Contando a arte de Christina Oiticica
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Contando a arte de Christina Oiticica
Copyright do texto © 2011 by Patrícia De Luna Editor Responsável Nelson de Aquino Azevedo Coordenação Editorial Jefferson Pereira Galdino Diagramação Guacira dos Santos Silva Fotografias Arquivo pessoal da artista Revisão Arte da Palavra Sirlene Barbosa Agradecimentos especiais a Bia Duarte da B Licenças Poéticas www.blicencaspoeticas.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) De Luna, Patrícia Contando a arte de Christina Oiticica/Patrícia De Luna. – São Paulo: Noovha América, 2011. – (Coleção contando a arte) ISBN 978-85-7673-252-5 1. Artistas plásticos – Brasil 2. Oiticica, Christina, 1951I. Título. II. Série. 11-05453 CDD-730.92981 Índices para catálogo sistemático: 1. Artistas plásticos brasileiros: Biografia e obra 730.92981 (De acordo com a Nova Ortografia da Língua Portuguesa) 1a edição 2011 Noovha América Editora Distribuidora de Livros Ltda. Rua Lincoln Albuquerque, 319 – Perdizes São Paulo/SP – CEP 05004-010 Telefax: (0xx11) 3675-5488 www.noovhaamerica.com.br [email protected] C ONTANDO A ARTE DE “Oh Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós”. Estella, óleo sobre tela, 90 x 60 cm. Exposição Caminho de Santiago, 1995. Christina é uma artista peregrina que caminha com devoção pela vida. Sempre com motivação de desbravar mistérios, pisar novas estradas, fazer viagens conquistando fronteiras para além de seus limites, condensando tudo que vê e vive em sua arte, onde se fundem caminhos materiais, emotivos e transcendentais escorrendo de suas mãos para a grande magia de criar. Sua obra é o vestígio de suas pegadas, por tantos caminhos trilhados, com humildade e audácia. Seus passos estão plantados em telas, instalações e esculturas revelando a fé de seguir os objetivos do coração. Para aqueles que vão conhecer sua caminhada nessas páginas: boa jornada! 4 CHRISTINA OITICICA Nasce uma Estrela (infância) Era uma vez... Essa estória bem poderia começar assim, porque Christina é uma dessas pessoas que vive tão extraordinariamente, que sua vida parece ser escrita na fronteira com o encantado e o maravilhoso dos contos de fadas. Mas, essa é uma estória real. Então vamos lá, começando a jornada pelo dia 23 de novembro de 1951: era o início dos anos 1950 e a cena carioca era de tranquilidade, praias limpas, pouca violência, a Bossa Nova nascendo num Rio boêmio e poético. No bairro do Catete, Paula Oiticica, grávida de nove meses, estava tranquila em sua casa, quando sentiu um desconforto e resolveu chamar o médico apenas por precaução. Chegando lá, o médico constatou, sobressaltado, que já era tarde demais para irem ao hospital. O bebê já estava nascendo para surpresa de sua mãe, que não sentira dor alguma. Deitada em sua própria cama, ela deu à luz uma menina, Maria Christina Bastos Oiticica, sua segunda filha com Cristiano Oiticica. Como diria a própria Christina anos depois: “Sinto que tenho vivido como nasci, rápido e de forma abençoada”. A vizinha, chamada às pressas, correu para socorrer e trouxe a tesoura que cortou o cordão umbilical. O primeiro olhar da recém-nascida para a futura madrinha criou um laço que uniu as duas profundamente. Batizou-a, tornando-se uma presença amorosa e marcante em sua vida. A madrinha morava na Christina com 2 anos. mesma vila e era bordadeira, fazia lindas toalhas de linho, como na Ilha da Madeira, e todo o dinheiro que ganhava era para comprar presentes para a menina, levá-la para viajar e fazer lanches na Confeitaria Colombo. 5 C ONTANDO A ARTE DE A pintora já se mostrava criativa desde a mais tenra infância e adorava desenhar e colorir. Passava horas com suas caixas de crayon, esboçando os primeiros contornos na mesa da sala, sob os divertidos olhares da mãe, que incentivava sua personalidade curiosa e levada. Os pais colecionavam a revista Saturday Evening Post, e os desenhos da capa do Norman Rockweell deliciavam sua imaginação de criança. Esses foram seus primeiros contatos com o trabalho de um artista plástico. Seu pai era um elegante professor de inglês e tradutor. Mesmo quando usava bermudas desfiadas, muito antes da época hippie, eram calças estilosas que sua mãe cortava e ficavam sem bainha. Carinhoso, sempre voltava do trabalho com um pacotinho de doce, biscoito ou banana-passa, trazidos da Leiteria Mineira, no centro do Rio de Janeiro. Fazia todas as vontades da filha caçula. A simpatia e a cordialidade de Christina vêm de um berço de alegria, sua casa era uma festa. Vivia cheia. Seus pais adoravam ajudar, seja quem quer que fosse, e receber os amigos com boa música e mesa farta. Se, de um lado, não havia um dia em que a casa da vila não tivesse alguém para comer na grande mesa cheia de quitutes, de outro, eram muitos os 6 que vinham à porta pedir ajuda. Essa casa rica em amor encheu a vida da artista de personagens, como a velha escrava, com mais de cem anos, que vinha todos os dias à porta para comer. Os anos escolares foram permeados por passagens em diversas escolas: Bennett, Atheneu, São Luís e Franco Brasileiro. Só conseguia se interessar pelas aulas de religião e estudos da Bíblia. O desinteresse por outras disciplinas a levou a mudar de escola consecutivamente. O estudo convencional, proposto pelas escolas tradicionais, não conseguia prender o interesse dessa mente criativa, até que deciChristina adolescente. diu parar de estudar e concluir o segundo grau fazendo o Artigo 99 – o atual Supletivo –, alternativa para completar os antigos Ginasial e Colegial em menos de um ano. Por volta dos 18 anos, prestou vestibular para Desenho Industrial e entrou na primeira turma da Escola Nacional de Belas Artes, que na época era no lindo prédio do Museu Nacional de Belas Artes, ao lado do Municipal, na Av. Rio Branco, onde funcionava a escola e o museu. Mais tarde retornou ao Bennett para cursar Arquitetura. Preocupada com o mercado de trabalho, valorizou outras cadeiras que não a pintura, apostava mais no design e na decoração.No fim de 1979, já estava CHRISTINA OITICICA Um presente de Natal Christina em Paraty, 1972. trabalhando como estagiária em um escritório de Arquitetura. Trabalhou também como desenhista estagiária de um órgão público. A pintura se tornara um hobby e Christina fazia quadros apenas com fins decorativos para casa de clientes. Mesmo assim, a pintura nunca deixou de estar presente em sua vida. Apesar de carregar o nome Oiticica, só começou a ouvir falar de Hélio Oiticica quando ingressou na Escola Nacional de Belas Artes. Apesar de primo de seu pai, não tiveram nenhum contato. HÉLIO OITICICA Revolucionário artista plástico, Hélio Oiticica foi um dos inspiradores do Movimento Tropicalista e reconhecido internacionalmente. Hélio crious os famosos parangolés. Christina e Paulo já haviam se conhecido, pois a irmã de Paulo era casada com o tio (irmão da mãe) de Christina. Tinham estado juntos em mais de uma ocasião, mas por uma dessas brincadeiras do destino, estavam comprometidos com outras pessoas. Em 1977, os pais de Christina chegaram a batizar a sobrinha mais nova da irmã de Paulo, Sônia, enquanto Paulo e Cecília, sua esposa na época, batizavam a mais velha. Era um batizado duplo na cidadezinha de Baependi, no sul de Minas. Porém, numa tarde de Natal, no ano de 1979, Paulo Coelho apareceu na casa dos Oiticica para a ceia. Os dois conversaram brevemente e Paulo não resistiu aos encantos da bonita morena. Pediu ao primo Sergio Weguelin que decobrisse se ela tinha compromisso para a noite e a convidasse para o cinema. Embora estivesse namorando, Christina foi pega de surpresa e não soube responder negativamente. O filme era “Aeroporto”, e o cinema, Condor. Quando saíram do cinema se depararam com o cenário do Largo do Machado da época: malabaristas, mágicos, performers, cartomantes, engolidores de fogo, devotos de diversas religiões divulgando seus cultos, uma pantomima de sons e cores. Um índio sentado diante de um balaio, segurando uma imensa cobra que andava por seu corpo, chamou atenção deles. Ambos se dirigiram ao índio e agora o filme se passava do lado de fora, com nossos personagens principais se aproximando, curiosos, devido à cena do homem que estava enrolado numa 7 C ONTANDO A ARTE DE Paulo Coelho e Christina Oiticica, em 1995. enorme jiboia, a cobra capaz de quebrar todos os ossos de um boi num singelo abraço. Paulo desafiou Chris: “Se eu beijar a cobra, você me beija?” “Dar um beijo nesse monstro. Você ficou maluco?” Mas, acabou aceitando o desafio e ele se apressou em encarar o bicho de frente, apavorando até ao índio. Sem pensar, com as duas mãos segurou a cobra sem piscar e beijou-lhe a fria boca reptiliana, ganhando a aposta. Imbuído da adrenalina da façanha, deu meia-volta, agarrou Chris e deu-lhe um beijo cinematográfico. Ali começava uma união que já dura mais de 31 anos. Chegando ao apartamento de Paulo, Christina deu de cara com um livro sobre o drácula aberto na 8 mesa, onde se costuma pôr a Bíblia. Apesar de ser uma pessoa aberta, sua religiosidade e devoção a Nossa Senhora são profundas. Aquele sinal a fez confirmar a imagem antiga que guardava dele, a de uma pessoa muito diferente dela e excêntrico. No dia seguinte, parou no primeiro telefone e ligou para um pastor que costumava orientá-la. Apavorada, além de rezar pelo telefone, ainda passou numa igreja. Mas Paulo, apaixonado, não desistiu fácil. Ligou para ela, tentando um novo encontro. Decidida a dissuadi-lo da relação, pensou em provocar desinteresse contando que estaria na praça cantando com o coral do qual fazia parte e distribuindo panfletos da igreja. O efeito foi contrário e ele ficou motivado. Marcou o encontro e os dois reataram. Explicou que seu interesse por vampirologia era um hobby, puramente intelectual, e que tinha até feito um curso em Londres sobre o assunto. Em algumas semanas, Christina já estava convencida de que eram feitos um para o outro. Largou o apartamento no Jardim Botânico e se mudou para a casa de Paulo, no Flamengo. O sinal de sua mudança definitiva foi levar a prancheta com a qual ganhava a vida. Até que, no dia 22 de junho de 1980, os dois oficializaram a relação com um almoço para os pais, parentes e poucos amigos mais próximos. Os primeiros dois anos transcorreram calmamente e Christina passou a se dedicar mais intensamente à pintura, estimulada pelo marido que por sua vez buscava seu caminho como escritor. CHRISTINA OITICICA Dirigindo para o destino No final de 1981, Christina fez uma sugestão ao marido que mudaria suas vidas; uma viagem sem destino e sem data para voltar. Ela estava motivada a ajudá-lo a achar seu caminho como escritor, e ele confiou na sua intuição. Os dois embarcaram para Madri, decididos a só voltar quando gastassem o último centavo do dinheiro que levaram para a viagem. Em dezembro chegavam a Londres, sem nenhum planejamento de viagem e apenas uma regra: nenhum