O que constitui novidade em relação a outros documentos do gênero é, porém, o registro iconográfico nos desenhos, que representam o esforço de interculturalidade, no sentido de acionar os traços andinos, mas com glosas, tanto em quéchua quanto em espanhol, com caráter proselitista, seguindo as normas didáticas conciliares. A Nueva Coronica y Buen Gobierno representa uma grande empreitada, considerando que o autor não só escreve numa língua que não é a materna, mas recorre às suas fontes étnicas e à sua tradição de registro, que são provenientes de uma língua e de culturas independentes da escrita. A sociedade colonial andina Como uma forma de resolver os problemas derivados da diversidade lingüística, os conquistadores recrutavam jovens indígenas, geralmente falantes de uma língua geral ou de mais de uma língua ou dialeto de uma família lingüística (bilíngües ou diglóssicos). Submetidos a um processo de imersão, através Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 237 237 6/11/2007 14:26:48 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio de uma longa convivência forçada com as tropas, serviam de intérpretes ou tradutores nas expedições de penetração da empresa colonizadora. O conhecimento das línguas locais oferecia melhores condições para uma das principais tarefas da expedição que consistia em recrutar mão de obra dos diversos grupos étnicos existentes. Este papel serve para desestruturar o sistema, exacerbando os conflitos étnicos já existentes. Os línguas servem como instrumento de comunicação até quando já estava bem avançado o processo de consolidação da conquista. Subsistem na função de intérpretes nos litígios fundiários e no confessionário. Neste último caso, existe abundante documentação da polêmica sobre a falta de sigilo no que se refere ao segredo da confissão, intrínseca à tradução, assim como os problemas de falta de fidelidade, dependendo da competência lingüística do língua, violando as normas dogmáticas da Igreja (SUESS,1992). Uma vez superada a fase de impacto frente à diversidade lingüística, o projeto político hegemônico da conquista entranha a padronização lingüística que está em processo na própria Espanha. No século XVI, a Coroa Espanhola cria uma legislação que segue uma linha dura de castelhanização com os nativos americanos. Em 1550, Carlos I dispõe que os frades ensinem obrigatoriamente o espanhol aos índios dentro das atividades de catequese. Ante uma resistência generalizada por parte do clero e da própria administração colonial, o monarca espanhol revogou, em 1565, a cédula real anterior e exigiu que os missionários aprendessem a língua de cada grupo indígena a seu cargo. Em 1570, Felipe II declara as línguas indígenas veículo de catequese (SOLANO,1991). Uma avaliação correta do quadro lingüístico fará com que a política lingüística desemboque no curso das línguas gerais. Na metade do século XVI, no caso andino, o quéchua chinchay se converte na língua de catequese e de comunicação interna. Aparecem os primeiros estudos sobre as línguas indígenas, de forma que as primeiras gramáticas da língua quéchua datam de 1586 e logo no início do século seguinte é publicada a Gramática da Língua Quéchua de González Holguin [1607] (TORERO, 1968). Esta estratégia de aceitação das línguas e culturas indígenas coincide, paradoxalmente, com uma investida definitiva contra as culturas andinas. No século XVII, se desencadeia um período conhecido como extirpação de idolatrias contra os remanescentes das nacionalidades indígenas acuadas nas regiões de mais difícil acesso. (TAYLOR, 1980). Ali está o refúgio, através das línguas, da religiosidade do mundo andino e, precisamente por isto, a Inquisição entra com seu exército de missionários, padres e agentes bilíngües para, segundo eles, erradicar ‘todo gênero de superstições e costumes idolátricos veiculados nas línguas’, assim como qualquer possibilidade de irradiação das mesmas. Os 238 Gragoata 22.indb 238 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:48 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma bilíngües são por definição do oficio, não só índios ladinos, mas mestiços indo-hispânicos, ou “criollos”, profundos conhecedores da cultura e hábeis falantes de quéchua. Este contexto pode explicar porque Guamán Poma desempenha as funções relacionadas à sua condição lingüística de bilíngüe. Foi língua na juventude, participando no episódio da extirpação de idolatrias e na repressão aos movimentos étnicos conhecidos como taki-onkoy. Foi também intérprete em litígios de terras e em confessionários, a sua língua materna é a variedade Chinchay do quéchua que estava se tornando a língua geral do Império antes da chegada dos colonizadores, mas que ainda continuará seu processo de expansão, duzentos anos após a consolidação da conquista (TORERO, 2002). Desta forma, esta variedade que era a de maior prestígio e de maior extensão territorial é a língua materna do cronista, embora ele domine outras línguas e dialetos quéchuas, além do aymara, língua de grande importância local. Apesar da polêmica em torno à condição de principal, que ele alega, é indiscutível que o cronista teve uma educação formal que lhe deu acesso à escrita. Isto se torna um dado de grande importância porque, neste ponto, o contato de línguas orais e culturas que têm formas de registro diferentes à escrita sofrem um impacto irreversível especialmente nas formas de construir a memória. O Autor A parte espanhola do seu nome, Felipe de Ayala, provém do casamento da mãe com um espanhol depois do seu nascimento, em torno de 1534. Waman Poma, ‘águia’ e ‘tigre’ respectivamente, correspondem à clássica onomástica quéchua. À diferença do ilustre mestiço cusquenho, o Inca Garcilaso de la Vega, também cronista, Guamán Poma é andino pelos dois lados, descendente dos Yarovilca Allauca Huánuco pela linha paterna e da dinastia cusquenha pela materna. Esta filiação é uma das bases da composição do texto na medida em que o autor marca reiteradamente a sua identidade dentro do complexo universo étnico andino. Como em toda sociedade patrilinear, esta forma de parentesco é fundamental para a caracterização étnica responsável pela sua perspectiva histórica. O autor destaca a naturalidade do pai e do avô paterno como “principales” do Chinchay-suyo, um importante reino do Império Incaico que disputa o poder com as estirpes cusquenhas. Também destaca a origem de sua mãe como filha de TúpacYupanqui, décimo Inca, legítimo representante da alta nobreza do Cusco, centro administrativo do poder político imperial. Além destes elementos de identificação étnica, o cronista chama atenção para a inserção familiar nas relações sociais. Como personagens de sua Crônica, o pai e o avô desempenham, Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 239 239 6/11/2007 14:26:48 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio no texto, funções graduadas na administração do Império, como vice-reis do Inca. O pai aparece também como general de exércitos, participando de operações militares na conquista, e o avô, como mártir, queimado vivo por Pizarro. Esta linha sucessória constrói uma identidade ‘social’ e política do autor que converge na autodenominação de ‘príncipe’, ‘cacique principal’, ‘tenente corregedor de índios’ (PRADO, 1991). Embora não haja provas da posição aristocrática reivindicada pelo cronista, o que parece ser o objetivo de Guamán Poma é se apresentar perante a nascente sociedade colonial como herdeiro legítimo de direito, de uma linhagem nobre, interlocutor à altura do rei de Espanha, a quem dirige o documento; nos padrões de uma sociedade monárquica assume o lugar de porta-voz e legítimo representante das nações conquistadas. Nesse sentido, o elemento que compõe a principal legitimidade do testemunho do cronista é a sua identidade lingüística. A sua formação hispânica começa na juventude, não só pelo contato direto com a burocracia colonial, mas especialmente pela educação religiosa a que eram submetidos os jovens índios escolhidos. Este contato intenso e prolongado permite um conhecimento profundo e crítico das diversas Ordens Religiosas. O seu desempenho como ‘língua’ — intérprete — e especialmente como auxiliar do visitador eclesiástico na tarefa inquisitorial de “extirpação de idolatrias” acaba por consolidar esta formação. Guamán Poma ocupa uma posição lingüística privilegiada. O uso do quéchua, que dialoga com um profundo conhecimento do mundo andino, proporciona um tipo de legitimidade ao texto, ausente nas crônicas espanholas, ao introduzir conceitos e etno-categorias andinas, formas literárias da tradição pré-hispânica dentro de uma grande diversidade dialetal e uma multiplicidade de estilos do quéchua; ao lado de uma retórica escolástica dos sermões litúrgicos. O esforço do cronista é também no sentido de criar uma interlocução com o outro, por isso, a organização da informação responde à apresentação de elementos culturais e elementos de argumentação ao leitor hispânico. Por outro lado, com o rigor de um pesquisador, recolhe informações conforme métodos ocidentais, através da documentação espanhola, e paralelamente o faz em fontes indígenas através do testemunho de “los yndios antigos de mui biejos y biejas sabios testigos de vista...” ou nos arquivos da memória imperial guardada nos “quipus”. A intenção de “dar fé de las historias” obriga o cronista ao uso do registro escrito, consciente de que as formas tradicionais da memória nas sociedades orais correm sérios riscos em contato com as sociedades letradas. A tradição de pintores préhispânicos, encarregados dos registros, tem em Guamán Poma uma continuação, seus desenhos seguem esta tradição, embora a função ilustrativa, acompanhando o texto numa linha retóri240 Gragoata 22.indb 240 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:49 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma ca proselitista, faça parte da história do contato e do poder do Santo Ofício. Guamán Poma constrói desta forma a sua autoridade como escritor e historiador, mas, principalmente a sua legitimidade étnica para denunciar e participar do debate político. A Crônica Fig.1-/195[197]/ PRIMERAVECITA GENERAL Fig.2-/361[363]/ CONTADOR MAIOR I TEZORERO TAVANTIN SVIO QVIPOC CVRACA O cronista aporta elementos alternativos ao gênero sedimentado dos cronistas espanhóis, que ele conhece bastante bem. Isso é possível precisamente porque ele incorpora as formas de registro de sua tradição cultural, recuperando assim, elementos e recursos mnemotécnicos andinos, vinculados às características destas sociedades, principalmente a oralidade. O trabalho do autor consiste em recolher dos quipus, de fontes orais e dos desenhos a história remota, em forma de mitos e de narrativas, sobre o período pré-incaico, o império incaico, a conquista, e a época contemporânea a seu tempo. Para cada um há formatos diferentes, mas as conseqüências da extirpação de idolatrias que haviam deixado marcas profundas na consciência coletiva, da qual o autor participou, também fazem parte do texto. Se há uma matriz cultural que define melhor o estilo inca, ela pode ser representada pelo quipus (MACERA, [19--]). A arquitetura e disposição do texto estão marcadas por esta forma de matriz andina. Na primeira parte da Crônica, Guamán Poma faz uma descrição da estrutura da sociedade andina, organizada por idades e gênero, em função de sua capacidade de trabalho, Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 241 241 6/11/2007 14:26:56 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio evocando as fontes de onde retira as informações. Não só organiza seu discurso em blocos calle a calle para descrever cada setor social, os critérios de organização e as suas funções sociais, mas apresenta uma diagramação da página que segue rigorosamente as formas do quipus (Fig. 1). Na edição fac-similar, editada pelo Institut d´Ethnologie de Paris em 1936, não é possível ver a diversidade significativa de cores em cada fileira que o autor reproduz, mimetizando o suporte e a forma material de organização das informações contidas no quipus e, ao mesmo tempo, remetendo, às suas fontes étnicas. Ao longo de todo o texto, e a partir destas fontes, Guamán dá dados numéricos precisos, sobre a organização da rede administrativa andina, fazendo uma projeção estimada de habitantes, de dados de produção, dos ciclos e festas. As