dos dois deveria carregar mais de seis quilos de bagagem. Foram para Praga e Viena enrolados em cobertores para suportar o frio dentro de um modesto modelo de carro antigo, o 2CV, que mal aguentou os 1.500 quilômetros de Londres a Áustria. Decidiram seguir para Iugoslávia, onde passariam três noites, tomando coragem de entrar no carro e enfrentar a jornada gelada até a próxima parada. Acabaram preferindo devolver o carro à locadora. Agora, precisavam de um novo meio de locomoção e descobriram na embaixada da Índia um bom negócio – um Mercedes-Benz azul-claro, com 9 anos de uso. Devidamente equipado com um motor de 110 cavalos e um bom sistema de aquecimento, andavam em zigue-zague, até que o carro deu-lhes um destino. Como o veículo era originário da antiga República Federal Alemã (RFA – Alemanha Ocidental), precisariam registrar a mudança de dono no serviço de trânsito de Bonn (capital da RFA), a 200 quilômetros de onde estavam. Christina Oiticica, em 1985. Ao chegarem a Munique, avistaram a placa que mudaria suas vidas – Dachau Konzentrationslager (campo de concentração nazista de Dachau). O lugar era tão frio e sombrio quanto a temperatura com muitos graus abaixo de zero. Misteriosamente, os dois se encontravam ali sozinhos, cercados por muros e guaritas, sem absolutamente ninguém. Não havia guardas nem visitantes... C A M P O D E D AC H A U Primeiro campo construído pelos nazistas e por onde passaram 200 mil pessoas. Foi o modelo para outros 56 campos espalhados pelo nazismo em dez países da Europa. Funcionou de 1941 a 1945, quando seus portões foram abertos por tropas aliadas. No dia da libertação havia ali 30.000 prisioneiros. 9 C ONTANDO A ARTE DE Assombrados pela recepção vazia, seguiram as placas indicando o trajeto sugerido aos viajantes que refazia a via crúcis dos presos do passado: sala de recepção. Seguiram, atravessando os corredores onde se localizava a cela-forte com todos os artefatos remanescentes do terror do passado, como ganchos no teto para prender os presos nas sessões de tortura; galpões, nos quais amontoavam-se as pessoas em beliches. O silêncio do lugar tomou a alma dos dois, que retornaram tristes à área descoberta do campo. Ouviram os sinos de Dachau e o som cruzava o movimento do ar frio como uma história sendo contada – a cada badalada, a batida dos muitos corações que estiveram lá ainda estava viva nos cartões grampeados nas paredes e nos buquês de flores frescas, colocados Christina, Paulo e o guia de turismo, nas ruas de Tanger em Marrocos, 1982. Christina em Gibraltar, Espanha, 1982. 10 constantemente no salão de visitas pelas famílias para homenagear os mortos. Os sinos continuavam ecoando pelo campo como um chamado. Andavam na direção do badalar, que vinha de um dos três templos religiosos no fim do campo: um católico, um protestante e um judeu. Lá, Paulo recebeu uma revelação – por entre fachos de luz que cruzavam a paisagem anteviu-se a imagem de um homem que anunciava um encontro em dois meses. O casal foi para a Holanda e numa tarde tomando um café no Hotel Brouwer, Paulo viu o homem da aparição. O homem era o mestre de uma antiga tradição católica chamada R.A.M. (Regnus Agnus Mundi). Ali começava uma jornada que um dia levaria ambos ao Caminho de Santiago e às suas lendas pessoais. CHRISTINA OITICICA Uma guerreira das letras (ramo editorial) Na volta para o Brasil e se instalaram no andar térreo de seu apartamento na Raimundo Correia. Christina estava decidida a tocar um projeto idealizado antes mesmo de ir para a Europa – a Editora Shogun. Ela sonhava em editar os primeiros livros do marido e a primeira providência foi alugar um conjunto de salas em Copacabana. Era uma pequena empresa tocada pela família. Dr. Pedro, pai de Paulo, que acabara de se aposentar, era o contador. Menos de três meses após ser aberta, já editava seu primeiro título: Arquivos do inferno, uma coletânea de textos escritos por Paulo Coelho. Entre os autores publicados, figuravam também Raul Seixas em As aventuras de Raul Seixas na Terra de Thor, e a roqueira Neuzinha Brizola, filha do então governador do Rio, Leonel Brizola. Porém, o forte da editora eram as coletâneas de poesias. Por meio do concurso “Raimundo Correia de Poesia”, batizado segundo o nome da rua em que moravam, a editora possibilitou que cada autor concorresse com até três poemas, “autores, amadores ou profissionais, publicados ou não, sem qualquer limite de idade, desde que os poemas estivessem em língua portuguesa”. Rapidamente, as salas da editora estavam cheias de poesias, do Norte a Sul do País, para serem avaliadas. A divulgação era feita por meio de pequenos anúncios em jornais ou panfletos, distribuídos em portas de teatro e cinemas. Cada poeta selecionado recebia, além dos livros, um bilhete manuscrito de Paulo e um diploma emitido pela Shogun. A editora cresceu tanto que chegaram a alugar o Circo Voador (famosa casa de eventos da Lapa) Christina em 1990. para uma noite de lançamento. Além da função de editora, Christina ainda organizava saraus públicos e o Projeto Poesia na Prisão. Acompanhada do poeta Mano Melo, promoveram um concurso de poesia para presidiários. Empreendedora, também mantinha, paralelamente à editora, um centro cultural e espaço esotérico chamado Avatar, no qual oferecia diversos serviços, palestras e cursos. “ Quando tenho vontade de fazer algo, vou realizando...” 11 C ONTANDO A ARTE DE Um caminho para as artes (década de 1980) “ Me identifico muito com Salvador Dali, não na técnica mas na busca!” Assim sendo, os dois seguiram para Madri e A década de 1980 foi permeada por muitos movimentos culturais, políticos e de vanguarda, ce- foi Chrisitna quem escondeu a espada no local denas das quais Christina não ficou de fora. Ela deu terminado pelo mestre de Paulo, no Caminho de voz ao protesto da Zona Sul, para não fecharem um Santiago. Quando Paulo chegou de sua jornada e dos pulmões do Rio de Janeiro, o Parque Lage: lançou o Diário de um mago, realizando seu sonho Posicionados numa tribuna improvisada, Christina, de tornar-se autor, Christina percebeu os efeitos daPaulo e amigos lançaram o Jornal Sociedade Alterna- quela peregrinação em suas vidas e decidiu que detiva. Enquanto um dos participantes lia o manifes- veria fazer o mesmo. Havia um chiado em seu peito, um vazio, estato, ela cortava com uma tesoura as roupas do diletante até a última peça, quando ele diria a frase: “O gran- va feliz, bem-sucedida, mas faltava-lhe algo. Alguns de milagre não será mais andar sobre as águas, mas anos depois, partiu em busca de sua própria lenda pessoal e embarcou para a Espanha, com a garra de caminhar sobre a terra”. As aventuras não terminavam por aí... Al- percorrer o caminho que marcaria sua vida e obra guns meses depois, despontava uma nova virada: para sempre. fora marcada para janeiro de 1986 a cerimônia na qual Paulo seria orC A M I N H O D E S A N T I AG O denado mestre. Chris seguiu com o Foi declarado Primeiro Itinerário marido para o cume de uma das Cultural Europeu (1987); e Patrimônio da montanhas da Mantiqueira, divisa Humanidade, na Espanha (1993). Tratase de um trajeto percorridos por peredo Rio e de Minas Gerais, próxima grinos desde o século IX. O Caminho ao Pico das Agulhas Negras. Uma entrou para a história há doze séculos, reviravolta no processo fez com que quando foram encontrados os restos a espada da iniciação fosse entregue mortais do apóstolo São Tiago ou Santiapelo mestre a Chris e não a Paulo, go, onde hoje é a cidade de Santiago de pedindo que ela a escondesse num Compostela. Esta rota vem sendo seguilugar por ele determinado, na da por milhões de pessoas das mais variadas procedências. É possível chegar Espanha, numa antiga rota mediea Santiago de Compostela vindo de PorPeregrino, val, para que Paulo caminhasse em óleo sobre tela, 100 x 90 cm, 1995. tugal, Espanha, França, ou Inglaterra. busca de sua espada. 12 CHRISTINA OITICICA Nasce a pintora Tanto a vida pessoal quanto a obra de Christina estão profundamente ligadas ao Caminho de Santiago que ela percorreu em 1990, saindo de Saint Jean de Pied Port em busca de um grande encontro: o encontro consigo. Munida apenas de um walkman, uma mochila e uns poucos dólares, para obrigar-se à rotina de um peregrino comum, parou para jantar com um amigo que a deixou na estação de trem. Acabou perdendo o walkman, mas, sempre ligada em ler os sinais do mundo, em vez de se aborrecer, achou que aquilo significava fazer uma viagem mais conectada com os sons do Caminho e sem distração. Andou sozinha todo o percurso, enfrentando os limites impostos pela caminhada. Até que, numa noite chuvosa, foi interrompida pela força dos ventos e pediu abrigo num mosteiro dominicano. Apesar de escuro e sombrio, não havia outra opção nos próximos quilômetros, por isso preferiu enfrentar a frieza da recepção e aceitou ser levada para a ala mais sombria e distante do mosteiro, de onde se ouviam os ecos dos passos no corredor. Abrigou-se num quarto tão sujo, que não pôde dormir antes de limpá-lo todo. Deitou na dura cama e não se deixou intimidar pelos estranhos barulhos que pareciam ressoar desde outros tempos daquelas murmurantes paredes. Destemida, tirou seu terço da mochila e rezou conta após conta, até o primeiro raio de Sol, quando ouviu uma voz que dizia: “Pega a mochila e continua, vá embora daqui!”. Apesar de exausta, seguiu viagem até a próxima parada, onde foi interrompida por uma forte tendinite na perna. Perseverante, Exposição Caminho de Santiago, em 1995. ainda andou até a hospedagem mais próxima e repousou por uma semana, como diz a própria: “Cada um faz seu caminho, ele nunca é igual para cada peregrino”. Curada da tendinite, seguiu a estrada, superando os desvios, a solidão, as intempéries, seus receios e anseios, carregando consigo a lição do Caminho de que o mais importante é caminhar. Chegou ao Cebreiro, certa de que havia encontrado um tesouro – sua verdade interior. “Acredito muito em Deus, todo dia converso com Ele”. 13 C ONTANDO A ARTE DE Tinha um anjo no meu caminho, no meu caminho tinha um anjo Muito embora Christina estivesse fazendo uma peregrinação com fins espirituais, seu lado prático queria canalizar toda aquela experiência em algo concreto. Ela encontrou as respostas que buscava e assim que chegou de volta ao Brasil sua profunda relação com o sagrado não só a ajudou a se dedicar integralmente à pintura, mas virou tema da exposição de 1990, o Ano Santo em Compostela. A artista largou o Centro Cultural e a Editora Shogun e montou o “Caminho de Santiago de Compostela”, retratando as catedrais a partir da impressão visual de sua peregrinação. Na Casa de Espanha, os espectadores faziam uma viagem sensorial pelo Caminho Santo, em mapas pintados no chão, incenso, música sacra e as catedrais. Toda a ambientação fazia o visitante não só observar a temática dos quadros, mas também experimentar um percorrer simbólico do Caminho. Aos poucos começou a desenvolver sua linguagem: uma forma direta e simples de retratar o mundo em que vive e a forma como o vê. Em suas palavras: “Um quadro não é simplesmente uma figura, uma cor ou uma forma, é um momento do artista, um momento que ele viveu. É uma emoção mais do que tudo, uma grande emoção”. A partir dessa estréia, Christina não parou mais de produzir e, em 1994, surge a exposição Anjos, no 14 O Anjo, óleo sobre tela, 73 x 60 cm, 1994. Centro Cultural da Light (RJ), com base em uma das mais antigas formas e arquétipos de seu contato com a divindade, os anjos. Durante a exposição, uma performance com bailarinas e crianças, vestidas de anjos, ao som da Ave Maria da Rua, música de Paulo Coelho e Raul Seixas, dava o tom de encantamento ao evento. Sua obra, porém, distanciou-se da arte sacra e reinventou esses seres de acordo com o desenho retido na imaginação popular, um movimento claro da artista que busca proporcionar e revelar a conexão entre o homem e o sagrado nas suas obras. CHRISTINA OITICICA Todas as mulheres de Christina Podemos dizer que em 1996 o feminino vem para ficar na obra de Christina. Na exposição Joana d’Arc, também em 1996, realizada na Casa França-Brasil (RJ), mostrou o retrato da mulher guerreira, enfatizando o que realmente existe por trás do aço e da couraça – a essência feminina. Seu olhar feminino e sensível revelou as mulheres em diversas culturas como guerreiras, mães, santas. Trouxe uma leitura além do mundo moderno obcecado pelo corpo físico e revelou a dimensão sagrada do feminino na mulher comum. Mesmo explorando a figura mítica da heroína francesa, recorreu às grandes mulheres de nosso tempo, como a madre Tereza de Calcutá, ou as anônimas e valentes guerreiras do cotidiano: a negra da favela, a islâmica, a índia, a gueixa, entre outras, colocando em cada uma delas detalhes representativos da santa francesa, como parte de uma armadura, uma lança, uma espada, revelando a santa e a guerreira que existem dentro de cada mulher. JOANA D’ARC É a santa padroeira da França e a heroína, que lutou bravamente, na Guerra dos Cem Anos .Descendente de camponeses, aprendeu apenas prendas domesticas.Atribuiu suas atitudes e conhecimento a vozes santas de São Miguel, Santa Catarina e Santa Margarida,as quais escutava.Foi considerada mártir francesa, canonizada em 1920, quase quinhetos anos após ter sido queimada viva como bruxa e herege aos 19 anos de idade. Gueixa, óleo sobre tela, 95 x 85 cm, 1996. Exposição Joana D’Arc na Casa França-Brasil, RJ. À mesma época, as pessoas continuavam encomendando anjos, mas chegou uma hora em que ela não conseguia mais pintá-los. Ainda absorvida pelo tema do feminino, começou a desenvolver diversos desenhos a lápis, de figuras femininas, e decidiu trabalhar o nu. Convidou suas amigas para posarem e serem pintadas. A própria Christina fez a produção do trabalho, tirando fotos das amigas. Antes delas chegarem, imaginava como cada uma podia ser caracterizada e as fotografava, sempre flagradas em pequenos momentos do cotidiano, como a mão que reza o terço, o pé da bailarina no momento de calçar a sapatilha, um busto refletido no espelho, todas revelando pequenos gestos de sensualidade. 15 C ONTANDO A ARTE DE “Uma hora precisa dar um basta, porque o quadro para o pintor nunca acaba, estamos sempre querendo modificar algo. Precisa colocar um limite. Ou pode arruinar o quadro. Chega um momento em que não se pode mais mexer... um quadro nunca fica pronto, o quadro que fica pronto está morto”. Transparência, óleo sobre tela, 63,5 x 99 cm, 1997. 16 Bailarina, óleo sobre tela, 166 x 99 cm, 1997. Trabalhou detalhes de corpos de mulheres de 12 a 90 anos. As pinturas surgiram dessas fotos, e a tônica da exposição, que ocorreu em 1997 no Museu Nacional de Belas Artes, era um olhar feminino sobre o nu, a sensualidade liberta da vulgaridade, um resgate da feminilidade e da delicadeza do corpo feminino. Nessa fase de seu trabalho, mergulhou fundo no figurativo e partiu para o monocromático. Todas as telas tinham tom cinza. A artista queria gerar no espectador a vontade de completar as figuras e de imprimir a cor que as imagens despertassem em suas mentes, buscando provocar uma vivência sinestésica a partir de cada pintura. CHRISTINA OITICICA Com anjos e motos no deserto Mais uma vez a parceria entre marido e mulher marcaria sua vida e obra. Como diz a própria Christina: “A relação do nosso casamento é muito rica, Paulo usa a palavra para passar para as pessoas sua vivência por meio do livro e eu pela imagem. Mas, sem dúvida, ele interfere no meu trabalho e eu no dele”. Assim iriam revelar-se as vivências do ano de 1998, quando os dois seguiriam juntos para o deserto. Tudo corria bem na vida de ambos. Paulo já havia lançado seu segundo livro, enquanto Christina fazia sucesso com a exposição de quadros intitulada Tarô, representando os arcanos maiores do baralho. Os dois se apoiavam mutuamente em suas carreiras e, se de um lado dividiam a mesma assessoria de imprensa, de outro panfletavam juntos a propaganda de Diário de um mago, em filas de cinema, teatros, casas de espetáculo, de mão em mão. Os dois encararam a construção de suas carreiras artísticas como uma guerra que travariam juntos. Até na mala direta de propaganda para a venda do livro O Alquimista, o comprador ganharia uma carta do tarô pintada por Chris. Nada mais natural que ela o acompanhasse numa nova etapa de sua vida, quando o mestre espiritual de Paulo, conhecido nos livros como J. determinou que ele seguisse para o Deserto do Mojave, no Sul da Califórnia. Exposição Caminhos Percorridos na Galeria Debret, 2001. O dizer do quadro é uma frase do alquimista: “O meu coração tem medo de sofrer, disse o rapaz. Diga ao seu coração que o medo de sofrer é pior do que o próprio sofrimento, respondeu o alquimista.” No dia 5 de setembro de 1988 embarcaram juntos nessa busca para passar 40 dias tentando falar com seus anjos. As primeiras duas semanas o casal deveria passar em silêncio absoluto, sem falar sequer uma palavra, apenas realizando os exercícios espirituais inacianos ou como explica o manual jesuíta: “É através da experiência que o mistério de Deus vai se revelando a cada pessoa, de forma singular e individual”. “Vou pintando e as coisas vão saindo... não sossego enquanto não vejo as coisas prontas”. 17 C ONTANDO A ARTE DE VALQUÍRIAS O termo deriva do nórdico antigo valkyrja e significa “as que escolhem os que vão morrer”. São espíritos femininos, que segundo as descrições dos poetas, aparecem usando armadura,lanças e montadas em cavalos. Elas são mensageiras levando as ordens de Odin durante as batalhas, dando vitória segundo a vontade dele, e, no fim, escolhem alguns guerreiros mortos para viverem em Valhala(morada do deus Odin),onde os escolhidos lutariam todos os dias e festejariam todas as noites. O famoso compositor Richard Wagner escreveu uma conhecida ópera chamada “ As Valquírias”. O Deserto se espalha por cinco Estados e tem nomes estranhos como Floresta do Arco-Íris e Vale da Morte. O livro As valkírias narra o encontro de marido e mulher com um grupo de motoqueiras de Harley Davison que atravessavam o deserto em busca da espiritualidade. O livro fala também das experiências de Christina no Mojave e como conseguiu comunicar-se com seu anjo. No deserto, ela viveu diversas aventuras, até mesmo uma que quase a levou à morte. Caminhando nas areias durante o dia, contrariando a orientação local de cobrir todo o corpo com roupas para evitar a desidrataçao, seguiram marido e mulher desafiando o Sol e o calor, tiraram as roupas para aliviar e sem saber o que acontecia deixaram o cansaço e a confusão mental tomarem seus corpos e se sentaram esperando a morte, até que alguém apareceu do nada e os salvou da desidratação. A obra de Christina fica, de fato, impregnada das experiências no deserto e sua fé num plano superior, tecendo as possibilidades e os acasos da vida, fortalecida. 18 O feminino tomou conta A artista, inquieta, transbordava toda a sua criatividade e desfilava sua visão do feminino nas galerias do Rio, em dois endereços simultâneos. Eram três projetos nos quais explorava o uso do computador e os recursos da informática para ousar e inovar sobre o tema do corpo feminino. Buscava a desconstrução formal da imagem, feita manualmente com o lápis sobre o papel, e transformada na tela do computador. A exposição O Círculo e o Ponto, o Ponto e o Círculo, em 1998, na Galeria do Portal, revelava em 51 obras a busca da artista pela beleza da divindade feminina em suas múltiplas faces – sexualidade, fecundidade, maternidade. Peças bi e tridimensionais feitas com pintura acrílica sobre tela, desenho, escultura, objetos, versando sobre um busto de mulher e o seu colar de várias voltas, as formas circulares, o ponto e seus desdobramentos. Pérolas, óleo sobre tela, 90 x 100 cm, 1997. CHRISTINA OITICICA Marilyn, óleo sobre tela, 80 x 140 cm, 1997. Ioga, óleo sobre tela, 120 x 100 cm, 1997. “Nessa mudança de milênio a energia feminina vai tomar conta. E isso, porque foi criado o chip do computador: O pensamento linear passou a ser circular”. Já em outro endereço, no Centro Cultural Cândido Mendes, foram apresentadas as 40 obras da exposição O Fio das Contas. Os quadros dessa mostra surgiram ao acaso, quando a artista ampliou a imagem de um seio e, no emaranhado de rabiscos, percebeu uma figura. Submeteu seus desenhos à interferência do computador, para reinventar texturas, dissolver imagens, torcer e distorcer os seios e as pérolas. A partir das imagens obtidas, desenvolveu o trabalho nas telas, aplicando cera, betume, lacre e carimbo, mostrando uma terceira forma nascida da fusão entre o corpo feminino, o belo e o sagrado – signos constantes no trabalho da artista. Nascimento de Vênus, alumínio, 200 x 150 cm. Exposição na Ilha de Caras, 2000. 19 C ONTANDO A ARTE DE “A pérola fascina a mulher e os homens se utilizam delas como armas de conquista”. Astorga, técnica mista, 42 x 49 cm, 1993. Exposição Caminho de Santiago, Casa de Espanha-RJ. O Carregador de Pérolas, tecido, 450 x 100 cm. Centro Cultural Hélio Oiticica, 1999. Estella, técnica mista, 42 x 49 cm, 1997. Exposição Caminho de Santiago. 20 Na mesma época, no Centro Cultural Hélio Oiticica, uma outra proposta sobre o feminino, com a instalação de O Carregador de Pérolas, montada como um jardim japonês, com enormes sacos de filó bordados pendendo do teto, num formato de grandes ventres prenhes de pérolas e areia, dentro de um ambiente escuro, atravessado apenas por uma luz verde. A obra trazia representados os principais signos femininos – a vida, a fertilidade e o mar, que “põe seus ovos na areia da praia” – reflete a artista mais sensorial do que intelectual. CHRISTINA OITICICA Reconhecimento internacional No decorrer de sua carreira, Christina tornou-se mestra na arte de fazer sentir o que se vê em suas pinturas, construindo ambientes nos quais mergulhamos como que em viagens submarinas. A Casa do Tempo não foge a essa regra. Ela nos leva pela mão em sua peregrinação, dessa vez ao útero, à casa primordial. Para criar essa atmosfera, faz uma minuciosa montagem de pequenas peças – pérolas, conchas marinhas, crucifixos, areia, veladura, círculos, portais – que, no seu conjunto, exploram diversos elementos iconográficos. O público passava pelo interior de uma instalação estreita chamada Chuva Negra e dá início à viagem, que, segundo a artista, é o caminho do nascimento. A Casa do Tempo, técnica mista, 100 x 150 cm. Exposição Nascimento de Vênus realizado em fevereiro de 2001. 