sociedades andinas que não conheceram a escrita tiveram outras formas materiais de guardar informação, a principal delas está constituída justamente pelos quipus. Segundo o cronista mestiço o Inca Garcilaso de la Vega, esta forma de registro “ dice el número mas no la letra” (Fig. 2). Trata-se, fundamentalmente, de um registro de contabilidade, instrumento de controle administrativo, cuja estrutura combina cor, tipo de nó, tamanho da corda, distancia entre os nós. Os quipus não só consignam números, mas relações matemáticas complexas. Alguns arqueólogos pensam que ele é o elemento chave do estilo Inca, comparando as suas formas com algumas construções como, por exemplo, as pontes suspensas. Sobre o registro de formas orais, podem se observar pequenas narrativas anedóticas, assim como descrições, em que é possível reconhecer a presença testemunhal na riqueza de detalhes, que guarda com fidelidade a memória coletiva sobre fatos de 80 ou 90 anos antes do nascimento do autor. É o caso da descrição de monumentos arquitetônicos, já destruídos, ou ainda de alguns episódios sobre os primeiros encontros quando o desembarque dos europeus que estão registrados desde a perspectiva andina. O autor explicita um propósito ambicioso de registrar a história étnica, que se estende desde os tempos remotos e míticos pré-incaicos até os inícios da colônia, entretanto, a complexidade discursiva que caracteriza o texto, composto por narrativas e descrições, apresenta evidentes marcas argumentativas. A narrativa, especialmente da história antiga, levanta um questão central quanto à natureza dos índios, que se tornou um ponto polêmico na primeira metade do século XVI. Dados da religiosidade indígena em discursos litúrgicos que o autor apresenta como da tradição oral pré-hispânica: “O señor, adonde estás, en el cielo o en el mundo...”; a voz do próprio autor: “los primeros indios tubo sombra de conocer al criador”, ao longo da narrativa, vão construindo evidências para fundamentar, do 242 Gragoata 22.indb 242 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:56 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma ponto de vista teológico, que esses elementos se enquadram nos parâmetros do cristianismo e são compatíveis com as normas ditadas pelo Santo Ofício. Outro argumento importante nesta direção é a apresentação da cultura material e da organização social que tanta admiração causaram nos observadores europeus. Na descrição e relatos sobre as idades pré-incaicas, o autor seleciona uma série de itens, que caracterizam os avanços técnicos da cultura andina, por exemplo, os tecidos, com especial referência às tintas, um dos grandes motivos de assombro, explicitado em algumas crônicas hispânicas. Desta forma, o cronista aborda a descrição do sistema político e a organização social a partir de suas raízes históricas até a formação do Império da qual mostra algumas edificações. A sua versão sobre a sociedade andina como uma civilização organizada, sustentada por leis e princípios, se opõe às versões de cronistas espanhóis como González de Oviedo ou Herrera que tratam não só as sociedades andinas, mas todas as americanas, como bárbaras e selvagens. Num outro sentido, Guamán Poma representa também uma alternativa ao Inca Garcilaso de la Vega que, como outros cronistas, por exemplo, o soldado espanhol Cieza de Leon, concebem o Cusco como a origem civilizadora do universo andino, transferindo a maneira renascentista que entendia a cultura greco-romana como o princípio organizador e civilizador do universo ocidental, opondo a estrutura política do Império Romano à ‘barbárie’ que o antecede. Os intelectuais da conquista, deslumbrados pela organização e eficiência do Estado Incaico, projetam a divulgação desse clichê. A identidade étnica Chinchay do cronista é responsável pela perspectiva descentralizada que destaca a representação da diversidade étnica do universo andino como característica: “... que todo este reyno salieron de muchas maneras de castas y lenguages de yndios, es por causa de la tierra...”. Esta visão contrasta com uma visão monolítica cusco-céntrica dominante, Guamán Poma, ao apresentar essa diversidade, dá elementos para ponderar a visão parcial da cultura andina. Desta forma, podemos sugerir que a principal estratégia desenvolvida por Guamán Poma é argumentativa; tanto as descrições étnicas quanto as narrativas, e até mesmo os diálogos, estão postulando uma defesa e encaminhando denúncias. Nesse sentido, a parte da obra à qual o autor dá o título de “Consideraciones” está constituída por uma série de premissas que organizam o seu pensamento político e é colocada em contraponto com o senso comum para fundamentar e desenvolver teses em defesa da questão étnica. Esta parte, apesar das dificuldades de manejar uma língua que não é a materna, é desenvolvida em espanhol, utilizando a retórica escolástica que o cronista conhece bem. Neste sentido, os desenhos que compõem a textualidade Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 243 243 6/11/2007 14:26:56 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio da obra desempenham funções ilustrativas, compatíveis com as normas conciliares, no que se refere à elaboração de material de catequese. Assim, eles cumprem com a função demonstrativa, à maneira dos exemplos, que é a de visualizar a descrição, a narrativa, a crítica, a denúncia, permitindo e facilitando a construção de sentidos do público não letrado. Como nos catecismos, a imagem acompanha o texto escrito para ilustrá-lo (LÓPEZBARRALT, 1988). Os Desenhos Um dos principais elementos culturais andinos aportados pelo cronista índio ao gênero é a tradição pictográfica. O cronista apresenta uma relação de continuidade da tradição pré-hispânica dos pintores encarregados do registro através da iconografia. Os desenhos acumulam várias funções no texto, algumas como resultado do contato, adaptando-se às novas condições históricas, entretanto, a formatação do desenho responde a técnicas e modelos andinos, não ocidentais. Na cultura européia dos séculos XVI e XVII, ainda marcada por fortes traços de oralidade, a imagem ocupa um papel predominante na edição de textos literários. O texto verbal guarda relação com uma imagem prévia e Guamán Poma, como índio ladino, provavelmente tem acesso a essa produção. De qualquer forma, pode-se observar ao longo da Crônica e mais especificamente nos desenhos, o impacto da escrita alfabética: os desenhos têm pequenos textos verbais explicativos, à maneira de títulos, glosas e outras anotações em espanhol e em quéchua. Estas formas dialogam com as normas discursivas prescritas nos documentos conciliares, especialmente no que se refere à elaboração de catecismos em Línguas Gerais. A recomendação é de mostrar imagens a um público não letrado e, neste sentido, Guamán Poma se apropria dessas orientações didáticas, propostas pela Contra-reforma (LÓPEZ-BARRALT, 1988). O autor segue os princípios comunicativos das normas estabelecidas no Concilio Limense (1582-1583), que recomendam o uso de imagens na empresa evangelizadora como um eficiente instrumento didático, aproveitando as vantagens da comunicação visual. No caso, o artista se serve delas para as suas reivindicações nativistas e por isso é proselitista, os desenhos ilustram e tentam persuadir. Guamán Poma usa as imagens para introduzir informação não conhecida sobre o mundo andino, mas também estabelece linhas de compatibilidade entre este e o mundo hispânico, por exemplo, na apresentação do calendário indígena, fazendo correspondências com o cristão. Usa os desenhos para ilustrar informações míticas, com o distanciamento exigido pela Inquisição, mas, ao mesmo tempo, para representar a sua versão sobre episódios e narrativas da conquista e ainda usa esse recurso para denunciar os diversos tipos de abuso. 244 Gragoata 22.indb 244 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:26:57 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma A Questão Étnica O texto do cronista pretende dar uma ordem ao universo colonial, que se apresenta caótico em comparação à ordem evocada pelo autor na parte descritiva das sociedades andinas pré-incaicas e pré-hispânicas. Nesse sentido, as relações interétnicas que aparecem como uns dos lugares de conflito de maior visibilidade ocupam um espaço especial nas alegações do autor para a sua proposta política e estão registradas em grande parte dos desenhos, como um tópico referencial do período colonial. O léxico para categorizar essas relações inter-étnicas, que já circulam em outros textos do século XVII, aparecem na obra. Termos como criollo e mestizo são categorias nativas para designar os cidadãos não índios, nascidos no continente americano, para diferenciá-los dos espanhóis nascidos na Península, mas radicados na América, que por sua vez recebem nomes como gachupin no México e chapetón no Peru, principais assentos coloniais hispânicos. Entretanto, o cronista adota um tom moralista para apresentar essas categorias, representando nos desenhos as práticas cotidianas dessas relações inter-étnicas no marco de um topos que pode ser considerado uma forma de protesto social. O quadro taxonômico que organiza esse novo universo está atravessado pela retórica medieval que contrapõe vícios a virtudes, dando sentido à nova ordem na Colônia. Na iconografia apresentada pelo autor, há uma categorização na qual não só interpreta os eventos históricos da Conquista, mas especificamente, julga os processos e resultados desses fatos. A denúncia da violência é o fio condutor que dá inteligibilidade aos desenhos. Os Pecados Capitais Embora sem citar, a proposta política central do cronista dialoga com um dos mais brilhantes defensores das populações indígenas americanas, Bartolomeu de Las Casas, cujas obras, na época, estavam proibidas de circular. O ilustre dominicano sugeria a criação de nações espanhola, indígena e africana com territórios e organizações políticas separados, justamente por uma avaliação negativa das relações inter-étnicas nos primeiros anos de contato. Isto pela evidente desagregação das nações indígenas e degradação dos grupos africanos em função das desigualdades que marcam essas relações. No texto de Guamán Poma, esta proposta constitui um dos principais pressupostos, a partir do qual o autor vai construir uma das estratégias argumentativas para formular a sua postura crítica. Nesse sentido, a mestiçagem, a mais visível evidência, é um dos objetos de maior recriminação do autor e serve para ilustrar as conseqüências danosas do contato, através do exemplo que se materializa no desenho. Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 245 245 6/11/2007 14:26:57 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio Fig.3 – /594[608]/PADRES / MVI BRABO I COLÉRICO padre contra los caciques prencipales I contra sus yndios Fig. 4/ 538[552] – ESPAÑOLES/ SOBERBIOSO CRIOLLO o mestizo o mulato deste reyno Assim, o desenho da p. 594 (Fig.3) traz no título a associação de bravo e colérico assinalando a violência na relação entre 246 Gragoata 22.indb 246 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:27:12 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma um espanhol e um índio, que é espancado e humilhado, como pode ser visto pela posição que ocupa cada um no espaço, e que representa o pecado da ira. No desenho da p.538 (Fig.4), o título contém a soberbia como tópico das cenas violentas; constitui uma refutação ao senso comum que admite na soberba uma ideologia de superioridade necessária para explicar a colonização. O autor tenta argumentar que aqueles que se consideram superiores estão em pecado, assim como os descendentes, os mestiços, fruto do contato, conforme reza o tópico no desenho da p.540 (Fig.5). Fig. 5 – /540[554] ESPAÑOLES/ SOBERBIOSA CRIOLLA o mestiza o mulata deste reyno A avareza é outro pecado denunciado no contexto das relações inter-étnicas, que guarda uma contigüidade com a cobiça, que é recorrente no texto, vinculada à acumulação de riqueza (Fig.6), mas ao mesmo tempo, há uma representação sistemática da conduta dos funcionários da administração colonial despojando das posses aos índios, às vezes mínimas, como no caso da p. 790 (Fig.7). Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 247 247 6/11/2007 14:27:20 Fig 6 - /521[525]/ESCRIVANO/ESCRIVANO DE CABILDO o rreal nombrado o rrezeptor deste rreyno/ “Paga”... Fig. 7- /790[804]/PRINCIPALES/QUE LLEVA DE PRESENTES el cacique principal al dicho corregidor y no le agradese en este rreyno... Gragoata 22.indb 248 6/11/2007 14:27:28 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma A gula também faz parte do elenco pictográfico, embora sem topicalizar. No quadro da p. 505 (Fig.8), a crítica está mais na promiscuidade que no banquete, isto é, ao fato de sentar à mesa juntos os diversos segmentos, assinalado no texto. Fig. 8 - /505[509]/CORREGIMIENTO/ QUE EL CORREGIDOR CONBIDA en su mesa a comer gente vaja, yndio mytayo, a mestizo, mulato... Mas o tom moralista do cronista se exacerba quando se refere à luxúria, que extrapola os desenhos, atravessando todo o texto. A maior visibilidade do contato inter-étnico está nos mestiços que o autor recrimina, não só pela origem, a violação das mulheres índias (Fig.9), mas por considerá-los inimigos dos índios: los mestizos son mas peores para con sus tios y tias madres ermanos ermanas... (GP p. 539). Neste tópico, o discurso anticlerical do cronista chega ao ponto mais crítico, apresentando a produção em série de mesticillos, fruto do abuso do poder do clero e a violência contra as mulheres índias (Fig.10). Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 249 249 6/11/2007 14:27:50 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio Fig.9 /503[507]/CORREGIMIENTO/ EL CORREGIDOR I PADRE TINIENTE anda rrondando y mirando la güergüenza de las mujeres/ probincias/ Fig.10. /606[620]/PADRES/HIJO DELOS PADRES DOTRINANTES mesticillos y mesticillas/ Lo lleva un harriero español alquilado a la ciudad de los Reys de Lima... 250 Gragoata 22.indb 250 Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:03 Textualidade, imagem e mestiçagem na crônica de Guamán Poma Considerações Finais A crônica de Guamán Poma apresenta uma situação enunciativa complexa. O lugar de onde fala e a sua interlocução estão construídos numa língua e num registro recém adquiridos. Entretanto, as línguas que ele aciona em seu discurso, especialmente as ameríndias, lhe conferem o status de um porta-voz dos povos andinos com o argumento da identidade. A modalidade do espanhol em que escreve reflete os processos de interculturalidade das populações andinas, resultado não só das línguas em contato, mas das funções sociais que irão desempenhar nessa nova ordem. Por outro lado, a condição de testemunha dos eventos históricos relatados pelo autor, legitima a ‘autenticidade’ do seu texto. Na narrativa, recorre à tradição oral, à iconografia, à documentação, inclusive a andina. Na argumentação, o autor transpõe os recursos retóricos da escolástica, da prédica religiosa na sua condição de cristão novo, para elaborar um discurso político. Mas é nos desenhos que o autor constrói a sua eficácia comunicativa, ilustrando as denúncias e ativando a persuasão para a defesa das suas reivindicações étnicas. Abstract Felipe Guaman Poma de Ayala (1526?-1615) is the Andean author of Nueva Crônica e buen gobierno, a text that reproduces, among other things, the critical process of identity from historical events of the Americas beginning in the 16th century. The chronicle involves an interdiscourse between the oral tradition of the maternal language and literality in a second language, but has recourse to the Andean iconographical tradition as part of the conflicts of this identity. Quite aware of the irreversibility of the changes that Andean societies have undergone, the Indian chronicler decided to write what he knew ‘de oidas,’ in the manner of an ethnographer, compiling what he read in the Spanish chronicles and recording his own witnessing of the events and their historical antecedents. The written text is accompanied by drawings that illustrate what gives a special iconographic character to the document. Keywords: the Conquest’s chronicles; The Conquest’s iconography; Peru’s literature. Niterói, n. 22, p. 235-252, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 251 251 6/11/2007 14:28:03 Gragoatá Consuelo Alfaro Lagorio Referências LÓPEZ -BARRALT, Mercedes. Icono y conquista: Gumán Poma de Ayala. Madrid: Hiparión, 1988. ______. Guamán Poma autor y artista. Lima: Fondo Editorial da Pontificia Universidad Católica del Perú, 1993. MACERA, Pablo. Historia del Perú y del mundo. Lima: Ed. Bruño, [19--]. POMA DE AYALA, Felipe. Nueva crónica y buen gobierno. Paris: Institut D´Ethnologie, 1936. ______. ______. Madrid: Historia 16, 1987. PRADO, Elias; PRADO, Alfredo. Phelipe Guamán Poma de Aiala y no hay remedio. Lima: Centro de Investigación y Promoción Amazónica, 1991. SOLANO, Francisco. Documentos sobre Política Lingüística en Hispanoamérica – 1492- 1800. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1991. SUESS, Paulo (Coord.). A conquista espiritual da América Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992. 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Como resultado preliminar, observamos que houve algumas diferenças no uso de desculpas nas comunidades hispânicas ou brasileiras quanto 1) a suas formulações e 2) aos tipos de ofensas que são objeto de desculpas. Em suas formulações diretas, as desculpas estão necessariamente relacionadas aos diferentes sistemas de tratamento verbo-pronominais no que se refere às formas de tratamento: ustedeo, tuteo, voseo, no espanhol, neutralização tu/você, em português, e às correspondentes relações interpessoais em cada contexto sócio-cultural. Palavras-chave: Atos de discurso; Desculpas; Cortesia; Formas de tratamento. Gragoatá Gragoata 22.indb 253 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:04 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto 1 Introducción En varias lenguas y culturas los “saludos”, los “agradecimientos” y las “disculpas” son los tres principales actos rituales de la interacción conversacional. Son enunciados cuyas formulaciones y condiciones de empleo están muy estereotipadas, pues tienen una función básicamente relacional, con poco o ningún contenido proposicional. Para Kerbrat-Orecchioni (2005, p. 110144), los agradecimientos y las disculpas presentan analogías evidentes en su ritual de realización (a) por prestarse a innúmeras formulaciones directas e indirectas, (b) por constituirse como actos de discurso a partir de un intercambio ternario, (c) por suscitar una reacción y (d) por tener la función común de restablecer el equilibrio ritual de la interacción. De hecho, estos dos actos rituales son fundamentales para satisfacer las exigencias de imagen de los participantes y para mantener una relativa armonía entre los interactantes. El agradecimiento es un acto determinado por un acto previo que redunda en beneficio del hablante: las fórmulas de agradecimiento compensan simbólicamente el coste invertido por el oyente en beneficio del hablante. Ya en la disculpa se da a conocer que se ha violado una norma social sintiéndose el hablante al menos parcialmente responsable de dicha violación (HAVERKATE, 1994, p. 93, 97). La observación de situaciones en las que se reconoce verbalmente que hubo un “regalo” o una “ofensa”, su importancia y frecuencia en los intercambios cotidianos, nos permiten analizar situaciones particularmente representativas del funcionamiento de la cortesía en diferentes comunidades socioculturales. Este trabajo pretende ser un estudio preliminar a partir del cual se nos permita organizar un repertorio inicial de temas y problemas para posterior sistematización. A partir de las definiciones y categorías propuestas por Kerbrat-Orecchioni (2005, 2006), queremos saber, antes de todo, cómo se realizan lingüísticamente los actos de disculpas, en qué contexto y para qué se utilizan en distintos centros urbanos de Ibero América. En otra oportunidad analizaremos y discutiremos los actos de agradecimientos, ya que estos dos actos del discurso presentan muchísimos paralelismos y complementariedad de funciones. Trabajamos con una muestra de nueve películas contemporáneas ambientadas en ocho diferentes centros urbanos: Fresa y chocolate (Cuba, 1993), Carne Trémula (España, 1997), Amores Perros (México, 2000), Tinta Roja (Perú, 2000), Taxi para tres (Chile, 2001), Amores Possíveis (Brasil, 2001), El hijo de la novia (Argentina, 2001), Cidade de Deus (Brasil, 2003), María llena eres de gracia (Colombia, 2004). En cada drama cinematográfico controlamos la formulación utilizada y su respectivo acompañamiento mímico, la “ofensa”, el lugar de interacción, la relación social entre los 254 Gragoata 22.indb 254 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:04 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano personajes bien como el tipo de interacción. Los resultados son cuantitativamente desiguales, sin embargo, a partir de factores de variación, verbales y no verbales, podemos reconocer diferencias de funcionamiento válidas como primer acercamiento al tema. Nuestra propuesta es: (a) repertoriar el conjunto de fórmulas rituales, fosilizadas o no, que permiten expresar las disculpas en diversas comunidades iberoamericanas y (b) comparar la naturaleza de las ofensas en las diferentes comunidades iberoamericana. Esta comparación inicial nos permitirá, oportunamente, establecer un cuadro de variación a fin de detectar diferencias en el funcionamiento del sistema de cortesía en comunidades socioculturales brasileñas frente a otras comunidades iberoamericanas. 2 Las disculpas en los guiones hispánicos y brasileños 2.1 El repertorio de fórmulas y estructuras por localidad En los siete guiones hispánicos observamos 74 pedidos de disculpas. Se trata de formulaciones directas o indirectas. De los 74 pedidos de disculpas identificados, 80% (59 casos) son formulaciones directas (que se constituyen en la muestra a partir de formas verbales imperativas, elípticas o performativas). Predominan las estructuras con verbos en Imperativo, 64% de las ocurrencias (37 casos), seguidas de las Fórmulas Elípticas, 32 % (19 casos), como se puede constatar en la Tabla 1a. Tabla 1a: Disculpas en los guiones hispánicos: total de fórmulas lingüísticas directas Comparativamente, la Formulación Imperativa directa es la más frecuente en toda la muestra, sin embargo hay varia ción respecto a la selección del verbo en Imperativo: ¿perdonar o disculpar? Como se ve en la Tabla 1b, el guión español y el mexicano presentan un comportamiento similar respecto a la selección del verbo, en ambos sólo se usa el imperativo con perdonar. En los guiones cubano, peruano, argentino y colombiano hay variación entre las dos formas, pero predomina, excepto en el guión colombiano, perdonar sobre disculpar. Ya en el guión chileno sólo se usa el imperativo con disculpar. Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 255 255 6/11/2007 14:28:05 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto Tabla 1b: Disculpas en los guiones hispánicos: las fórmulas lingüísticas directas La segunda forma más frecuente es la forma elíptica perdón, que aparece prácticamente en todos los guiones como una estrategia fosilizada para situaciones de cortesía más convencionales, y repara mayoritariamente faltas conversacionales como interrupción de intercambio, primer perdón del Ejemplo 1, o gaffes verbales (lo dicho) y no verbales (una risa, una mirada inapropiada), segundo perdón del Ejemplo 1: (1) Rafael – Sciacalli: “Sciacalli...Perdón. Mi ex mujer. Qué bárbaro sería ser viudo, ¿no?” Sciacalli – Rafael: “Yo soy viudo.” Rafael – Sciacalli: “Uy, Perdón.” (El hijo de la novia, Argentina, 2001: 13) Cuanto a las 15 realizaciones indirectas o implícitas (que se constituyen en la muestra a partir de enunciados descriptivos, interrogativos o interrogativos elípticos), los pedidos de disculpas indirectos descriptivos son los más productivos, con un 67% (11 casos). Predomina en este contexto la fórmula ritual fosilizada “lo siento” (05 casos), como se ve en la Tabla 2. 