21 C ONTANDO A ARTE DE Inspirada no quadro Nascita di Venere (Nascimento de Vênus), do pintor italiano Sandro Botticelli (14451510), que representa o nascimento da mulher (Vênus) de dentro da concha. Ela buscou usar todos os significantes que essa imagem evoca: o berço das pérolas; o útero do qual sai Vênus – a concha; o feminino, como símbolo da maternidade e do amor voluptuoso. Exposição A Casa do Tempo, outubro de 2000. Detalhe da Exposição Nascimento de Vênus, em 2001. BOTICELLI Célebre pintor Renascentista Italiano, do final do século XIV. Ficou famoso por seus retratos e foi patrocinado pela família Médici, que dominava Florença na época. Foi convidado a pintar Capela Sistina, no Vaticano. Uma de suas obras mais conhecidas, até os dias de hoje, é “O Nascimento de Vênus”, onde observamos Afrodite saindo de uma concha. Um resgate da mitologia grega. 22 Como dizia Picasso: “Uma obra de arte deve levar um homem a reagir, sentir sua força, começar a criar também, mesmo que só na imaginação. Ele tem de ser agarrado pelo pescoço e sacudido; é preciso torná-lo consciente do mundo em que vive e, para isso, primeiro ele precisa ser arrancado deste mundo”. Nesse aspecto, foi exímia sua exposição com 13 obras, três portais, dois objetos (canaletas com pérolas), em suas duas instalações. A exposição estreou em Paris, a convite do Centro Cultural Brésil France de la Chapelle de l’Humanité, depois veio para o Brasil, onde esteve no Museu Histórico Nacional. A essa altura, a artista já tinha caído no gosto da imprensa, que alardeava seu sucesso nos principais jornais e revistas. CHRISTINA OITICICA Recolhendo os caminhos percorridos A partir desse começo, o mercado internacional abre suas portas e a próxima parada seria Berlim e Bélgica com a exposição Percorridos e Recolhidos (Parcours Récoletes). O desafio: contar através de imagens os caminhos que ela havia percorrido. Inspirada em cartões de viagem, cartões-postais, cartões de crédito, de telefone, de embarque, tarjetas telefônicas, chaves de quartos de hotel pelo mundo afora, cartões de visita, cartões de embarque... enfim, impressões e recordações dos lugares por onde passou. Um garimpo de suas vivências que seu olhar carioca, sensual e tropical levaria às telas uma explosão de bocas carnudas, flores loucas, corações, cores fortes em tons de vermelho e ritmos quentes; comunicando vozes, emoções divididas, saudades amenizadas e um carnaval de imagens sagradas e profanas. As obras – tanto as em óleo sobre tela como as com técnicas mistas em almofadas e objetos – têm títulos que ressaltam essa mélange de emoções e culturas: “Chuvas de rosas”, “coração de cor”, “boca de jaspe com cordão cromado e pérolas”... Boca 200, técnica mista, 90 x 120 cm. Museu Nacional de Belas Artes-RJ, 2001. Coração de Maria, técnica mista, 70 x 70 cm. Exposição Caminhos Recolhidos. Museu Nacional de Belas Artes-RJ, 2001. Coração de flores, técnica mista, 90 x 120 cm, 2001. Galeria Debret, Paris. 23 C ONTANDO A ARTE DE Boca, técnica mista, 90 x 120 cm. Exposição Caminhos Recolhidos. Museu Nacional de Belas Artes-RJ, 2001. Algumas telas traziam textos de Paulo Coelho em várias línguas; do chinês ao persa, do espanhol ao português. Mais uma vez, marido e mulher tornavam-se parceiros na arte. Ela propõe uma nova maneira de mostrar o sacro na arte, marca registrada da artista.Nas suas cores evocativas da paixão, da sensualidade e do amor se misturam a temas religiosos. Como no quadro Chuva de Rosas, que nos remete à chuva que caiu sobre o convento quando Santa Terezinha do Menino Jesus faleceu. “Christina não mostra somente uma tela” – explica seu marido escritor, “ela mostra um pedaço de cada uma de nossas vidas, utilizando suas cores e sua alma. Ela exprime com suas cores o encantamento engendrado em cada um de nós pelo gosto da vida”. Exposição Parcours Récoletes, novembro de 2001. 24 CHRISTINA OITICICA Desafios Os Quatro tempos. Trabalho feito com o elemento fogo para o Festival de Arte Contemporânea Linf ’action no sul da França. A reflexão que a obra de Christina nos propõe, quando se comunica diretamente com o público por meio de signos e símbolos conhecidos, é a de um movimento que recusa a separação arte/vida. Seus quadros criam possibilidades óticas e dão ao espectador ativo um estímulo para fazer uma peregrinação sensitiva e espiritual pelas diferentes camadas do universo da artista, seja nas galerias ou nas performances de que participa. Em 2010, em St. Moritz. 25 C ONTANDO A ARTE DE Christina deixa a água do mar interferir em Sète, no popular Festival de Arte Contemporânea Linf ’action. “Hoje em dia, sou uma artista inquieta. Trabalho com todos os materiais e linguagens. O que me dá mais prazer é trabalhar com o novo.” Em St. Moritz, 2010. Performances de Christina pela Europa. 26 A expressão máxima da arte contemporânea é a de carregar sua arte dentro de si, é a possibilidade de integrar-se e entregar-se. Assistir a Christina em performances pela Europa é constatar esse efeito, seja em Sète, no popular Festival de Arte Contemporânea Linf’action, em que a artista trabalhou numa praia, deixando a água do mar e o fogo de velas se misturarem ao seu trabalho; ou em St. Moritz, em 2010, quando enterrou uma série de telas, diante do público e de outros artistas, no alto de uma montanha. CHRISTINA OITICICA Boca, técnica mista sobre tela, 30 x 30 cm, 2004. A obra faz parte da Coleção Amazônia. Um dos manequins apresentados na Galerie Lafayette, em Paris. O amor pelo trabalho tem tornado sua arte contagiante e inovadora e o reconhecimento trouxe a possibilidade de expor em diversos museus e galerias da Europa. Tais como, o famoso Museu do Louvre; a mostra em homenagem à América Latina, na Galerie Lafayette, em Paris, na qual recebia manequins para transformar em obra de arte; também na Suécia, onde a coleção “Amazônia” foi mostrada em conjunto, no centenário Hotel Diplomat, em Estocolmo, com o apoio da Casa Brasil e do Jornal do Brasil. O hotel, localizado numa das mais valorizadas ruas da Escandinávia, a Strandvägän, é conhecido por ter recebido grandes personalidades da cultura, como o bailarino Rudolf Nureyev e o papa da pop art, Andy Warhol. 27 C ONTANDO A ARTE DE Coelho, especialmente para este livro, ganharam ilustrações de Christina (40 pranchas feitas artesanalmente em serigrafia, com seleção de cores manual pelo processo de cromolitografia), em uma tiragem comercial de pouquíssimos exemplares, o qual Paulo Coelho numerou e assinou cada volume. O lançamento e a exposição foram realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, na Loja Louis Vuitton, que desenvolveu e criou na França uma pasta de couro natural para guardar as pranchas. Chistina e Guilherme na Lithos. A ilustradora O primeiro livro ilustrado por Christina foi com o marido, para a Shogun, em uma história de amor, O que é o amor, de 1975. A parceria se repetiu em 2001, no primeiro livro infantil de Paulo Coelho, Histórias para pais, filhos e netos, que traz 40 ilustrações feitas com técnica mista em aquarela, nanquim e colagem, editado pela Editora Globo. No ano de 2005, ilustrou o livro Caminhos revividos, uma obra de arte para colecionadores, no qual 40 fac-símiles de textos manuscritos por Paulo 28 Lançamento do livro Caminhos revividos. CHRISTINA OITICICA Uma das páginas do livro infantil A nuvem e a duna, criado e ilustrado por Christina Oiticica. O livro foi inspirado em um conto tradicional espanhol adaptado por Paulo Coelho. O lançamento em 2010 foi realizado pela Editora Noovha América. Christina ilustrou o livro Léo no mundo do espelho, da autora Patrícia Carneiro De Luna, lançado pela Editora Réptil, em 2007. Christina fez ainda ilustrações para a Revista Ventura, a capa do livro Decor, a edição francesa do Diário de um mago (Le Pèlerin de Compostelle), sem falar que os anjos da artista ganharam as páginas da agenda anual de Paulo Coelho para a Editora Tilibra e ilustraram o livro Os anjos estão de volta. A sensibilidade e a beleza de seus traços ganharam asas e voou sozinha pela literatura, e a autora ilustrou mais dois livros – Léo no mundo do espelho e A nuvem e a duna. Nos últimos anos, dois livros foram editados sobre seu trabalho: As quatro estações e Caminho peregrino. 29 C ONTANDO A ARTE DE O admirável mundo novo da arte ambiental Em 2001, Christina mudou-se para um hotel de duas estrelas, em Tarbes, França, o Henry IV, onde começou a passar cinco meses do ano. Seria impossível trabalhar no quarto, pois o espaço que dividia com o marido não lhe permitia instalar cavalete, telas, pincéis... Tendo de inaugurar uma exposição em Paris, em curto espaço de tempo, decidiu ir ao campo trabalhar. Produtos Há algum tempo, seu trabalho já saiu das paredes de exposições e galerias e invadiu lojas e vitrines. A grife Folic, usou algumas imagens de Christina para compor a vitrine e estampar camisetas. Uma série de produtos, como caixas, portacopos, jogos americanos, foi desenvolvida e distribuída em diversas lojas e papelarias, transformando em símbolos conhecidos as imagens marcantes de sua obra, como as bocas e os corações. A artista também fez algumas joias de suas esculturas que viraram pingentes de colares. Christina mostrou seu talento como designer ao desenvolver o já conhecido símbolo do guerreiro da luz, marca registrada da página de Paulo Coelho, símbolo que caiu no gosto popular e se espalhou pela Internet, bem como em joias e tatuagens de fãs. 30 A Rosa, acrílica sobre tela, 83 x 76 cm, 2002. CHRISTINA OITICICA reza. Dessa forma, ela resgata um processo ancestral – o de interagir com a natureza e perceber sua ação, sua força, seu movimento. A cada tela revela de forma concreta que não somos parte da natureza, mas, como dizia o alquimista Paracelso, somos a natureza. A arte refaz um elo perdido – criando uma linguagem por meio das telas, pelas quais a natureza se comunica. La Roche-sur-Foron, 2010. Na primeira tentativa, caiu-lhe uma folha sobre a tela, borrando a pintura, no começo ficou incomodada, mas observando o efeito da folha na tela foi da irritação à inovação e percebeu que a natureza era perfeita para complementar seu trabalho. A experiência foi tão satisfatória que não parou mais e passou a deixar seu trabalho nos leitos dos rios, nos campos, nas florestas, nas árvores, sob pedras, nas diferentes estações. Como disse a própria artista, citando Ortega e Garcez: “Eu sou eu e a minha circunstância”. Vivendo na Europa, fazem parte de suas circunstâncias quatro estações bem definidas. Notou que essas mudanças afetavam suas emoções. E a arte, para Christina, é emoção. Nesse momento ela ganhou mais um colaborador – as mudanças das estações. Para a artista, esse trabalho é uma desconstrução, um movimento inverso ao da humanidade que sai da caverna ou do campo e na busca por sustento e desenvolvimento, perde contato com a natu- “Nós humanos lidamos com o espaço. Podemos nos locomover, somos livres no espaço. O vegetal lida com o tempo, ele tem uma existência muito maior. Ele é livre no tempo. É capaz de parar a germinação da semente, como numa gravidez interrompida, para germinar num momento propício”. Rosa Azul. O quadro ficou quatro meses dentro de um rio em frente a uma fonte, La Bénite Fontaine. A 1,5 quilômetro da La Roche-sur-Foron, localizado nos Alpes Franceses na região do Haute-Savoire, 2010. 