256 Gragoata 22.indb 256 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:08 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano Tabla 2: Disculpas en los guiones hispánicos: las fórmulas lingüísticas indirectas En el guión español la fórmula lo siento parece tener contextos y frecuencia de uso diferentes a lo que observamos en los demás guiones en español. (2) Elena – Víctor: “Desde que has salido de la cárcel te veo por todos lados...” Víctor – Elena: “Lo siento, pero vivimos en la misma ciudad.” (Carne Trémula, España – Almodóvar, 1997, p. 148) Se trata de una variante coloquial de las formas imperativas del verbo perdonar y es incluso más frecuente que perdón en la película que analizamos. La alta frecuencia de uso de esta forma en la norma castellana explicaría variaciones coloquiales como se siente, dicho en tono de broma alargando la vocal final, bastante frecuente en conversaciones familiares. Ya en los guiones mexicano y colombiano, lo siento se limita a fórmula de cortesía convencional frente a la tarea de transmitir malas noticias: (3) Nacho (médico) – Daniel: “Se presentó un cuadro de gangrena avanzada y tuve que amputarle la pierna. Lo siento, Daniel.” (Amores Perros, México – GONZÁLEZ, 2000, p. 40) Respecto a las formulaciones indirectas, en ¿me perdonas? la interrogación intensifica el pedido de disculpas ya formulado: (4) Faundez – Rosana: “Hola amor. Sí, perdona, ... yo sé que debí avisarte, pero estuve muy mal, todo el día en cama sin poder moverme... el hígado otra vez, sí ¿me perdonas?” (Tinta Roja, Perú – LOMBARDI, 2000, p.70) Sin embargo, en ¿perdón? la interrogación y la forma elíptica fosilizan una expresión de desacuerdo en forma de unidad discursiva diferente a la simple forma elíptica perdón, se trata de Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 257 257 6/11/2007 14:28:17 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto un marcador conversacional cuya función pragmática es una petición indirecta de repetición y de desacuerdo por algo dicho: (5) Faundez – Alfonso: “ ¿Y tú? ¿Desde cuándo que no remojas la guasamandrapa?” Alfonso – Faundez: “¿Perdón?” (Tinta Roja, Perú – LOMBARDI, 2000, p. 36) La Tabla 3 ilustra la distribución general de las 24 fórmulas de disculpas encontradas en los guiones brasileños, frente a las 74 de los guiones hispánicos. En los guiones brasileños también predominan las formas directas Imperativas (88%) pero con importantes variaciones sociales en la morfología verbal. Brasil (A) es el Brasil de Amores Possíveis, clase media alta de la zona sur de Río, mientras que Brasil (B) es el Brasil de Cidade de Deus, clase media baja, cuya circulación es bastante más limitada al universo de la favela y del tráfico de drogas. Con menos escolaridad, este Brasil (B) tiene un acceso a la cultura letrada más restricto, desempeña roles sociales más marginados y tiene sus ingresos económicos bastante limitados al narcotráfico. Estas diferencias de distribución social repercuten en la selección de formas lingüísticas, incluso en actos tan ritualizados como los agradecimientos y disculpas. Tabla 3: Disculpas en los guiones brasileños - las estrategias lingüísticas En los dos guiones en portugués, la forma verbal predominante es desculpar. Y la forma más frecuente o menos marcada, desculpa, parece estar en franco proceso de lexicalización o discursivización, considerando que sólo guarda resquicios de flexión verbal en situaciones menos coloquiales en Brasil (A). En Brasil (B) la flexión verbal no aparece en nuestros datos, ni para marcar distancia interpersonal ni para marcar plural. En Brasil (A) la forma Imperativa del verbo desculpar no marcada, desculpa, alterna en registros menos coloquiales con las formas desculpe/me desculpe, en singular, o desculpem, en plural. 258 Gragoata 22.indb 258 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:22 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano (6) Julia – Carlos e Sonia: “Desculpem o atraso.” (Amores Possíveis, Brasil – HALM, 2001, p. 98) (7) Garçom – Julia: “Desculpe, senhora, mas aqui é área reservada para não-fumantes.” Julia – Garçom: “Mas o senhor não está entendendo... O senhor é que me desculpe. Mas está vendo essa coisa linda aqui, essa gracinha? Eu sou louca por ele, sou apaixonada por ele e tudo isso foi arrumado para a mãe dele me conhecer. Ela tem que me aceitar. Tem que me aprovar.” Garçom – Julia: “A senhora me desculpe, mas vou ter que chamar o maître.” (Amores Possíveis, Brasil– HALM, 2001, p. 99) Las formas flexionadas y el clítico aumentan la distancia interpersonal entre camarero/cliente en el Ejemplo 6, o en el primer encuentro entre nuera/suegra, en el Ejemplo 7. La forma foi mal, al contrario, se observa entre la generación más joven en situación más coloquial e igualitaria y marca menos distancia interpersonal. (8) Julia – Carlos: “Foi mal, Carlos, isso nunca tinha me acontecido antes... Você foi a primeira pessoa que deixou que eu a algemasse na cama” (Amores Possíveis, Brasil– HALM, 2001, p. 81) Esa gradación de distancia interpersonal a partir de desculpa, la forma no marcada, en Brasil (A): [me desculpe→desculpe→desculpa→foi mal] se da en Brasil (B) exclusivamente entre [desculpa→desculpa aí], o sea, se marca apenas la aproximación coloquial con desculpa aí, sin que aparezca ningún caso de distanciamiento con desculpe o con los clíticos me desculpe/ me desculpa. En Brasil (B) la forma Imperativa del verbo desculpar no marcada y más frecuente, también es desculpa, que en este contexto sociocultural alterna en registros más coloquiales con desculpa aí (variante del desculpa lá de Lisboa?). Las formas marcadas acortan la distancia interpersonal, reafirmando los lazos de afiliación, como en este saludo inicial del narrador al público cuando empieza a contar su historia en la película: (9) Busca-Pé (V.O.): “Desculpa aí. Esqueci de me apresentar.” (Cidade de Deus, Brasil - MEIRELLES; MANTOVANI, 2003, p. 21) La forma desculpa aí corresponde en este caso a una variante más coloquial de desculpem, sin flexión verbal de plural, y que sería más normativa para una interlocución al público. En los Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 259 259 6/11/2007 14:28:23 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto dos guiones brasileños la fórmula desculpa puede estar a medio camino de fosilización y configurarse como una estrategia elíptica de las formas verbales imperativas desculpa-me, desculpe-me, o quizás del enunciado preformativo eu te peço desculpas. El verbo perdoar sólo aparece en la fórmula me perdoa? y como en los guiones en español, Ejemplo 4, ocurre en relaciones de pareja. En el Ejemplo 10, el que se fue pide que se le acepte de vuelta, se trata de una ofensa relacional, haber abandonado al otro: (10) Carlos 2 – Pedro 2: “Eu amo você, Pedro. Me perdoa?” Pedro 2 – Carlos 2: “Tá bom. É muito chato jogar sozinho mesmo.” (Amores Possíveis, Brasil– HALM, 2001, p. 129) Las formas más largas, con clíticos, me perdoa, me perdoe, también aumentan la solemnidad del pedido de disculpas en el portugués de Brasil que tiende, al contrario del español, a marcar como vacía la categoría del objeto y a reducir el sistema de clíticos en el lenguaje coloquial. Además, en portugués, la fusión de paradigmas entre las formas de tratamiento você y tu hizo que la forma en Imperativo prevalezca con desculpa. Las demás variaciones matizan tanto el acercamiento social (desculpa aí, foi mal) como la tomada de distancia (desculpe, desculpem) una vez que las flexiones personales se han ido perdiendo con la reducción de morfología verbal para marcar diferencias de tratamiento y de registros más o menos coloquiales. 2.2 Tipos de ofensas en guiones hispánicos y brasileños Según Kerbrat-Orecchioni (2005, p.140), el pedido de disculpas es un acto reparador del discurso. El locutor lo utiliza para obtener de su destinatario algún tipo de perdón por una ofensa, que supone haber cometido o que realmente cometió. La ofensa sería el acontecimiento previo que desencadena el ritual del pedido de disculpas: FTA (ofensa del Locutor) + FFA (disculpas del Locutor) = Reequilibrio de la relación. La ofensa, las disculpas y una posible reacción, constituyen los tres elementos constitutivos del ritual de disculpas.1 En el análisis de los guiones establecimos básicamente tres niveles de ofensas que desencadenaron actos reparadores de disculpas. La Tabla 4 contrasta la frecuencia de ofensas que han sido motivos de disculpas en los guiones analizados en español y en portugués: 260 Gragoata 22.indb 260 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:23 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano Tabla 4: Tipos de ofensas en español y en portugués Las ofensas conversacionales fueron las que han provocado un mayor número de disculpas en español (57%) y en portugués (41%). Consideramos ocho tipos de ofensas conversacionales: (a) identificación, (b) inicio de intercambio, (c) interrupción de intercambio (d) interrupción de turno de habla, (e) manera de hablar, (f) desacuerdo, (g) malas noticias, (h) rechazo de ofrecimiento e (i) gaffes o inadecuaciones verbales y no verbales. En español, las ofensas conversacionales más reparadas por pedidos de disculpas han sido las relacionadas con identificación 24% (10 casos), manera de hablar 19% (8 casos) y desacuerdo 19% (8 casos): • identificación: del destinatario al comienzo del intercambio (11) Carla – María: “Perdón. ¿Cómo se llama ot ra vez?” María – Carla: “María Álvarez.” (María llena eres de gracia, Colombia, 2004, p. 19) • manera de hablar: insultos, gritos (12) Daniel – Valeria: “Pues bueno ¿qué chingados quieres? Perdona. Perdona. Vas a ver que todo va a salir bien” (Amores Perros, México – GONZÁLEZ, 2000, p. 37) • desacuerdo (13) Juanqui – Ortega: “Bueno...a... es decir... ser lo más objetivo posible, verificar las fuentes, comprobar los datos” “Ortega mira a Juanqui como si éste fuera un retrasado mental.” Ortega – Juanqui: “¿Perdón? ¿Usted lleva trabajando más de dos meses en El Clamor? (Sonríe despectivo) A ver, dígame, ¿entretener o informar?” (Tinta Roja, Perú – LOMBARDI, 2000, p. 75) Los problemas de identificación al inicio del intercambio se oponen por su posición inicial en la interacción a las interrupciones de intercambio, que al final de la interacción fueron objeto Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 261 261 6/11/2007 14:28:24 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto de disculpas en 7% de las ocurrencias en español (3 casos) y en 10% de las ocurrencias en portugués (1 caso). Sin embargo, las disculpas por interrupción de turno de habla o para iniciar intercambio, que fueron objeto de disculpas en 5% de las ocurrencias en español (2 casos cada una), no fueron objeto de disculpas en portugués lo que podría señalar una diferencia de comportamiento conversacional que valdría la pena analizar y discutir posteriormente con otro tipo de datos o con testes de hábitos sociales (HERNÁNDEZ FLORES, 2003). Otra práctica conversacional que merecería la pena analizar posteriormente es el papel del desacuerdo y de los insultos al interlocutor, ambos objeto de disculpas en español, y que se verifican con poca o ninguna frecuencia en los guiones en portugués. Las disculpas por la manera de hablar de los hombres en español, que gritan o insultan, llegan a un 19% (8 casos) de los datos, mientras que en portugués son apenas un 10% (1 caso), y el desacuerdo tanto en relaciones personales como transaccionales, tratado con o sin humor, llega a un 19% en español (8 casos) frente a un 10% en portugués (1 caso irremediable en el que el camarero no tiene otra opción sino la del desacuerdo). En portugués, las ofensas conversacionales más reparadas por pedidos de disculpas han sido las relacionadas con desacuerdos 30% (3 casos), identificación 20% (2 casos) y rechazo de ofrecimiento 20% (2 casos). Los tres casos de desacuerdo forman parte de la misma interacción transaccional, están en la misma secuencia conversacional y se refieren a una misma acción: fumar en área de no fumadores. El desacuerdo entre camarero y cliente recubre peticiones indirectas: dejar de fumar o seguir fumando, como se vio en el Ejemplo 7. Asimismo, el rechazo de un ofrecimiento con disculpas corresponde a un 20% en portugués (2 casos) frente a un 2% en español (1 caso). O sea, en portugués se rechazan los ofrecimientos mayoritariamente con disculpas mientras que en español con agradecimientos (13 casos). • rechazo de ofrecimiento en español (14) Juan Carlos – Rafael: “¿Querés un maní?” Rafael – Juan Carlos: “No, no, gracias. Ya tengo.” (El hijo de la novia, Argentina – CAMPANELLA, 2001, p.158) El único caso con disculpas para rechazar ofrecimiento en español, frente a los 13 casos con agradecimientos, se da en una situación bastante tensa de interrogatorio, en el guión chileno, entre policía y sospechoso, en una relación jerárquica de inferior para superior. Y el único caso con agradecimiento 262 Gragoata 22.indb 262 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:24 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano para rechazar ofrecimiento en portugués, frente a los casos con disculpas se da también en un situación tensa, cuando uno de los principales traficantes invita a una chica a bailar en un baile funk en la citadela. • rechazo de ofrecimiento en portugués (15) Zé Pequeno – Jovem: “Você quer dançar comigo?” Jovem – Zé Pequeno: “Ah não, obrigada. Eu tô acompanhada.” (Cidade de Deus, Brasil - MEIRELLES; MANTOVANI, 2003, p.134) En ambos casos el agradecimiento en rechazos acompaña invariablemente una negación atenuada (repetición no, no o marcador discursivo ah não) y una justificativa (ya tengo o eu tô acompanhada). Sin embargo, en los guiones en portugués se prefiere rechazar ofrecimientos con disculpas (2 casos en portugués y 1 caso en español). Para Nieves Hernández Flores (2001) el ofrecimiento en España no es una amenaza a la imagen negativa y su rechazo no es una amenaza a la imagen negativa, sin embargo en portugués de Brasil, rechazar ofrecimientos, desacuerdos y humor sarcástico o irónico sí parecen amenazar la imagen positiva. Las disculpas conversacionales, por gaffes verbales o no, son también más frecuentes en los guiones en español 14% (6 casos) que en los guiones en portugués 10% (1 caso). Como se ve en la Tabla 4, en los guiones en español la frecuencia de disculpas en ofensas conversacionales (57%) es bastante más alta que en los demás tipos de ofensas (territoriales y relacionales), mientras que en los dos guiones brasileños, las disculpas conversacionales (41%) son prácticamente tan frecuentes como las disculpas por ofensas territoriales (38%), sobretodo las que están relacionadas a lo físico. Separamos las ofensas territoriales, según el tipo de atropello al territorio espacial, temporal o físico del otro y verificamos que en portugués las disculpas se concentran en el territorio más concreto o más material. Registramos 18 ofensas territoriales en español y 9 en portugués. El 78% de las disculpas por ofensas territoriales que registramos en portugués (7 casos) se refieren a apenas tres actos concretos, uno haberle tirado la bicicleta al piso a un traficante, otro haberle estropeado la pared del bar a un comerciante con el coche en Brasil (B) y el tercero haber esposado al amante a la cama y no conseguir luego abrir las esposas, en Brasil (A). Se trata de ofensas más materiales comparadas al 56% de disculpas físicas en español (10 casos) que se refieren a ofensas verbales (por molestar con ruido o con un cumplido no deseado sobre el aspecto físico del interlocutor) o a ofensas no Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 263 263 6/11/2007 14:28:25 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto verbales como: (a) tomarle un objeto a alguien (foto, comida), aunque también observamos ofensas por (b) lastimar a alguien (golpearlo, quemarlo) o (c) hacerle pedidos referente al físico (hacerle donar sangre o pedirle que tenga relaciones sexuales con alguien). Las ofensas como “quemar a alguien” o “pedirle que tenga relaciones sexuales” ponen en riesgo la relación de amistad y son objeto de dos pedidos de disculpas consecutivos en el mismo intercambio. El 33% de las ofensas territoriales en español (6 casos) se refieren a una invasión de espacio físico, al entrar en el territorio del otro (casa, dormitorio, despacho), pero son apenas el 6% en portugués (1 caso). • territorio espacial en español (16) Sandra – Rafael: “No avisaste que subías.” Rafael – Sandra: “Ah, Perdón” (El hijo de la novia, Argentina – CAMPANELLA, 2001, p. 90) • territorio espacial en portugués (17) Carlos – Julia: “Desculpa vir sem avisar... é que eu precisava ver o Lucas…” (Amores Possíveis, Brasil – HALM, 2001, p. 67) Se trata del mismo contexto, el ex-marido que llega sin avisar para dejar o venir a ver el hijo que vive con la madre, sin embargo, la disculpa en el guión argentino es reactiva, provocada por una crítica de la mujer, mientras que en el guión brasileño, es un acto iniciativo, más conciliador, por parte del hombre. Las disculpas en el guión argentino están atenuadas por la interjección ah, y por el tono que marca un pedido más convencional de alguien que no está muy convencido de la ofensa, algo que en portugués correspondería a un tá bom, desculpa o sino a un então, desculpa. Las ofensas relativas al territorio temporal (llegar tarde) también son algo más importantes en español 11% (2 casos) que en portugués 6% (apenas 1 caso). En portugués el pedido de disculpas parece más relacionado a ofensas más materiales y a situaciones en las que corre riesgo la continuidad de la relación social. El tercer tipo de ofensa es el que consideramos como ofensa relacional, sea personal o transaccional. Este tipo de ofensa está basado en algún tipo de incumplimiento de expectativas en las relaciones interpersonales o transaccionales. Registramos 14 ofensas relacionales en español y 5 en portugués. En las relaciones personales se considera en estos casos que se ha fallado como pareja como amigo, como padre o hijo. Y en las relaciones 264 Gragoata 22.indb 264 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:25 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano transaccionales, se considera que se ha fallado en su rol social como ciudadano o como vendedor. La mayoría de las ofensas relacionales que observamos en los guiones pertenecen a la esfera de las relaciones interpersonales: 86% (12 casos) en español y 80% (4 casos) en portugués. • parejas (18) Carlos – Julia: “Me desculpa...” Julia – Carlos: “Te desculpar? Eu quero que você morra!” (Amores Possíveis, Brasil - HALM , 2001, p.125) • amistad (19) Chavelo – Ulises: “Compadre, fue culpa mía, por eso, quiero arreglarlo. Usted me había pedido un último favor para salir de toda esta mierda y yo estoy en deuda con usted.” (Taxi para tres, Chile – LÜBERT, 2001, p. 83) En relaciones transaccionales, encontramos 1 pedido de disculpas en portugués (20%), se trata de una relación de compra y venta (error del vendedor al describir o presentar el producto) y 2 disculpas en español (14%), en los dos casos se trata de peticiones indirectas en la negociación con la autoridad respecto a infracciones civiles, sea en el restaurante sea en la vía pública: • autoridad (20) Rafael – Policía: “(Sigue. Cuelga. Frena).” “Sí, discúlpeme, oficial, ya sé, venía hablando por el celular. ¿Sabe qué pasa? Tengo a mi mujer embarazada, y estoy…” (El hijo de la novia, Perú – CAMPANELLA, 2001, p. 20) Los resultados importantes de disculpas con ofensas conversacionales por motivos tan diversificados se deben tanto al carácter más formulaico y ritualizado del acto de disculparse en algunos contextos, tanto a un trabajo estratégico de preservación de imagen en la relación interpersonal. Las primeras serían disculpas menos intensificadas, mientras que las segundas más. En los guiones brasileños hay diferencias, sobretodo en el guión de Brasil (B) que evidencia relaciones sociales menos convencionalizadas de convivencia interpersonal. El tema de la película podría condicionar los resultados, considerando que en las interacciones entre traficantes en Brasil (B), problemas de identificación, manera de hablar o desacuerdos verbales no serían objetos legítimos que demanden un pedido de disculpas. Tampoco es importante aumentar la distancia interpersonal: desculpe/ desculpem, sino más bien acortarla: desculpa aí. Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 265 265 6/11/2007 14:28:25 Gragoatá Flávia de Almeida Monteiro, Célia Regina dos Santos Lopes, Leticia Rebollo Couto Conclusiones Las disculpas refuerzan la cortesía positiva y contribuyen a la armonía de las relaciones sociales pero las normas que subyacen al conocimiento de los hablantes acerca de qué se considera apropiado decir a quién, y en qué circunstancias, varían considerablemente de una comunidad lingüística a otra, tanto entre grupos idiomáticos diferentes, como también - lo que es más difícil de determinar – en el interior de los mismos. La variedad cultural se manifiesta, por ejemplo, en el carácter opcional u obligatorio del agradecimiento o la disculpa en una situación dada u otra. También el carácter obligatorio u opcional de la reacción al agradecimiento o a la disculpa está sujeta a normas culturales variables, bien como su intensificación o el cumplimiento cortés de otros actos del discurso tales como peticiones, o rechazos de ofrecimientos (BRAVO; BRIZ, 2004). Como resultado preliminar, observamos que hay algunas diferencias en el uso de disculpas en las comunidades hispánicas o brasileñas cuanto a: 1. Las formulaciones de las disculpas están bastante relacionadas a los diferentes sistemas verbo-pronominales en lo que se refiere a las formas de tratamiento. 2. Las ofensas en los guiones en portugués tienden a ser más materiales y concretos que en los guiones en español pero habría que detallar mejor esta variación en cada comunidad sociocultural con otro tipo de dato o análisis. Para un estudio más completo, vale la pena controlar otros factores, como lo señala Kerbrat-Orecchioni (2005). Sería importante verificar cuando y con que frecuencia son actos iniciativos o reactivos. Considerar también el tercer elemento de este intercambio ternario, o sea los tipos de reacción al acto de disculpar. Además de analizar y discutir la posición de estos actos reparadores en el intercambio: su función de apertura, desarrollo o cierre conversacional. La observación de guiones cinematográficos contemporáneos nos permite discutir, en un primer momento, algunas diferencias interculturales respecto al desacuerdo, al humor y a la manera de hablar en la conversación que tendrán que ser, a posteriori, testadas en corpus de naturaleza no-ficcional y con cuestionarios y encuestas aplicados a diferentes comunidades socioculturales en portugués y en español. Sin embargo, este tipo de estudio nos permite inferir algunas reglas referentes a los sistemas de cortesía que rigen las prácticas sociales en comunidades socioculturales iberoamericanas. Consideramos que estos tipos de estudios son un claro aporte a la enseñanza de Lenguas Extranjeras tanto del Español (HICKLEY, 2004; DUMITRESCU, 2005) como del Portugués de Brasil (FAVERO; AQUINO, 2001; KOIKE, 1992), pues aunque se 266 Gragoata 22.indb 266 Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:26 Perdón, desculpa, desculpa aí La expresión de las disculpas en el cine iberoamericano trate de un campo clásico de la pragmática contamos con pocos análisis o descripciones que busquen comparar, en estas dos lenguas, diferencias de variación y orientar mejor la prevención de posibles mal entendidos culturales. Abstract The aim of this article is to identify the group of ritual formulas, whether crystallized or not, that express apologies in different Iberian and American communities and compare the nature of offenses that demand acts of reparation. The analysis involves nine contemporary movies exhibiting eight different urban centers: Cuba, Spain, Mexico, Peru, Chile, Brazil, Argentina, and Colombia. Preliminary results show some differences in the use of apologies between Hispanic and Brazilian communities concerning a) the formulations of the apology and b) the types of offenses demanding apology. In their direct formulations, the apology is necessarily related to the verbal and pronominal system of addressing in the following forms: ustedeo, tuteo, voseo in Spanish, neutralization of tu/você in Portuguese, and the corresponding interpersonal relations in social and cultural context. Keywords: Discourse acts; Apologies; Politeness; Addressing forms. Referências Almodóvar, P. Carne trémula. Madrid: Plaza Janés, 1997. Blum-Kulka, S.; HOUSE, J.; KASPER, G. (Ed.). Cross-cultural pragmatics: requests and apologies. Norwood: Ablex, 1989. BRAVO, D.; BRIZ, A. 