31 C ONTANDO A ARTE DE Galeria de águas pluviais da Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2004. Ao desenvolver sua técnica, Christina percebeu uma comunicação, na qual a tela era a linguagem. Por exemplo, enterrava um quadro em um rio seco e meses depois assistia ao rio voltar a correr. Muitos foram os fenômenos em seu trajeto; um dia, saindo da Floresta de Azereix, avistou um tanque de guerra e descobriu que o local é uma Zona Militar. Ela e Paulo costumavam praticar arco e flecha ali, porque as grandes árvores do lugar os protegiam do Sol e da chuva. Escolheram este lugar para enterrar um quadro muito delicado que representa a medalha milagrosa com rosas. Quando voltou para desenterrá-lo, ele não estava mais lá. Em vez dele, haviam muitas pétalas de rosa e um desenho. Ela testa a comunicação com a natureza e com tudo que cerca o seu ambiente, seja o elemento humano ou natural, a cada plantar e desenterrar, sempre buscando captar o elemento físico tanto quanto o energético, a marca viva da natureza em movimento. 32 Acima de tudo, esse é um momento de maturidade da artista. Quando todos os elementos de sua obra confluem para brotar das telas: o feminino em seus símbolos de nutrição, vida, fecundidade, maternidade; a peregrinação que leva a artista a viajar e a escolher diferentes locais para enterrar sua obra; a espiritualidade, pois ela tem na sua relação com o sagrado um fio condutor do seu trabalho; sua devoção a Nossa Senhora, também personificada na terra, a força em essência da Grande Mãe, da Imaculada Conceição, energia criadora da vida, que na concepção da artista germina o quadro em seu útero – o fundo da terra – como semente, que, ao fim de um tempo dará frutos, sempre cumprindo o período da gestação. Ao buscar por locais para as suas obras, busca sinais, que os olhos precisam descobrir para achar o caminho, tenta decifrar cores e códigos em cada lugar que escolhe para deixar um quadro. Assim, os locais não são aleatórios; ao contrário, passam a ser um elemento de sua busca pessoal e, sem pretender explicá-los, desenvolve um trabalho que mostra os mundos paralelos dos homens. Assim se iniciava um novo ciclo do trabalho da artista, que seguiu enterrando quadros a cada estação e os desenterrando sempre com uma surpresa. Com a ação da impressão invisível da natureza ela criou uma arte original e literalmente inimitável, porque, em cada caso, o movimento das águas, a ação dos ventos, as marcas das pedras, o magnetismo da Lua, a força telúrica, a vitalidade do Sol, o silêncio causado pelo impacto da luz e das sombras – matéria-prima da vida, interagem de forma única sobre as telas. CHRISTINA OITICICA Christina na Amazônia, 2004. A arte desentranhada Para entender essa artista, é preciso compreender o sentido da palavra inquieta. Inquietude é tipo bicho-carpinteiro que não deixa a gente se acostumar, ou como explica melhor Marina Colassanti: “(...) A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.(...)”. Christina é o oposto disso, ela quer correr o mundo, correr perigo, experimentar o novo, por isso não podia parar sua experiência só nos Pirineus. Queria mais, queria encontrar a magia da floresta concentrada e não era só a parte estética dela que a interessava, mas a parte invisível que para ela é a ação da Grande Mãe. Ficava claro que sua próxima parada deveria ser a grandiosa Floresta Amazônica. A emoção da artista ao adentrar a floresta pode ser observada nesse depoimento: “Estou aqui na margem do Rio Negro. Hoje é dia 10 de abril de 2004. O que eu senti quando entrei na Amazônia, na floresta, é que a floresta é impenetrável. Ela é muito concentrada, tanto visualmente como auditivamente, está viva. Muito viva. Você tem que realmente ter uma permissão, não só física, como uma foice na mão ou uma faca que vai cortando”. Seu primeiro contato foi em Bethânia, um local onde a floresta não é muito densa. Ela levou para lá o calor de bocas vermelhas pintadas e as enterrou cobertas de folhas para observar sua ação nas telas. Um ano depois voltou aflita, para desenterrar as obras, pois havia tido um sonho premonitório no qual as estátuas que pairam sobre cercadinhos e pilares, em Bethânia, estavam decapitadas. As índias Katukinas, fazendo interferência nos quadros. Amazônia, 2004. 33 C ONTANDO A ARTE DE Na Amazônia, cidade Bethânia totalmente alagada, em 2005. Portal de Gaia. Quadro colocado em uma árvore. 34 Chegou à cidade com a água pelos joelhos e seu sonho se comprovara. Uma chuva intensa havia inundado o local e agora as estátuas observavam plácidas as águas tomarem o povoado cerca adentro. Christina teve a ajuda de alguns guias que, cuidadosos, separaram raízes e barro das telas. Sua aventura continuou descendo o Rio Japiim num barco a motor. Ela se torna parte da floresta, como um pássaro que procura um local para pousar, e observa uma árvore cheia de galhos que desciam como braços até o rio, enlaçando-se e formando protuberâncias, nas quais havia ninhos que lembravam seios. Esse seria o local ideal para posar o quadro O Nascimento de Vênus. Achar os quadros era uma tarefa difícil e a cada desenterrar ouvia-se a comemoração com palmas e congratulações. A pintora vai interpretando os sinais do ambiente, ao, encontrar só a moldura de um dos quadros, entende que a floresta queria ficar com a obra e assim vai estabelecendo uma conversa com os rios e matas. A equipe seguiu pelo Rio Moa e adentrou o território dos Katukina. Lá, assistiram ao pajé fazer curas, participaram dos ritos da tribo e a pintora convidou as índias, que se dedicam à arte tribal, a pintarem sobre suas telas. Os símbolos indígenas são geométricos, semelhantes às pinturas que fazem em seus corpos com urucum e têm diversos significados relativos à vida da selva. O resultado nas telas foi inovador. CHRISTINA OITICICA Arte desenterrada – Parindo quadros Ao desenvolver a técnica de pintar com a natureza, Christina teve que lidar, também, com o desenterrar dos quadros e criar uma forma de tratar as obras. Após muitas obras desenterradas, percebeu que a natureza, como o próprio ser humano, age de forma diferente em cada lugar. Mas uma característica é comum em todos os lugares em que já trabalhou: a natureza sempre deixa sua impressão digital na obra. Às vezes, as raízes adentram a tela como veias e fazem um lindo percurso, uma espécie de costura. A textura é sempre diferente e varia conforme o tipo de solo e umidade. Às vezes, a tela desaparece ou se desintegra. Os animais também participam, pequenos bichinhos se grudam em alguns lugares. Na Amazônia, onde ficaram enterrados por um ano, os trabalhos vieram impregnados de elementos, como raízes, bichos que comeram as telas e ainda a coloração que mudou totalmente. Em compensação, quando deixou os trabalhos no alto de uma montanha, como em St. Moritz, na Suíça, os quadros quase não tiveram interferência, as cores foram totalmente preservadas, apesar do Sol, da chuva e da neve que o solo recebeu durante um ano. Isso se explica pelo ar rarefeito e a pouca vegetação do local. Enquanto que no Caminho de Santiago, a diferença foi grande de uma região para outra. No ato de desenterrar, Christina iguala-se a uma parteira que tira do ventre algo novo e precisa limpar Quadro Girassol desenterrado no Japão em 2009. o rebento com delicadeza. Deixa as telas suspensas no ambiente natural sem que ela própria tenha que remover os vestígios, mantendo no quadro a reação que a terra causou. Depois usa o verniz para impermeabilizá-los e conservá-los. Encontrar as pinturas também se revelou uma aventura em que a memória e os sentidos funcionavam melhor do que o GPS. 35 C ONTANDO A ARTE DE As Quatro Estações, acrílica sobre tela, 180 x 10 cm, 2004. Durante uma de suas incursões para pintar numa floresta dos Pirineus, resolveu marcar uma árvore com um spray que tinha no carro, mas, oito meses depois, a marca havia desaparecido e a árvore também parecia não estar mais lá... Ela olhava a paisagem, cavava aqui e ali e nada, até que num passe de mágica, encontrou a árvore totalmente transformada, muito diferente das fotos que havia tirado para lembrar do lugar. Durante esse primeiro trabalho com a natureza, a preocupação era enorme, porque alguns trabalhos se perdiam e outros ela não conseguia restaurar. Felizmente, as perdas se mostraram poucas. Porém, nem sempre foi fácil. Logo que começou esse trabalho, perdeu muitas noites de sono sem saber se conseguiria recuperar os quadros para fazer uma exposição, mas, ao desenvolver essa técnica, aprendeu também a lidar com o tempo e a manejar incertezas. Foi um aprendizado de paciência, esperar o tempo de deixar a natureza interferir e aguardar os 36 resultados. Afinal, a natureza mostra que “há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de colher a planta. Tempo de matar e tempo de sarar; tempo de destruir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de rir (...)”. A cada desenterrar, um momento de comunhão com a terra e num processo ritualístico. Desenterra seus quadros buscando esvaziar a mente, concentrase e entrega-se ao processo como num êxtase mágico: quando nos desligamos dos nossos desejos e de nossas expectativas imediatas, conectamos com o mais profundo em nós, penetramos no universo dos sonhos. Um espaço mágico no qual não existem impossibilidades. Lá, a artista se desprende de tudo, se comunica com seu anjo da guarda e planta, depois desenterra um pouco de si a cada quadro. Boca, técnica mista sobre tela, 30 x 30 cm, 2003. CHRISTINA OITICICA Ao passarem pela cidade de Carcassonne, no trajeto de Tarbes a Barcelona, pensavam juntos em qual seria o lugar ideal para deixar seu trabalho. “Mais ao Sul, já antevíamos, a distância, a grande cadeia de rochas dos Pirineus. A luz do dia parecia embaçar os contornos das maiores pedras e, num piscar de olhos, me transportei para um estranho caminho escondido no outro lado da fronteira. A brisa quente levou-me de volta à estrada empoeirada que os peregrinos tomam para seguir até Santiago de Compostela. Uma luz me iluminou e eu não poderia deixar de pensar em como aquilo era óbvio! Christina, numa outra peregrinação até Santiago, mas agora com suas telas – contou ele” (Paulo Coelho). Puente La Reina, em novembro de 2007. Revisitando o Caminho – A rota do grande encontro Durante o período de dois anos, de maio 2007 a maio 2009, Christina Oiticica expôs telas compostas, em parceria com a natureza, na Galeria do Relais & Châteaux El Peregrino, em Puente la Reina, etapa do Caminho de Santiago. Mas tudo começara no verão de 2006, enquanto viajava de carro com seu marido, de volta para sua casa nos Pirineus, um velho moinho que haviam reformado e onde já moravam desde 2005. Exposição Santiago, maio de 2009. 37 C ONTANDO A ARTE DE Fotos do local chamado “mão que toca o céu”. Christina também foi transportada em sua memória para o Caminho que havia mudado sua vida em 1990, quando decidira finalmente iniciar-se como pintora. Era um caminho sagrado para ambos e, mais uma vez, Christina aceitava seu chamado, como quem segue uma estrela guia. Assim, em setembro de 2006 voltava ao Caminho, 16 anos após a primeira peregrinação, levando suas telas à sua fonte de nascimento, esperando apreender nelas a energia das pedras pisadas por séculos, marcadas pela fé de peregrinos desconhecidos e ilustres como São Francisco, os reis da Espanha e até mesmo El Cid. A artista usou diferentes materiais, como carimbos feitos do solo ou do miolo de girassóis, as conchas (símbolo de Santiago), o relevo das pedras,a intervenção dos quatro elementos e pigmentos naturais. Também esperava captar um elemento invisível – as histórias e as vivências dos peregrinos, suas ilusões, seus sonhos e suas esperanças de 500 anos de peregrinação. 38 Sendo assim, em setembro de 2006 chegou a Saint Jean de Pied Port, levando na mochila a mesma substância que carregara em sua primeira peregrinação – seu sonho, sua lenda pessoal. Para ajudar nessa tarefa, contava com os amigos Acácio e Orietta, hospitaleiros do caminho. Não apenas porque precisava de ajuda para enterrar os quadros, mas porque suas histórias e o conhecimento do caminho poderiam ajudar no processo artístico. Também Paula, sua sobrinha, se uniu ao grupo nessa nova jornada. Uma vez compostas, as telas foram “plantadas” na terra para serem recuperadas meses depois. A escolha dos locais e das telas não foi aleatória: selecionou algumas pinturas feitas com as índias na Amazônia, porque assim levaria um pouco do Brasil para Santiago; levou corações e bocas pintados para a exposição Caminhos Recolhidos, porque eles já haviam beijado outros continentes e agora beijariam o solo no local chamado “mão que toca o céu”, o alto de uma sinuosa montanha. Lá chegando, encontrou um sinal – uma Nossa Senhora com Jesus no colo. A Virgem que para Christina era um sinal de que a energia criadora estava ali sempre a lhe guiar. L E N D A P E S S OA L Conceito elaborado pelo autor Paulo Coelho e muito usado por Christina no direcionamento de suas escolhas”. A lenda pessoal é aquilo que você sempre desejou fazer (...) porque existe uma grande verdade neste planeta: seja você quem for, quando quer com vontade alguma coisa, é porque este desejo nasceu na alma do Universo. É sua missão na Terra. Paulo Coelho CHRISTINA OITICICA Devoção A devoção de Christina vem desde a infância quando pedia constantemente à babá que a levasse à missa. Uma afinidade inata com a religiosidade que ela mantém até hoje. Na obra de Christina é comum ver as exposições caírem em dias de santos e as referências religiosas são diversas. Não por acaso, a exposição Os Portais aconteceu no Ano Santo – quando o dia de São Tiago (25 de julho) caía em um domingo. As orações escritas em suas telas também são uma constante, como a aliança celta (um símbolo de duas mãos segurando um coração que, quando colocada na posição correta significa que se é casado) pintada sobre a oração irlandesa da Legião de Maria. Chuva de Rosas, óleo sobre tela, 90 x 120 cm. Quadro em homenagem à Santa Teresinha. Galeria Debret, Paris, 2001. Em todos os livros de Christina há a frase: “Oh Maria, concebida sem pecado, rogai por nos que recorremos a Vós”. A artista carrega no pescoço imagens de todos os locais de peregrinação, as igrejas e sítios de aparição de Nossa Senhora que já visitou. Trata-se, por assim dizer, de uma devoção pessoal inseparável de sua forma de vivenciar a arte. Suas experimentações artísticas são guiadas pela fé de que a terra é a Grande Mãe, Nossa Senhora Imaculada Conceição, que a ilumina na criação. As manifestações religiosas e os fenômenos místicos em torno de Maria são constantes. Nos mais diferentes locais do planeta há aparições, mensagens e manifestações. Christina ao lado da Virgem dos Pirineus, em 2007. 39 C ONTANDO A ARTE DE Desde os primórdios, há registros artísticos das aparições de divindades femininas. Ao longo de sua carreira, Christina vem trabalhando com os diversos arquétipos do feminino, em seu aspecto religioso e profano. A sensitividade de sua devoção pessoal se expressa de forma poética em sua obra, que fecunda o ventre sagrado da Terra com Diário de Christina Oiticica sobre o trabalho As Quatro Estações. suas telas, frutos de sua alma, e espera que elas recebam as bênçãos dos céus. Tamanho fervor tem sua devoção que todo o trabalho da artista plástica é dedicado a Notre Dame de Pietá, da cidade de Barbazan-Debat. A santa, considerada milagrosa nos Pirineus, foi encontrada dentro da terra por um agricultor. ANO SANTO Comunhão, técnica mista sobre tela, 119 x 83 cm, 2003. 40 Na época medieval a Igreja concedia indulgências, isto é perdão dos pecados, em algumas situações. Recebiam o perdão, por exemplo, os fiéis que peregrinavam a um santuário (a pé ou a cavalo) para cultuar as relíquias de um santo. O papa Calixto II concedeu à Catedral de Santiago o privilégio do Jubileu Pleníssimo ou Ano Jubilar, mais conhecido como Ano Santo. Isto significa que o peregrino que caminhar a Santiago durante um ano decretado como Ano Santo terá seus pecados perdoados. Até os dias de hoje há esta prática na cidade. CHRISTINA OITICICA Paulo Coelho em La Roche-sur-Foron, nos Alpes Franceses, em 2010. Casamento Para entender a importância do casamento na vida e na obra de Christina, é importante revisitar todos os caminhos a que foi sendo levada por estar casada e como esses caminhos influenciaram suas obras: Santiago, a mudança para Europa, as diversas viagens acompanhando o autor. Mas, mais do que isso, esse amor é um amor de alma, um encontro desses que se explicam nas Escrituras, em que um vive pelo outro e os dois se somam a cada dia em tudo o que fazem, ou, como diz a poeta Adélia Prado, trata-se de um amor feinho: “Amor feinho é bom porque não fica velho. Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é: eu sou homem, você é mulher. Amor feinho não tem ilusão, o que ele tem é esperança.” Adélia Prado Nesses anos juntos, Paulo influenciou não só na obra da esposa, mais muitos de seus escritos estão nas suas telas e as ilustrações dela em alguns de seus livros. Como podemos constatar na carta que o autor postou em 2010, em seu blog, sobre a esposa, contando sobre sua mudança para a Europa e também declarando seu amor. 41 C ONTANDO A ARTE DE Contos e lendas do Caminho Sua arte é uma contação de história com tinta e tela. Cada encontro no Caminho, cada história faz parte do processo, assim como os locais escolhidos. Diz uma lenda que no Alto do Perdão o demônio tentava os peregrinos oferecendo água para que parassem de andar e desistissem de sua fé. Ali, ela plantou quadros d’água, inspirados numa série que ficara Desenterrando quadros em Puente La Reina, Espanha, em maio de 2008. 42 na Gave de Pau, um rio sagrado que passa em frente a Lourdes (lugar de aparição de Nossa Senhora, na França). Depositou-os onde corre a água da fonte. Assim que acabou de plantá-los, nuvens pesadas desabaram dos céus, trovões e relâmpagos invadiram a paisagem e, como num ritual, os elementos interagiram causando uma transformação. Em outro momento foi a Foncebadón, em um lindo restaurante medieval. Henrique, o proprietário, contou que as pessoas passavam por lá dizendo que ele estava realizando a profecia do Paulo Coelho. Confuso, comprou o Diário de um mago e descobriu que o escritor havia previsto que aquele local destruído seria um dia reerguido e o povoado em ruínas ressurgiria das cinzas. Sua arte de encontros que tece imagens com a vida tinha encontrado mais um lugar significativo do caminho para uma cerimônia com as telas. Porém, ainda faltava um elemento para enterrar o quadro – Tomás, o peixeiro. Há anos ele recebera uma ordem de viver o Caminho. Naquela época do ano, a neve chegara até ao alto de sua porta e ele recebeu os peregrinos com café quente e histórias. Conversando com ele, Christina decidiu colocar o quadro em frente à cruz de ferro, local onde todo peregrino deve deixar uma pedra. Era chegada a hora de enterrar os quatro quadros que pintara. Com galhos,Tomás fez um grande coração na terra, no lugar onde seriam enterrados. Ele veio preparado para um ritual templário e com sua espada conduziu essa etapa do processo invocando os arcanjos. CHRISTINA OITICICA Como todo agricultor, Christina sabe que pode perder uma safra, convive com as intempéries da natureza e das pegadas deixadas pelo convívio humano, por isso entende quando perde quadros para a terra, a neve, a água e até o furto. Muitos são os personagens de sua jornada pelo Caminho. Um dos mais inusitados é o alquimista, que mora onde dizem haver visitas de discos voadores. Ele tritura pedras de todas as partes do mundo. Reza a lenda local que foram os alienígenas que lhe ensinaram sua técnica. As cores eram lindas e Christina ganhou algumas para usar nos quadros. Chegando a noite, no hotel, não conseguia dormir apesar do cansaço. Olhou o relógio e viu que eram cinco da manhã, teve a impressão intuitiva de que não tinha autorização de usar as pedras e as devolveu para a terra. Em sua arte contadora, segue a peregrina, porque sua obra é sobre tudo o que lhe acontece; um partilhar de sua visão do Caminho, sua história sobre tantas histórias, e a forma como a reconta em Cruz de ferro ritual templário, julho de 2007. Pedras do Alquimista. telas. Não é à toa que o local escolhido para a exposição foi Puente la Reina, a região onde todos os caminhos para Santiago se encontram. Aquele era o momento em que todas as histórias da sua vida se encontravam e ela estava pronta para mostrar aos peregrinos um outro caminho, marcado por seus passos e suas memórias. Uma história 43 C ONTANDO A ARTE DE Christina pintando a tela Eunate na Espanha, em fevereiro de 2007. interessante ilustra isso: Em sua ida para a Igreja Templária de Eunate ela vê uma mulher que dança como os dervixes, com uma das mãos apontadas para cima e a outra para baixo na direção da terra, representando a aliança entre o céu e a terra, o masculino e o feminino. Ao perceber essa associação, sente que o local a autorizou a pintar. Pega uma grande tela, tira a medida do portal norte e começa a pintar. Nesse momento à porta de entrada da Capela aparece a mulher que dançava e pergunta o que ela está fazendo. Christina responde: “Trabalhando com a energia da grande mãe, da natureza”. 