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Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. São Paulo: Cortez, 2001. p. 107-117. GONZÁLEZ, A. Amores perros. México: [s.n.], 2000. Versión manuscrita de los diálogos de la película. GUMPERZ, J.J. Discourse strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. GUTIÉRREZ ALÉA, Tomás. Fresa y chocolate. La Habana, 1993. Versión manuscrita de los diálogos de la película. HALM, P. Amores possíveis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. HAVERKATE, H. La cortesía verbal: estudio pragmalingüístico. Madrid: Gredos, 1994. HERNÁNDEZ FLORES, N. Los tests de hábitos sociales y su uso en el estudio de la cortesía: una introducción. In: COLOQUIO DEL PROGRAMA EDICE: la perspectiva no etnocentrista de la cortesía: identidad sociocultural de las comunidades hispanohablantes, 1., 2003, Estocolmo. Actas… Estocolmo: Universidad de Estocolmo, 2003. ______. Politeness in invitations and offers in Spanish Colloquial Conversation. Communicating Cultura, [S.l.], p. 29-40, 2001. HICKEY, L. 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Al Grupo Coimbra de Becas europeas y al proyecto Valibel, de la Universidad Católica de Lovaina, por habernos propiciado las condiciones de escritura de este trabajo. Niterói, n. 22, p. 253-269, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 269 269 6/11/2007 14:28:26 Gragoata 22.indb 270 6/11/2007 14:28:26 Resenhas Gragoata 22.indb 271 6/11/2007 14:28:26 Gragoata 22.indb 272 6/11/2007 14:28:27 Pizarro, Ana. O sul e os trópicos. Niterói: EdUFF, 2006. PIZARRO, Ana. O sul e os trópicos. Niterói: EdUFF, 2006. Lívia Reis Última obra da escritora chilena, publicada originalmente na Espanha em 2005, O sul e os trópicos, ensaios de cultura latinoamericana, mantém-se fiel ao espírito questionador e polêmico presente na obra anterior de Ana Pizarro e, ao mesmo tempo, avança em algumas dimensões ainda pouco contempladas em trabalhos anteriores. Em permanente diálogo com críticos de seu tempo, como García Canclini e Cornejo Polar, os ensaios que compõem a coletânea trazem inquietações com questões basilares dos estudos de cultura na América Latina, como por exemplo, a complexa e controversa noção de América Latina e suas articulações culturais e históricas em torno da unidade e diversidade, além das constantes preocupações com uma historiografia literária da e para a América Latina. De certa forma a obra de Ana Pizarro é herdeira daqueles que primeiro pensaram o continente e buscaram conceber uma nova a história literária: Martí, González Prada, Mariátegui, Pedro Henrique Ureña, posteriormente Angel Rama e Antonio Candido. Todos estes intelectuais propuseram questões que conduziram a questionamentos densos e complexos a respeito da cultura e da literatura latino-americana e terminaram por formular novas propostas metodológicas, mediante os câmbios e os deslocamentos de seus objetos de estudo. Ancorada na noção de “sistema literário” forjado por Candido, que perpassa os debates propostos, a autora abre um leque de questionamentos que alavancam suas reflexões em torno de temas que exigem urgência no cenário da crítica da cultura na América Latina. A partir desta urgência, Ana Pizarro abre a coletânea questionando a situação cultural da modernidade tardia na América Latina. Em seguida, sua reflexão volta-se aos questionamentos centrados no campo da história. A partir deste campo cria pontes com a historiografia literária, com a relação história e ficção, e ainda propõe interrogar os espaços, tempos, períodos históricos e regiões culturais do sub-continente. Ao longo dos capítulos a reflexão avança para questões conceituais que freqüentam a critica cultural da atualidade, como as problemáticas ligadas à mestiçagem e ao hibridismo, as de deslizamentos causados por viagem e exílio, além de problemas levantados a partir das vanguardas históricas dos anos 20. Também o papel desempenhado pelas primeiras escritoras no início do século XX são motivo para a arguta reflexão da escritora chilena que encerra o volume com uma análise sobre o impacto da indústria de bens culturais, a TV e o cinema na cultura periférica. Todos os temas elencados aparecem em um, às vezes, em mais capítulos discutidos, resgatados, reavaliados, redimensionados sob diversos ângulos e olhares. Por trás da preocupação Niterói, n. 22, p. 273-274, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 273 273 6/11/2007 14:28:27 Gragoatá Lívia Reis com a construção de um arcabouço teórico que dê sustentação a uma historiografia literária aberta aos estudos de cultura, sua relação com os imaginários e sua vinculação com a história, os ensaios se encaixam conduzindo a reflexão e a leitura pelos diferentes espaços da geografia cultural latino americana. No entanto, é no capítulo 11 “Áreas culturais da modernidade tardia”, aquele em que a autora coloca sua mais recente preocupação: a incorporação e reivindicação da Amazônia, espaço privilegiado da cultura do continente, tradicionalmente isolada dos estudos latino americanos. Entendendo a região amazônica como suporte de nosso imaginário mítico, para além das questões ecológicas e ambientais, o texto de Ana Pizarro, constrói uma reflexão que entende esta região tão rica e abandonada, espaço dividido por oito países do continente, como um dos “espaços culturais que configuram a fragmentada unidade do continente e que, historicamente, tem contribuído no desenho de nosso imaginário cultural”. Ana Pizarro se serve de todos estes temas para desenvolver sua delicada e perspicaz análise da cultura latino-americana do último século. A obra, além da pertinência dos estudos, desenvolvidos sempre com delicadeza e profundidade, vem envolvida em uma linguagem acessível que conduz o raciocínio de seu leitor ao questionamento a respeito de temas que estão a nossa volta, em nosso dia a dia cultural sem, no entanto, abrir mão de uma grande erudição que faz com que a autora esteja em permanente diálogo com críticos de sua época e do passado. Acreditamos que O sul e os trópicos já tenha o seu lugar nos estudos de literatura e cultura no Brasil, sobretudo hoje, momento em que assistimos a um sensível crescimento dos estudos comparativos, ao mesmo tempo em que vamos construindo um processo de incorporação do mundo hispânico e caribenho à nossa cultura brasileira. Este processo também pode ser percebido na medida em que começamos a nos identificar e nos sentir parte deste continente. Podemos observar, pelo lado inverso, o mesmo processo que descreve Ana Pizarro, de incorporação do bloco luso falante aos estudos literários latinos americanos. Este é outro mérito de O sul e os trópicos. Repetindo o movimento que teve início na trilogia América Latina, palavra, literatura e cultura (Unicamp, 1995), este livro incorpora o Brasil, sua literatura e cultura, seus processos de desenvolvimento, vanguarda e modernidade, que são analisados em conjunto com os diferentes países do bloco hispânico e do Caribe. Com isso damos boas vindas à primeira edição brasileira de O sul e os trópicos: ensaios de literatura e cultura latino-americana. 274 Gragoata 22.indb 274 Niterói, n. 22, p. 273-274, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:27 TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p. TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p. A história como intertexto ativo da literatura hispano-americana Heloisa Costa Milton Na literatura hispano-americana, a indagação do passado compõe um veio privilegiado para o gesto criador, inscrevendose como uma busca poética diretamente vinculada ao tópico da identidade cultural. Tal condição traz como resultado uma alta incidência de romances históricos neste território literário, subgênero que, emergindo no século XIX, instala-se na contemporaneidade com força expressiva, talento inovador e vitalidade plena. Sendo assim, pode-se afirmar que, contando com um acervo enorme de histórias privadas e coletivas e tecendo narrativas que primam pelo engenho e arte, o romance, em particular o histórico, exercita uma prerrogativa que lhe é inerente: fabular as conjunturas da história, dramatizando, inclusive, as mentalidades e sensibilidades que se expandem em temáticas tão amplas e abstratas quanto amor, maldade, vida, morte, costumes, celebrações e rituais, dentre outros aspectos da existência humana que potencializam a riqueza literária. André Trouche, na obra que se denomina América: história e ficção, oriunda da tese de Doutorado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1997, discute, com esteio crítico vigoroso e sólido procedimento analítico, a presença do discurso histórico no processo literário hispano-americano, caracterizando-o como intertexto ativo na formação das matrizes paradigmáticas da ficção hispano-americana. Essas matrizes são consideradas linhas de força que definem e sustentam a dinâmica literária como um todo e, no tocante ao trabalho crítico que desenvolve o autor, são os eixos que lhe conferem substância argumentativa e analítica. Partindo de uma revisão teórica sobre as relações possíveis entre história e ficção, Trouche estabelece tais linhas de força propondo, com argumentos incontestáveis, uma perspectiva de abordagem das letras hispano-americanas em função de quatro momentos, concebidos como decisivos para esse processo e tomados como parâmetros de uma possível unidade cultural. Esses momentos privilegiados dizem respeito ao lastro cultural de quatro obras, selecionadas como corpus de análise e fundamentação da pesquisa: Comentarios reales (1609), do Inca Garcilaso de la Vega, tida como emblema de fundação e ponto de partida do processo literário hispano-americano; Recuerdos de provincia (1850), de Domingo Faustino Sarmiento, obra de referência do Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 275 275 6/11/2007 14:28:27 Gragoatá Heloisa Costa Milton período de formação das nacionalidades; La muerte de Artemio Cruz (1960), de Carlos Fuentes, focalizada como expressão do período de afirmação emergencial da narrativa hispano-americana; e Yo el supremo (1974), de Augusto Roa Bastos, sustentada como signo privilegiado de superação das utopias modernistas. Em todas elas, o autor sublinha a capacidade de evocar, como modelo literário, algo que caracterizaria sobremaneira a narrativa hispano-americana: a tendência, dotada de múltiplas feições narrativas, de transferir para o terreno ficcional o questionamento da experiência histórica, refletindo, com tal gesto, sobre a ontologia e a identidade americanas. Trouche sedimenta seu estudo em inúmeras indagações. Por exemplo, com ímpeto de intensificar o debate sobre as literaturas do continente, lança um feixe de perguntas como norte do seu pensamento: De que se fala quando se fala em América Hispânica? E de América Latina? Existirá uma Literatura Hispano-Americana? O que se produz hoje nos EEUU, em espanhol, é Literatura Hispano-Americana? E as crônicas da Conquista produzidas por europeus na América? O Caribe é inglês ou latino? A literatura produzida pelos jesuítas nos séculos XVI e XVII é hispânica ou latino-americana? E a literatura indígena? A busca de autonomia pode ser matriz de comparação para uma periodização uniforme? E a tensão entre localismo e cosmopolitismo, como deve ser encarada? E a questão lingüística? E...? (TROUCHE, 2006, p. 22-23) Esse rol de questões lhe serve para confirmar a existência de um sistema literário em língua espanhola na América e legitimar a proposição de uma escritura recorrente voltada para o elemento histórico, interface literária que se opera e adquire maior ressonância, tal como ele estipula, no âmbito da metodologia comparatista. Entretanto, é importante salientar que o pesquisador recusa a designação de romance histórico para os paradigmas que institui, por entender que estes são formações discursivas que transcendem os registros do romance histórico por não se subordinarem à linha cronológica que define a série literária e, mais ainda, por alcançarem rendimentos artísticos diversos devido à confluência, no interior da sua linguagem, de um considerável hibridismo discursivo. Sem refutar as excelências do romance histórico, Trouche reivindica um caráter mais abrangente para as matrizes literárias sobre as quais reflete. Enfatiza que a obra de Garcilaso funda um tipo de discurso que conjuga memória, eventos históricos e projeto narrativo, na busca de um espaço próprio, genuinamente americano, em relação ao espaço do outro; que a obra de Sarmiento dá continuidade ao paradigma de Garcilaso e enlaça estrato autobiográfico, memória, contrato social e construção ficcional, colocando em evidência a junção do público com o 276 Gragoata 22.indb 