44 Seu diálogo com a Capela deixa marcas, faz impressões das pedras do chão como se fossem carimbos, passa pelos portais das quatro direções, trabalhando com os materiais que encontra: o forte vento do portal sul, as linhas verticais que descobriu no solo, pequenas pedras,a terra do local. Por fim, deixou o trabalho lá por uma noite para que pegasse a energia do local. Ao terminar, entrou na Igreja, onde as pessoas rezavam a missa no Dia da Luz que Veio ao Mundo. Christina também trabalha com a ausência, ou como diria o escritor francês, André Gide: “A arte é uma colaboração entre Deus e o artista, e quanto menor a intervenção do artista melhor”. Experimentar a menor intervenção é o que faz no claustro emblemático da Faculdade de Geografia e História, quando decide enterrar uma placa de cobre em branco para que as formas do passado penetrem no suporte, imaginando quantas histórias haviam passado por lá. Escolhe o cobre, pois há séculos os alquimistas o usaram como símbolo feminino que representa o Planeta Vênus, a deusa grega Afrodite e o gênero feminino. Ao chegar a Santiago, sua peregrinação estava completa. Mas, ainda estava inquieta, intuía que o processo não tinha terminado. Ocorreu-lhe, então, que ainda faltava um importante local – Villafranca del Bierzo, onde fica a Igreja de Santiago. Christina contou com a ajuda de mais um personagem do Caminho, Jato. Além de ser um hospedeiro, ele é conhecido por curar as pessoas pela imposição de suas mãos. Chegaram ao local escolhido no fim da tarde e Jato começou a escolher onde iriam enterrar a tela com uma varinha mágica. CHRISTINA OITICICA Coração Cebreiro, técnica mista, 108 x 144 cm, 2007. Caminhava lentamente, esperando que ela se movesse para cima, indicando o melhor local. Fez isso andando em várias direções, até que achou. Separou a terra das pedras até a terra mais fina e, no veio de água que vinha do altar da Igreja de Santiago, colocaram um coração de rosas vermelhas com pigmento dourado. O trabalho de Christina prescinde de dogmas, explicações, regras... Ela busca se relacionar e se comunicar com o poder que a natureza e o inexplicável exercem sobre nós, silenciosamente, por meio da pintura e se conectando à fonte – a sabedoria ancestral acumulada pela longevidade das pedras, dos rios e das árvores, das pessoas. Esse é um pensamento comum em várias culturas. Os índios na Amazônia e os caboclos afirmam que a floresta é uma universidade porque são capazes de aprender muito com seu convívio. A arte de Christina não é apenas um novo método de pintar, mas uma vivência, uma proposta de aprendizado, uma linguagem. Durante muito tempo e ainda hoje em muitos lugares, como no interior do Brasil, as tradições orais (poetas populares, cavalo-marinho, autos e folguedos populares do Nordeste brasileiro, bumba-meu-boi e outros) foram passadas de pai para filho como forma de ensinar o que se aprende com a natureza e com o outro. Esse tipo de saber foi sendo desvalorizado à medida que o conhecimento foi se sistematizando na academia e outras formas de aprendizado se desenvolveram. Deixando para trás uma riquíssima forma de aprender e transmitir saber. Girassol de Boku, técnica mista sobre tela, 100 x 120 cm, 2009. 45 C ONTANDO A ARTE DE Na terra do Sol Nascente O local escolhido dessa vez eram as mágicas montanhas do Caminho de Kumano, no Japão. Um cenário composto por formações rochosas e impregnado por uma atmosfera mística. A flora, bastante diversificada, incluindo castanheiros, carvalhos, pinheiros e faias japonesas, era perfeita para Christina. Dois rios caudalosos carregam séculos de lendas dos peregrinos, ao longo de templos, pontos históricos, cachoeiras e termas, até desembocarem no mar de Kumano Nada, de onde se avista uma praia de areia branca, ilhas e penhascos rochosos. Os morros têm nomes que remetem à natureza, entre eles Hinodegatake (o Morro do Sol Nascente), ou o Monte Yoshino, ao norte, famoso por seus senbonzakura (mil pés de cerejeira), tidos como sagrados e, hoje, patrimônio da humanidade. Christina em Kumano, 2009. Kumano em 2009. 46 Após enterrar mais de cem quadros nos 800 quilômetros do Caminho de Santiago, o convite veio do próprio Departamento de Turismo de Santiago de Compostela, na Espanha, e da Prefeitura de Tanabe, no Japão, para que fizesse o mesmo no Caminho Sagrado de Kumano, onde por séculos os monges enterraram seus sutras. CHRISTINA OITICICA Usou o mesmo método de sempre para escolher os locais: seguir a intuição e se deixar levar pelas pessoas e histórias do caminho. Mas, segundo a artista, essa viagem foi tão intensa que voltou do Japão em estado de graça, trazendo lembranças que nunca mais esquecerá, como os ryokan, os banhos de águas quentes vindas de vulcões, a Cachoeira Nachi, com um arco-íris no final dela e muitas outras... Enterrando em Kumano, fevereiro de 2009. Christina levou oito telas prontas, inspiradas nos desenhos ancestrais do pintor Ito Jakuchù, e trabalhou com pigmentos naturais e vegetais dos locais onde iria enterrar os quadros, acrescentando ideogramas que foi aprendendo no decorrer da viagem. A homenagem a um pintor do século XVIII deve-se à identificação que sentiu com ele numa exposição em Paris, quando percebeu que ele não pintava apenas a natureza, mas a ação do tempo. Hiro (um dos templos mais famosos) próximo a Cachoeira de Nachi, com 133 metros de altura. 47 C ONTANDO A ARTE DE Contos e lendas de Kumano Lá estava Christina em plena cidade de Hogu vendo os homens beberem saquê e descerem uma inclinada montanha com tochas de fogo, onde estavam escritos os nomes das famílias e profissão. Um ritual de passagem em que o homem demonstra a sua coragem. Os bastões chocavam-se com tanta intensidade que muitos se machucavam, mas eram recebidos como heróis... Inebriada, assistiu ao efeito do fogo e das roupas brancas dançando montanha abaixo, ao som dos bastões que se batem produzindo um som belíssimo. Caminha na estrada até chegar a um templo xintoísta, no qual não existem imagens no altar. Mas, nesse templo existia uma janela da qual se via uma cachoeira gigantesca e sagrada descendo a colina. O monge a presenteou com um espelho, disse-lhe que todas as Cidade de Hongu, em 2009. 48 Christina em Boku. vezes que se olhasse estaria vendo o seu coração. Para ela, isso tinha um significado especial, porque acredita que esse é o caminho que se deve seguir. Diz-se que o coração é onde estão juntos o corpo, a alma e a mente, e aquele símbolo representava, a partir daquele momento, a visão desse local – sem saber, ele falava da sua busca, ser uma com seu coração. Cansada, parou para comer num restaurante orgânico, em Boku, onde havia uma horta feita por duas moças lavradoras e escolheu o local exato onde seriam plantados os rabanetes para transmitir a energia do seu trabalho na comida que iria nutrir muitas pessoas. Lá ela plantou um quadro de girassol, outro com hortênsias, e trabalhou mais dois com pigmentos e com a vegetação local. CHRISTINA OITICICA Num pequeno templo budista, ficou fascinada com a imagem de um homem e um bebê engatinhando. Entrou nesse templo seguindo a imagem e viu que havia vários brinquedos, balas e doces para os espíritos das crianças. Do nada, apareceu um monge muito velhinho que tentou comunicar-se com presentes. Deu-lhe primeiro um envelope, depois uma caixa e sorriu. Quando abriu, era um desenho do ano da vaca, e um pacotinho de bala feita de açúcar mascavo que é dada às crianças. No caminho também assistiu a praticantes de shugendo, uma tradição de mais de mil anos que não está registrada em livros, mas está aberta para quem quiser praticar os ritos, métodos e técnicas que eles consideram segredos mágicos e sagrados da Montanha Yamamushi (a Montanha do Guerreiro). Entre os exercícios estão balançar-se em precipícios, passar horas embaixo da água gelada até que ela limpe o corpo e a alma, caminhar sobre brasas, encostar a cabeça numa árvore até que a dor anestesie o corpo etc. Para os praticantes dessa arte, que poderia ser traduzida como o conhecimento obtido no caminho (S• Dô) de poderes divinos (–š Gen) com práticas disciplinares rígidas (îO Shu), essa seria uma forma de se tornar um com o Universo e a natureza que, por fim, também é o que Christina procura com sua arte. Kumano é uma espécie de península, cheia de colinas, florestas, vales, rios, desfiladeiros que seguem até o litoral, cercado por montes cobertos ora pela neve, ora por florestas primitivas, muitas vezes envolvidas por uma misteriosa neblina. Há também vales profundos, dos quais brotam termas e até uma floresta de musgos. Diz a lenda que parte do Caminho foi desbravada há mais de mil anos por um feiticeiro chamado Em-no-Ozunu. Hoje, situado ao sul da península de Kii, entre as províncias de Wakayama, Mie e Nara, o Caminho é considerado uma terra sagrada e um local onde várias religiões convivem pacificamente, principalmente o xintoísmo e o budismo. Miharashidai, em novembro de 2009. 49 C ONTANDO A ARTE DE Carta aberta à rosa dourada Estávamos no verão de 2002, eu já era um escritor conhecido, tinha dinheiro, julgava que meus valores básicos não haviam mudado, mas como ter absoluta certeza? Testando. Alugamos um pequeno quarto em um hotel de duas estrelas na França, onde começamos a passar cinco meses por ano. O armário não podia crescer, de modo que limitamos nossas roupas. Percorríamos as florestas, jantávamos fora, ficávamos horas conversando, íamos ao cinema todos os dias. A simplicidade nos confirmou que as coisas mais sofisticadas do mundo são justamente aquelas que estão ao alcance de todos. Para meu trabalho, tudo de que eu precisava era um computador portátil. Acontece que minha mulher é… pintora. E pintores precisam de gigantescos ateliês para produzir e guardar seus trabalhos. Não queria de maneira nenhuma que sacrificasse sua vocação por mim, de modo que me propus a alugar um local. Entretanto, olhando em volta, vendo as montanhas, os vales, os rios, os lagos, as florestas, ela pensou: por que não trabalho aqui? E por que não permito que a natureza trabalhe comigo? Daí nasceu a ideia de “armazenar” as telas ao ar livre. Eu levava o laptop e ficava escrevendo. Ela se ajoelhava na grama e pintava. Um ano depois, quando retiramos as primeiras telas, o resultado era original e magnífico. Vivemos naquele pequeno hotel dois anos inesquecíveis. Ela continuou a enterrar suas telas, já não mais por necessidade, e sim por ter descoberto uma nova técnica. Amazônia, Mumbai, Caminho de Santiago, Lubijana, Miami. Hoje está longe, mas amanhã, ou na semana que vem, estará perto de novo. Dormindo ao meu lado. Contente, porque seu trabalho começa a ser reconhecido no mundo inteiro. 