276 Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:27 TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p. privado na recuperação da história; que a obra de Fuentes é um romance histórico que, embora não opere com personagens que tenham assento nos cartórios de registro civil, analisa, recupera e reinventa, pelo recurso à memória, a experiência da sociedade mexicana desde a Revolução de 1910, prenunciando o que Linda Hutcheon (1987), denominaria metaficção historiográfica; e que a obra de Roa Bastos é, notadamente, um “documento ficcional”, que desconstrói o discurso histórico ao articular uma contra-história, problematizar a representação do passado e pôr em juízo a existência de verdades absolutas, superando, assim, a tradicional dicotomia entre verdade histórica e fantasia ficcional. Essa produção constitui, pois, o andaime literário a partir do qual Trouche pensa e afirma a incidência da história no processo formador da literatura hispano-americana. Referindo-se às questões levantadas anteriormente, ele destaca a importância da noção de sistema para uma literatura que, em sua diversidade, forma uma unidade: Abordar a literatura hispano-americana como sistema, sem dúvida, é uma das questões mais imediatas e delicadas com que se enfrenta o discurso crítico, ao debruçar-se sobre a produção literária da chamada América Hispânica. Imediata porque o próprio termo América Hispânica corresponde a um conceito geopolítico questionável, e que vem apresentando grande variação ao longo do tempo. E delicada porque envolve uma grande quantidade de culturas regionais/nacionais que apresentam considerável diversidade, não se expressam numa única língua (vide o caso da produção literária indígena pré e pós-colombiana e o caso atual dos Chicanos,New Ricans e Cubanos-Americanos nos EEUU), e, principalmente, porque se relaciona diretamente à questão da imagem/identidade hispano-americana, verdadeiro trauma ontológico-cultural, sempre presente desde a época da Conquista. (TROUCHE, 2006, p. 140) Em vista desses dilemas e configurações, ao tomar as quatro obras como referenciais simbólicos da literatura que estuda, Trouche defende a substituição dos designativos “narrativas históricas” e “romances históricos” por “narrativas de extração histórica”, com a justificativa de que o composto “romance histórico” não expressa a ruptura radical com o modelo scottiano, empreendida, por exemplo, pelas obras que Hutcheon qualifica de “metaficção historiográfica”. Além disso, indo na contramão da avaliação feita por Rodríguez Monegal e outros críticos a respeito da longevidade deste tipo de construção, classifica o romance histórico de “subgênero arquidatado e cristalizado”, argumentando que ele não possui amplitude suficiente para abarcar obras que foram produzidas com anterioridade ao seu advento no território hispano-americano, no século XIX. Nessa direção, com o estilo enfático que caracteriza sua voz crítica e levando em consideração que o conceito de metaficção Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 277 277 6/11/2007 14:28:28 Gragoatá Heloisa Costa Milton historiográfica, ainda que extremamente operacional e renovador, não se aplica inteiramente à narrativa hispano-americana que toma a história como intertexto ativo, Trouche explica o porquê de pertinência de outra nomenclatura: Fator paralelo, porém de importância capital para a opção pelo composto “narrativas de extração histórica”, encontra-se no fato de que o diálogo com a história não se restringe ao âmbito do romance histórico, e sua linha de continuidade, ou ao âmbito das chamadas metaficções historiográficas. Ao contrário, no universo do sistema literário hispano-americano, muito antes do século XIX, já encontramos significativa produção narrativa que toma o histórico como intertexto. Refiro-me à crônica historiográfica dos séculos XVI e XVII e a alguns narradores como Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Palma, ambos no mesmo século XIX, mas totalmente afastados do modelo do romance histórico, que tomaram a memória, a história e o legendário oral como signos contíguos não-excludentes, compartilhando a mesma perplexidade e o mesmo projeto de autoconhecimento, a começar do diálogo com a história. (TROUCHE, 2006, p. 43) Inegavelmente, o conceito “narrativas de extração histórica” alicerça, com mais precisão e alcance, os paradigmas literários selecionados pelo pesquisador. De uma parte, observa-se que eles não se circunscrevem totalmente ao âmbito do romance histórico, ou do que se convencionou denominar “novo romance histórico”, e, de outra, que tampouco se limitam ao que Linda Hutcheon, aludindo à pós-modernidade e considerando basicamente a produção narrativa do Primeiro Mundo, qualifica de metaficção historiográfica. Com os paradigmas que propõe, Trouche se insere no pensamento hispano-americano com eficácia analítica e argumentação refinada, a partir da visão de um processo literário que se sedimenta na relação com a história. Embora esta relação seja, notoriamente, foco de atenção de inúmeros estudos críticos sobre a literatura hispano-americana, a contribuição maior que Trouche oferece reside na fundamentação de uma nomenclatura mais abrangente — narrativas de extração histórica — para as diversas modalidades de relatos que se constroem e se nutrem do material histórico. Em função do exposto, vale ainda notar que, se a história não é patrimônio exclusivo dos historiadores, como os bens artísticos testemunham, se o romance histórico demonstra sua plena vitalidade, tal como demonstrado pela variedade e alta incidência de suas produções, fica evidente que a história constitui, hoje e sempre, um dos agentes primordiais da inquietação humana, sendo, nesse sentido, um manancial inesgotável para a criação literária. Ocupando os interstícios que a história deflagra, a literatura, em especial o sub-gênero histórico, encena o passado com 278 Gragoata 22.indb 278 Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:28 TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006. 156 p. total autonomia de vôo, descongelando discursos tipificados nos diferentes campos do saber. A propósito desta propriedade artística, é oportuno afirmar, apelando a Roland Barthes, “que todas as ciências estão presentes no monumento literário“e que a literatura, sendo nesse ponto enciclopédica, “faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso.” (BARTHES,1980, p. 18). De fato, indiretamente, a literatura revisa/revira a história abrindo-se a uma multiplicidade de interpretações, como decorrência da invenção de inúmeros tecidos, feixes, nós narrativos, que induzem o leitor a dois movimentos simultâneos e complementares: reviver o passado e imaginar o presente. As narrativas de extração histórica, nos termos com que André Trouche exalta a vocação da literatura hispano-americana para a história, cumprem com excelência artística essa função. Referências BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1980. HUTCHEON, Linda. Trad. Ricardo Cruz. Poética do pós-moderno: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. Niterói, n. 22, p. 272-279, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 279 279 6/11/2007 14:28:28 Gragoata 22.indb 280 6/11/2007 14:28:28 Colaboradores deste Número ANDRÉA LÚCIA PAIVA PADRÃO ÂNGELO Professora do Colégio de Aplicação da UFSC fez Doutorado em Literatura (2006), área de concentração Teoria Literária, na UFSC. Publicações recentes: Alguns aspectos teológicos em Borges. “La casa de Asterión”: uma leitura. Anais do II Simpósio Internacional sobre religiões, religiosidades e culturas, Universidade Federal da Grande Dourados (2006). Manifestações bíblicas em três contos de Jorge Luis Borges. Anais do X Congresso Internacional da Abralic. UERJ (2006). Borges e o conto policial: “Abenjacán el Bojarí, muerto em su laberinto”. Revista Interletras. UNIGRAN-MS (2006). CÉLIA REGINA DOS SANTOS LOPES Professora de língua portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ desde 1994, onde se doutorou em 1999, atua no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Sua tese “A inserção de a gente no quadro pronominal do português: percurso histórico” foi publicada em Frankfurt/Madri, 2003. Em 2005, organizou o livro “A Norma Brasileira em Construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX” e, em 2006, editou, em co-autoria, o livro “Sincronia y diacronía: de tradiciones discursivas en Latinoamérica” pela Vervuert/Bibliotehca Ibero-Americana. É bolsista de Produtividade do CNPq. CONSUELO ALFARO LAGORIO Fez a graduação e a pós-graduação na PUC de Lima-Peru, e o doutorado em Lingüística em Paris. Trabalhou na Reforma Educativa do Peru, na década de 70, no Ministério de Educação, na elaboração de políticas públicas sobre a relação espanhol/ línguas indígenas. Atualmente é professora na graduação e pós-graduação da UFRJ, na área de Estudos Lingüísticos (Língua Espanhola) e faz parte do GT Historiografia Lingüística, produzindo uma reflexão sobre as políticas lingüísticas, a partir de documentação colonial ibérica. Nessa perspectiva histórica, a autora tem priorizado as questões relativas às estratégias de difusão das línguas na região dos Andes, a partir do século XVI, especialmente no tocante a ensino, nessas situações de contato. As publicações tratam principalmente sobre política lingüística colonial hispânica. DANILO LUIZ CARLOS MICALI É aluno do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP – Araraquara, onde também obteve o título de Mestre em Estudos Literários (2003). Desenvolve o projeto de pesquisa em teoria literária e literatura comparada, intitulado “O Narrador e a Construção da ficcionalidade em romances de Calvino, Saer, Ubaldo Ribeiro e Bernardo Carvalho”. O autor publicou artigos em Anais de congressos. EURÍDICE FIGUEIREDO Doutora pela UFRJ (1988), é professora associada de Literaturas Francófonas e Literatura Comparada na UFF. Foi coordenadora do Programa de PósGraduação em Letras da UFF (1995-1999), do GT da ANPOLL “Relações Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 281 281 6/11/2007 14:28:28 literárias interamericanas” (2000-2002, 2002-2004). Organizou O francês e a diferença (com Paula Glenadel, 2006) Conceitos de literatura e cultura (2005), Recortes transculturais (com Eloína Prati dos Santos, 1997), A escrita feminina e a tradição literária (1995). Publicou Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana (1998) e inúmeros artigos em obras coletivas e revistas nacionais e internacionais. É pesquisadora do CNPq. FLÁVIA DE ALMEIDA MONTEIRO Mestranda da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolve projeto de dissertação sobre “Agradecimentos e Desculpas em português brasileiro e em espanhol: um estudo comparado de polidez a partir de roteiros cinematográficos contemporâneos”. Graduada em Português – Espanhol pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2001, é professora titular da Fundação de Apoio à Escola Técnica e da Secretaria do Estado de Educação. GRACIELA RAVETTI Bolsista de Produtividade do CNPq, doutora em Letras (Língua Espanhola e Literatura Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora Associada I da Universidade Federal de Minas Gerais. É Presidente da Associação Brasileira de Hispanistas. Tem experiência na área de Letras e atua principalmente nos seguintes temas: literatura latino-americana, teoria literária, América latina, critica literária, estudos culturais, performance escrita, artes performáticas, ensino da língua espanhola, cinema e das culturas hispânicas. Publicou: O corpo na letra: O transgênero performático, performance, exílio, fronteiras: Errâncias territoriais e textuais e mediações performáticas latino-americanas. HAYDÉE RIBEIRO COELHO Professora Associada da Faculdade de Letras da UFMG ( Universidade Federal de Minas Gerais). Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (USP).Organizou os livros: Darcy Ribeiro e Rui Mourão (Coleção Encontro com Escritores Mineiros) e co-organizou 1000 rastros rápidos: Cultura e milênio. Realizou Pós-Doutorado na “Universidad de la República”, Uruguay. Pesquisadora e bolsista do CNPq desde 2003. HELOISA COSTA MILTON Mestre e Doutora em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispanoamericana pela Universidade de São Paulo, é docente do Curso de Letras da Universidade Estadual Paulista (campus de Assis). Sua atuação acadêmica envolve ensino, pesquisa e orientações de pesquisas em Literatura Hispanoamericana, Literatura Comparada (Brasileira e Hispânicas) e Teoria Literária. Possui diversos artigos publicados no Brasil e no exterior. LETICIA REBOLLO COUTO Professora de língua e literatura espanhola da Faculdade de Letras da UFRJ desde 1991, atua na área de Estudos Lingüísticos no Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Doutora em Ciências da Linguagem 282 Gragoata 22.indb 282 Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:28 pela Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo, 1999. Bolsa de Hispanistas para Pós-Doutorado na Universidade de Alcalá, Projeto Espanhol oral e estudo das relações interpessoais, 2005. Bolsa Coimbra de jovens pesquisadores para Pós-Doutorado na Universidade Católica de Louvain, Projeto Prosódia e variação dialetal, 2007. LÍVIA REIS Doutora em literaturas hispânicas pela USP, professora associada de literatura hispano-americana na UFF e pesquisadora do CNPq. Nos últimos anos tem trabalhado com o diálogo literário e cultural entre o Brasil e a América Hispânica. Foi vice-presidente da ABRALIC e diretora da EdUFF. No momento, cumpre seu segundo mandato como diretora do Instituto de Letras da UFF. Principais publicações. Fonteiras do Literário I e II, Hipanismo 2.000, Dom Quixote, Utopias. LUIZ FERNANDO VALENTE Educado no Brasil e nos Estados Unidos, é atualmente Professor de Literatura Brasileira e Comparada e Diretor do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University (Providence, RI), nos Estados Unidos. Autor de inúmeros trabalhos sobre a literatura brasileira dos séculos XIX e XX, sobre as relações entre a história e a ficção e o novo romance histórico, e sobre a história intelectual brasileira, acaba de terminar o livro Mundivivências: Leituras Comparativas de Guimarães Rosa. MÓNICA BUENO Professora e pesquisadora da Universidad Nacional de Mar del Plata (Argentina), na cátedra de Literatura Argentina. Tem trabalhado sobre a vanguarda argentina, especialmente sobre a obra de Macedonio Fernández, que é parte de sua tese de Doutorado. Dirige o grupo de pesquisa Cultura y política en la Argentina no CELEHIS (Centro de Letras Hispanoamericanas) de la UNMdP, que atualmente desenvolve uma pesquisa sobre questões culturais durante as ditaduras de Brasil e Argentina. É integrante do projeto bilateral Margens/Márgenes que edita a revista do mesmo nome. Entre suas publicações: Macedonio Fernández, un escritor de Fin de Siglo, (Genealogía de un vanguardista) (2000); Premio Cuadro de Honor, Corregidor; AAVV Diccionario sobre la novela de Macedonio Fernández, Ricardo Piglia (comp), Fondo de Cultura Económica (2000); Conversaciones imposibles con Macedonio Fernández (comp), Corregidor, Ensayo, Buenos Aires, (2001); Centro Editor de América Latina. Capítulos para una historia, Siglo XXI (2006). OLGA VALESKA Professora de Língua Portuguesa e Literatura no CEFET-MG, a autora possui mestrado em Teoria da Literatura pela UFMG (1998), doutorado em Literatura Comparada pela UFMG (2003) e Doutorado Sanduíche UFMG/ El Colegio de México-COLMEX (2002). Atualmente participa do grupo de pesquisa financiado pelo CNPq, “Os intelectuais e a vida pública”, na Universidade Federal de Minas Gerais. Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 283 283 6/11/2007 14:28:29 PAULO SÉRGIO MARQUES Mestre e Doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista (Unesp). Publicou, dentre outros, o artigo “Poesia Feminina em Mato Grosso: Filiações e Rupturas na Poesia de Arlinda Morbeck e Amália Verlangieri” (Abralic, 2006), o livro de poesias Primeiro e a obra crítica Dez modernistas, este último em co-autoria com Paulo Sesar Pimentel. RAFAEL GUTIÉRREZ GIRALDO Mestre em Literatura Latino-americana pela Universidade Javeriana de Bogotá (Colômbia), é Doutorando em Estudos de Literatura da PUCRio. Sua área principal de pesquisa é a literatura latino-americana contemporânea. Atualmente realiza sua tese de doutorado sobre a obra do escritor chileno Roberto Bolaño e trabalha como pesquisador do Núcleo de Estudos de Literatura Latino-americana da PUCRio. RAUL ANTELO Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, leciona literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de Potências da imagem (Grifos, 2004) e Maria con Marcel. Duchamp en los trópicos (Buenos Aires, Siglo XXI, 2006), editou Antonio Candido y los estudios latinoamericanos (Pittsburgh, Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2001) e colaborou, também, em O Grande Terramoto de Lisboa: Ficar Diferente (Lisboa, Gradiva, 2005); Candido Portinari y el sentido social del arte (Buenos Aires, Siglo XXI, 2005); Arte de posguerra (Buenos Aires, Paidós, 2005); Viver com Barthes (Rio de Janeiro, 7letras, 2005); Céu acima. Para um tombeau de Haroldo de Campos (São Paulo, Perspectiva, 2005); A literatura latino-americana no século XXI (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005); Gilberto Freyre e os estudos latino-americanos (Pittsburgh. Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2006) e Travessias do pós-trágico (São Paulo, UNIMARCO, 2006). SILVINA CARRIZO Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora Adjunta da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Publicou os artigos “Indigenismo” e “Mestiçagem” (Figueiredo, Eurídice (org), Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: EDUFJF; Niterói: EDUFF, 2005), o ensaio: “Guimarães Rosa en la Revista Crisis (D´Angelo, Biaggio: Verdades y veredas de Rosa. Ensayos sobre la narrativa de João Guimarães Rosa. Lima: Fondo Editorial UCSS; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2004) e o artigo: “As passagens. Vários processos de estranhamento”, em: Ipotesi, Revista de Estudos Literários, Programa de Pós-graduação em Letras, UFJF, v.8 – n.1 –jan/jun, n.2 –jul/dez, novembro 2004. WALTER D. MIGNOLO Professor de Literatura na Duke University (Estados Unidos), fez seu Doutorado na Ecole des Hautes Etudes (Paris). Tem trabalhado sobre diferentes aspectos do mundo moderno/colonial explorando conceitos como 284 Gragoata 22.indb 284 Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:29 colonialidade global, geopolítica do conhecimento, transmodernidade, pensamento da margem. Suas mais recentes publicações incluem: The Idea of Latin America (2005), Writing Without Words: Alternative Literacies in Mesoamerica and the Andes, co-editado com Elizabeth H. Boone (1994), e The Darker Side of the Renaissance: Literacy, Territoriality, Colonization (1995) que ganhou o prêmio Katherine Singer Kovacs da Modern Languages Association. É também autor de Histórias locais/Projetos globais, colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar (ed. UFMG, 2003). É diretor acadêmico da Duke nos Andes, um programa interdisciplinar em Estudos Latino Americanos e Andinos em Quito (Equador). Dirige desde 2000 o Center for Global Studies and the Humanities, uma unidade de pesquisa no John Hope Franklin Center for International and Interdisciplinary Studies. Pesquisador Permanente a Distância da Universidad Andina Simón Bolívar em Quito (Equador). Niterói, n. 22, p. 281-285, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 285 285 6/11/2007 14:28:29 Gragoata 22.indb 286 6/11/2007 14:28:29 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Letras Revista Gragoatá Av. Visconde do Rio Branco s/nº Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 501 24220-200 - Niterói - RJ e-mail: [email protected] Telefone: 21-2629-2608 Normas de apresentação de trabalhos 1 A Revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de interesse para estudos de língua e literatura. 2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo. 3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas cópias impressas sem identificação do autor, bem como em disquete, com indicação do autor, no programa Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser: 3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico). 3.2 Margens de 3 cm. 3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo. 3.4 Recuo de 2 cm nas citações. 3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA). 3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e períodicos. 4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23). 5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto. 6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023). Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação, editora,data. Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data. Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódicos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1, p. 81-104, jan./abr. 1989. 7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig. 2 etc). Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 287 287 6/11/2007 14:28:29 8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês. 9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identificação (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail. 10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista. 11 Os originais não aprovados não serão devolvidos. Próximos números Número 23 Tema: Releituras da tradição Organizadores: Silvio Renato Jorge e Solange Coelho Vereza Prazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2007 Ementa: Conceitos de tradição. Paradigmas da pesquisa em lingüística e literatura revisitados. Contribuições da tradição para a análise interpretativa e a leitura do contemporâneo. Redimensionamento de pressupostos teóricos e metodológicos da investigação atual na área de Letras e Lingüística. Teóricos e pensadores – legados para o novo milênio. Número 24 Tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destino Organizadores: Laura Padilha e Lucia Helena Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008 Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África. Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias. 288 Gragoata 22.indb 288 Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:30 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Letras Revista Gragoatá Av. Visconde do Rio Branco s/nº Campus do Gragoatá - Bloco C - Sala 501 24220-200 Niterói - RJ- Brazil e-mail: pgletras@vm. uff.br Telefone: +55-21-2629-2608 General Instructions for Submission of Papers 1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the areas of language and literature studies. 2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may suggest changes in their structure or content. Papers should be submitted in floppy disks together with two printed copies, typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font 12, without any other formatting except for: 2.1 bold and italics indication; 2.2 3cm margins; 2.3 1cm identation for paragraph beginning; 2.4 2cm identation for long quotations; 2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE) for emphasis; 2.6 italics for foreign words and book or journal titles. 3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no more than 8 pages. 4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible, which are to be placed at the end of the text. As for references in the body of the article, they should contain the author’s surname in uppercase as well as date of publication and page number in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47). 5 Bibliographical references should be placed at the end of the text according to the following general format: Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding second language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994). Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal (italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994). 6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend, and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.). 7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5 keywords, also in Portuguese and in English, are required. Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007 Gragoata 22.indb 289 289 6/11/2007 14:28:30 8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution, post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no more than 5 lines in length. 9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned. 290 Gragoata 22.indb 290 Niterói, n. 22, p. 287-290, 1. sem. 2007 6/11/2007 14:28:30