50 CHRISTINA OITICICA Christina na Montanha Yamabushi, em 2009. 51 C ONTANDO A ARTE DE Eunate, técnica mista sobre tela, 140 x 540 cm, 2007. Portal de volta para o futuro A artista já expôs em mais de 60 galerias de 12 países – colaborou para o nascimento de uma nova escola de pintura, em parceria com a natureza. Tornou-se uma das precursoras da land art no mundo, já tem convites para continuar esse trabalho na Eslovênia e na China e pretende cumprir o propósito de espalhar quadros pelo mundo. Vem inovando em projetos como a exposição virtual Sinais em que fotografava as marcas deixadas por lenhadores na floresta e intervinha com suas pinturas por meio de computação gráfica. Contudo, não pretende parar por aí e promete permanecer na crista das inovações para o novo milênio. É muito interessante observar como a sua relação com o Caminho de Santiago e a sua vida na Europa abriu as portas de um mundo de possibilidades para a artista que, em 2010, estreou a exposição Os Portais, ao lado de Romero Brito e Paulo Coelho. Nessa exposição, suas pinturas são permeadas por textos de Paulo e intervenções de Romero Brito, representando os diversos portais do Caminho de Santiago – o da Glória, quando chegamos a Santiago; a 52 Porta Santa (que só é aberta no Ano Santo), na qual você fica livre de todos os seus pecados; o Portal do Perdão, em Villafranca del Bierzo; os cem portais de Eunate... São muitos e todos têm um significado. Os peregrinos acreditam também haver os portais que não vemos. Aliás, sua obra vai tratar também dos diversos portais da vida da artista, levando sempre um pouquinho de um lugar para outro; da Amazônia para Estocolomo; da França para a Espanha; das Índias para os europeus; do Brasil para o mundo; dos escritores para os pintores; dos peregrinos para as telas. Sua arte é feita de encontros com a natureza, com as pessoas e suas histórias. Por isso, na obra de Christina, a palavra “portal” não nos remete apenas ao significado da palavra – porta principal ou conjunto de portas; vai além e nos remete à ideia de atravessar um lugar antigo para um novo; travessia entre o que vemos e o que acreditamos; entre o antes e o depois. Assistir a Christina pintando é compreender isso: Nas areias da praia, com sua tela de dois metros, ela se prepara para começar sua performance. Quando pinta, deixa para trás os compromissos e as preocupações, larga tudo o que é estático e viaja... Avista um CHRISTINA OITICICA portal e atravessa para dentro, deixa as histórias do tempo se unirem às suas histórias e a envolverem como pele, vestindo sua alma. Quando ela pinta, abre o interior e as cores desabrocham como pétalas. Vem a água do mar, cobre a tela de conchas, Christina se transporta. As ondas a carregam, através do tempo, e ela avista marinheiros que temem encontrar sereias no escuro da noite. Então, olha o horizonte perdido e, com precaução, acende velas por eles. Deixa as salamandras, os seres míticos feitos de fogo, dançarem desenhando com cera na tela e se transporta aos palácios de outros tempos e quase pode escutar o chiado das saias que se arrastam nos bailes. Quando ela pinta, embarca na luz da cera até o Egito ou a Babilônia, continua e chega a um círculo de pedras druidas e encontra mulheres que dançam de mãos dadas e lhe entregam uma folha. Nesse momento, cai a chuva que traz do ar as folhas. Ela volta para a praia, com a tela coberta de estranhas folhagens, mistura-as com a tinta e, enquanto pinta, o braço da terra a abraça carinhosamente. De dentro de seu ventre, a pintura simplesmente vem e a leva de volta para casa, onde as areias da praia se transformam nas areias do tempo, que contam histórias perdidas, guardadas por séculos no sopro do vento, nas tumbas de faraós, nas pedras,... revelando os segredos de rainhas, a sabedoria de sacerdotisas, o canto de feiticeiras, a sensualidade das ciganas, a inocência dos índios... Mas ela não sabe de nada disso. Isso simplesmente acontece, e ela só sabe que quando pinta une as vozes do tempo e tudo o que importa é o agora. Cada quadro se torna uma rede que a prende até a última gota cair sobre a tela, e de- Viloria 1, técnica mista sobre tela, 40 x 50 cm, 2006. Viloria 2, técnica mista sobre tela, 40 x 50 cm, 2006. Viloria 3, técnica mista sobre tela, 40 x 50 cm, 2006. pois a solta para que outros possam se prender ali por alguns instantes. Quando pinta, ela mostra cada parte de sua história. Outras vezes, sua história desaparece, e ela é qualquer pessoa, é parte do vento, da água, da terra. Quando pinta, ela não tem idade, é a euforia de menina sem preocupações, é a donzela em sua sensualidade voluptuosa, é a anciã em sua sabedoria infinita. 53 C ONTANDO A ARTE DE CURRICULO DA ARTISTA 2011 2008 Caminhos do Sol Nascente e Poente – Fliporto – Olinda – Brasil XVI CIAB (Exposição Coletiva) – Museu Inmá de Paula – Belo Horizonte – Brasil XVI CIAB (Exposição Coletiva) – Casa do Brasil – Madrid – Espanha Caminhos do Sol Nascente e Poente – ONU – Nova Iorque – USA XVI CIAB (Exposição Coletiva) – Museu Montemor-o-Novo – Portugal Palavra e Imagem (Exposição Coletiva) – Centro Cultural dos Correios – Rio de Janeiro – Brasil XVI CIAB (Exposição Coletiva) – Lateinamérika Institut – Viena – Áustria Carnaval é Arte (Exposição Coletiva) – Salvador – Brasil Amazonia Exhibit – Britto Central Gallery – Miami – USA Salon de la Société Nationale des Beaux-Arts (Exposição Coletiva) – Carrousel du Louvre – Paris – França Camino Peregrino – Santiago’s Path – Château El Peregrino – Puente la Reina – Espanha Camino Peregrino – Santiago’s Path – Centro Cultural Caja España – Ponferrada – Espanha Camino Peregrino – Santiago’s Path – Centro Cultural Caja España – León – Espanha Camino Peregrino – Santiago’s Path – Centro Cultural Caja España – Astorga – Espanha Camino Peregrino – Santiago’s Path – Bembibre – Espanha Camino Peregrino – Santiago’s Path – Hospital de Órbigo – Espanha St. Moritz Art Maters Festival – St. Moritz – Suíça 2010 Ritmos e Cores do Brasil (Exposição Coletiva) – Casa do Brasil – Madrid – Espanha Os Portais – Parador dos Reis Católicos – Santiago de Compostela – Espanha A Nuvem e a Duna – Lançamento do livro infantil – São Paulo e Rio de Janeiro – Brasil Amazônia – Hotel Diplomat – Estocolmo – Suécia Kumano Kodo – Hongu Center – Tanabe – Japão 2009 Art en Capital (Exposição Coletiva) – Grand Palais – Paris – França Momento Brasil (Exposição Coletiva) – Momento Art Gallery – Washington – USA St. Moritz Art Maters Festival – St. Moritz – Suíça Camino Peregrino – Santiago’s Path – BiondettalGallery – Madrid – Espanha Camino Peregrino – Santiago’s Path – Igreja da Universidade – Santiago de Compostela – Espanha Terres Indigènes (Exposição Coletiva) – Centre Culturel Joël le Theule – Sablé-sur-Sarthe – França Cores Tropicais (Exposição coletiva) – AVA Galleria – Helsinki – Finlândia 54 2007 Camino Peregrino – Santiago’s Path – Château El Peregrino – Puente la Reina – Espanha Infr’action/Performance’s Festival – Sète – França (Curador: Jonas Stampe) Decentrismo – Kalicz – Polônia 2006 Infr’action/Performance Festival – Sète – França (Curador: Jonas Stampe) Exhibit 4B – As Neves – Espanha (Curadora: Risoleta Cordola) BACI Gallery – Washington – USA Temporary Art Centre – Eindhoven – Holanda (Curadores: Alex Valle & Penha Rosa) 2005 Louis Vuitton – São Paulo – Brasil Louis Vuitton – Rio de Janeiro – Brasil CROUS Gallery – Paris – França (Curadora: Hélène Villefort) Maison des Écritures – Lyon – França CHRISTINA CHRISTINAOO ITICICA ITICA 2004 1999 Centro Cultural França-Brasil – Rio de Janeiro – Brasil (Curadoras: Fátima Alegria, Lucrécia Vinhaes) Candido Portinari Gallery – Rome – Itália (Curadoras: Fátima Alegria, Lucrécia Vinhaes e Risoleta Cordola) 4th Exhibition of Photography – Liège Biennale – Bélgica Centro Cultural Cândido Mendes – Rio de Janeiro – Brasil (Curadora: Lucia Py) Centro de Arte Hélio Oiticica Art Centre – Rio de Janeiro – Brasil (Curadora: Lucia Py) 2003 Artexpo – Jacob Javits Convention Center – New York – USA (Curadores: Cilene Cooke e Sheila Ataide) Portal Gallery – São Paulo – Brasil (Curadora: Lucia Py) Mestnua Gallery – Ljubljana – Eslovênia (Curador: Aleksander Bassin) UNESCO Palace – International Art Exhibition – Beirut – Líbano (Curadora: Lena Kelekian) Centro Cultural França-Brasil/Exposição Virtual – Rio de Janeiro Brasil (Curadores: André Couto e Flávia Castro) Montrouge’s 48th Salon of Contemporary Art – Montrouge – França (Curadora: Nicole Ginoux) Época Gallery – Goiânia – Brasil (Curador: Júlio José Fratus) 1998 1997 Citibank – Rio de Janeiro – Brasil Museu de Belas Artes – Rio de Janeiro – Brasil 1996 Centro Cultural França-Brasil – Rio de Janeiro – Brasil 2002 1995 Lafayette Galleries – Paris – France (Curador: Jean Luc-Choplin) De Melkeerij – Beisem – Bélgica (Curador: Veerle Declereq) Museu de Belas Artes – Rio de Janeiro – Brasil (Curadora: Risoleta Cordola) Oscar Wilde’s House – Dublin – Irelanda (Curadora: Risoleta Cordola) Museu Histórico Nacional – Rio de Janeiro – Brasil 1994 Light Centro Cultural – Rio de Janeiro – Brasil 1993 Casa d’España – Rio de Janeiro – Brasil 2001 Debret Gallery – Paris – França (Curadora: Nina Chaves) La Petite Galerie – Brussels – Bélgica (Curadora: Liliane Laroche) Artexpo – Jacob Javits Convention Centre – New York – USA (Curadora: Lucia Py) Aeroporto de Guarulhos – São Paulo – Brasil (Curadora: Lucia Py) 2000 La Maison Du Temps – Paris – França (Curadora: Risoleta Cordola) Poste Gallery – Niterói, Rio de Janeiro – Brasil (Curador: Rafael Pimenta) Museu Histórico Nacional – Rio de Janeiro – Brasil (Curadora: Nomanda de Freitas) 1991 Centro Cultural Avatar – Rio de Janeiro – Brasil Caixa Econômica Federal – Olinda – Brasil Jymmy Bastian Pinto – Rio de Janeiro – Brasil 1985 Performance no Metrô – Rio de Janeiro – Brasil 1984 Parque Lage – Rio de Janeiro – Brasil Museu de Arte Moderna – Rio de Janeiro – Brasil Bazar Brasil – Rio de Janeiro – Brasil 55 C ONTANDO A ARTE DE A autora: Patrícia De Luna Formada em Psicologia pela PUC – Pontifícia Universidade Católica, fez cursos na Dean And Edward Foundation em creative writting e Pós-Graduação em Literatura Infantojuvenil, com ênfase nas raízes medievais dos contos de fada, na UFRJ. É professora da Facha – Faculdades Integradas Hélio Alonso, onde ministra o curso Laboratório do Autor. Teve suas peças A Lenda De Apoena e As Fadas De Oscar Wilde encenadas entre Rio de Janeiro e São Paulo. Publicou o infantil Leo No Mundo do Espelho pela Réptil Editora. Atua ainda como roteirista para a Documenta Filmes. Contatos: [email protected] Http://patriciacarneirodeluna.blogspott.com http://patricia2005.multiply.com 56